quinta-feira, 6 de julho de 2017

PROFESSOR CONTA COMO FOI SUA PRISÃO NA GREVE DO DIA 30 E A PASSAGEM PELO PRESÍDIO CENTRAL. Por Marco Weissheimer


Professor de Filosofia e História da rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul, Altemir Cozer saiu de casa cedo no dia 30 de junho para participar dos protestos da greve geral contra as reformas da Previdência e Trabalhista, marcada para aquele dia. Integrante do Conselho Fiscal do Cpers Sindicato e da executiva da Central Sindical e Popular Conlutas, Altemir acabou sendo preso no início da manhã pelo Batalhão de Choque da Brigada Militar, após participar de um piquete na garagem da Carris. O professor foi preso por carregar fogos de artifício na mochila e enquadrado no artigo 251 do Código Penal que tipifica o “crime de explosão”.

Em entrevista ao Sul21, ele nega