Um
advogado está em seu escritório avaliando uma nova causa. “Causa ganha”, pensa
ele. Contudo, o processo lhe reservava algumas surpresas — apesar do que diz a
boa doutrina sobre o artigo 10 do CPC. Ocorre que o juiz da causa era ninguém
menos do que Chicó, o maior mentiroso do universo literário de Ariano Suassuna.
E, como era de se esperar, Chicó conduziu o processo sem muita coerência,
culminando numa sentença de improcedência sem pé nem cabeça. Puro livre
convencimento. O café da manhã não tinha sido bom e o filho havia lhe
aporrinhado.
O
advogado, inconformado, opôs embargos de declaração.[1] — “Mantenho a decisão
por seus próprios fundamentos. E só sei que foi assim [2]” —, foi a resposta de
Chicó. O pobre do advogado se desesperou e resolveu apelar ao tribunal. Só não
contava que seu processo caísse na relatoria do desembargador João Grilo,
personagem de Suassuna consagrado pela esperteza.
Vale
lembrar como (talvez nos tempos de concurseiro) João Grilo convenceu o padeiro
de sua cidade a contratá-los, Chicó e ele, como ajudantes. Disseram-lhe que o
salário era pouco e o serviço era muito. Serviço muito teria que ter dois
ajudantes, sugeriu João. “Só se fossem dois pelo preço de um”, insistiu o
padeiro. Então, João propôs que Chicó trabalhasse por dois, ganhasse o salário
de um e desse conta de metade do serviço. Ele também trabalharia por dois,
ganharia o salário de um e daria conta da outra metade. O padeiro reclamou que
queria dois ajudantes pelo preço de um. João respondeu que ele estava levando quatro
pelo preço de dois, o que dava no mesmo. Tem lá sua coerência. Só se esqueceu
de dizer que, dos “dois trabalhadores” que lhe cabiam diretamente, nesse trato,
um era preguiçoso e o outro tinha faltado ao serviço. Aí o nosso advogado,
cangaceiro-velho-de-guerra, já se preocupa: “é desse povo que eu tenho medo”.
Pois
bem. Voltemos à causa. O desembargador João Grilo verificou as nulidades
alegadas pelo advogado. Verificou também que o processo tinha sido mal
conduzido pelo juiz Chicó. No entanto, só de pensar em mandar recomeçar aquilo
tudo na primeira instância, lhe deu um esmorecimento. Botando “o quengo mais
fino do nordeste” para funcionar, pareceu-lhe cabível dizer que a causa estava
“madura” para julgamento. Para radicalizar de vez, achou que dava pra encaixar
alguma súmula do tribunal para julgar monocraticamente a causa, negando
provimento ao recurso sem reabrir às partes possibilidade de manifestação sobre
a aplicação da teoria da causa madura (quem teria inventado isso?) resolvendo
ele mesmo o mérito da causa. Pronto, duas instâncias que não valeram uma, um
advogado revoltado e a parte feita de besta. Grilhagem epistêmica.
Disclaimer:
Chicó e João Grilo não são representativos da magistratura. São arquétipos
humanos encontrados em todos os lugares, todas as épocas e em todas as
carreiras. Na obra de Suassuna, são heróis porque usam da mentira e da
esperteza contra os poderosos, para sobreviver à sua dura realidade. Só que
quando se apresentam nessa carreira pública, com poder coercitivo nas mãos, subvertem
a coerência e integridade da jurisprudência (artigo 926, CPC). Nesse sentido,
eles compõem justamente um anti-modelo de juiz contra o qual precisamos de
garantias institucionais. Vamos a elas.
Sobre
a (in)efetividade do artigo 489, §1º
Nossa
estorinha apenas dramatiza o preciso diagnóstico feito por Luiz Dellore no
texto Algo mudou na fundamentação das decisões com o novo CPC? Jurisprudência
do STJ aplica entendimento firmado à luz do CPC/1973. Como sabemos, o parágrafo
1º do artigo 489 foi um dos grandes avanços democráticos do novo CPC/2015,
estabelecendo requisitos mínimos para a fundamentação das decisões judiciais.
Passou-se a vedar expressamente práticas corriqueiras que impediam um controle
público das decisões.
Art.
489: São elementos essenciais da sentença:
[...]
§
1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela
interlocutória, sentença ou acórdão, que:
I
- se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem
explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;
II
- empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto
de sua incidência no caso;
III
- invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV
- não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese,
infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V
- se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus
fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta
àqueles fundamentos;
VI
- deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado
pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a
superação do entendimento.
[...]
Para
saber se tal mudança legal teve alguma repercussão prática há muitos fatores a
considerar, mas uma questão é fundamental: o que ocorre se o artigo 489, §1º,
não for respeitado? O parágrafo em questão pareceria apontar para a nulidade de
tais decisões, ao considerá-las não fundamentadas, conjugando-se ao art. 93, inciso
IX da Constituição: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão
públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a
lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus
advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à
intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à
informação” (Redação dada pela Emenda Constitucional 45, de 2004).
Contudo,
Dellore adverte que o próprio CPC afasta essa nulidade. Primeiramente, porque,
“se for proferida uma sentença omissa, o novo CPC aponta que é caso de embargos
de declaração, por omissão (artigo 1.022, p.u., II)”; depois, “se persistir a
omissão, alega-se nulidade em preliminar de apelação”. E aí pode entrar o
artigo 1.013, § 3º, IV: “(…) § 3o Se o processo estiver em condições de
imediato julgamento, o tribunal deve decidir desde logo o mérito quando: (…) IV
– decretar a nulidade de sentença por falta de fundamentação”.
Surge
então uma discussão de técnica processual sobre a nulidade e sua convalidação
ou afastamento, além de uma discussão sobre a própria constitucionalidade dos
institutos que supostamente limitariam o art. 93, IX, da CF. Não podemos
adentrar esses aspectos da discussão neste espaço[3]. Contudo, podemos dizer
que os “embargos de declaração” e a “causa madura” são gambiarras jurídicas que
trazem mais problemas do que soluções. Os primeiros, neste formato, são uma
jabuticaba jurídica para salvar decisões mal feitas. A segunda é, muitas vezes,
um jeitinho de colocar logo uma decisão do tribunal onde havia uma decisão mal
feita na primeira instância, para onde o processo deveria retornar. Ao invés de
combatê-los, nosso direito institucionalizou o juiz Chicó e o desembargador
João Grilo. Na linha dos anti-modelos de juiz, criamos anti-direitos para
predar o próprio direito.
Por
isso, há cinco anos, esta coluna Senso Incomum já fazia bem em denunciar:
“[...]Cada
verbete esconde o caso. A tese esconde o caso concreto. E o projeto do novo
Código de Processo Civil parece estar encantado com os “precedentes” do direito
do common law. E, pior: insiste nos embargos declaratórios, esse instrumento de
quinta categoria que só serve para “esquentar” decisões mal fundamentadas. Os
embargos declaratórios são o sintoma de que o furo é mais embaixo. (...) Para
mim, uma sentença que seja omissa, obscura ou contraditória, antes de tudo,
viola o mais elementar direito fundamental das partes, a da fundamentação. Se
começássemos por aí, obrigando o juiz a não exarar sentenças omissas,
contraditórias ou obscuras, já estaríamos avançando sobremodo. De pronto,
evitaríamos centenas de milhares de processos inúteis!”
Mais
à frente, fazia troça da causa madura no CPC/73:
“[...]
O artigo 515, parágrafo 3º, do CPC, viola o duplo grau de jurisdição? Que é
isso, companheiro? Não há hierarquia entre o princípio do devido processo legal
e o da duração razoável do processo, sendo que, neste caso, o legislador
privilegiou o segundo”.
Sem
abrir mão das críticas, esperava-se que o resto do CPC que foi sendo elaborado
conseguisse domar institutos indesejáveis, mas difíceis de abolir, por razões,
vá lá, pragmáticas ou porque vivemos em um país de Chicós e João Grilos. Um
novo código tem dessas: é preciso chegar a soluções de compromisso e mudar aos
poucos para controlar o impacto legislativo. Contudo, passado mais de um ano de
vigência, parece que os embargos de declaração é que vêm domando o resto do
CPC/2015.
Além
disso, numa breve análise de direito comparado, nota-se como a vedação de
“decisões-surpresa” parece depender de uma sistemática mais rigorosa de
nulidades quanto às decisões judiciais [4]. Podemos ampliar isso: para garantir
a influência das partes na formação do provimento jurisdicional, não dá para
criar “anti-direitos” que desautorizem as garantias. Claro que pode haver
situações excepcionais, por exemplo: questões de urgência que requeiram o
adiamento do contraditório (artigo 9, § único, I). Mas há uma grande diferença
entre isso e o Estado ficar outorgando a si mesmo direitos para descumprir
outros direitos que ele mesmo deveria ter efetivado.
Não
dá pra prescrever com uma mão e relativizar com a outra. Para ser levado a
sério, o direito tem que ser feito levando-se a sério. A esse respeito, Dworkin
inspirou a emenda no artigo 926 sobre a coerência e integridade, proposta por
um dos articulistas. A primeira nos lembra da correspondência formal entre
decisões sobre casos similares; a segunda, da consistência principiológica, substancial,
que deve ter o Direito como um todo. A integridade é duplamente composta: um
princípio legislativo, que pede aos legisladores que tentem tornar o
conjunto de leis moralmente coerente, e um princípio jurisdicional,
que demanda que a lei, tanto quanto possível, seja vista como coerente
nesse sentido.
Concluindo:
se todos nós queremos um artigo 489, §1º, para valer, precisamos rever outros
institutos que até aqui foram considerados muito úteis e até indispensáveis,
mas que, na verdade, podem estar corrompendo todo o resto do sistema. Aos
pragmáticos (ou realistas retrôs) mais resistentes, lembramos que um olhar
qualitativo sobre o processo pode trazer benefícios quantitativos
inconsiderados, como uma diminuição de recursos num sistema onde houve garantia
de influência na formação das decisões de primeira instância[5]. Isto sem
esquecer os ganhos que transcendem as estatísticas, como o de tornar um sistema
de justiça mais justo.
Por
tudo isto, deixemos Chicó e João Grilo para a literatura.
1
Talvez o melhor livro criticando o instituto dos embargos seja o de João luiz
Rocha do Nascimento – Do descumprimento do dever de fundamentar, da Editora
Lumen Juris. Recomendamos.
2
Agradecemos a inspiração sobre o “juiz Chicó” a uma palestra do Professor Érico
Bruno Galvão de Freitas.
3
Faremos isso futuramente, em artigo científico.
4
NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático: uma análise
crítica das reformas processuais. Curitiba: Juruá, 2012.
5
NUNES, Dierle José Coelho; BAHIA, Alexandre; RIBEIRO CÂMARA, Bernardo; SOARES,
Carlos Henrique. Curso de Direito Processual Civil: fundamentação e aplicação.
— Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 41.
Lenio Luiz Streck é
jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do
escritório Streck e Trindade Advogados Associados:
www.streckadvogados.com.br.
Ziel Ferreira Lopes é
doutorando em Direito pela Unisinos, bolsista CNPq-BR.
Revista
Consultor Jurídico
http://www.conjur.com.br/2017-ago-03/senso-incomum-chico-joao-grilo-acabando-artigo-489-cpc?utm_source=dlvr.it&utm_medium=twitter
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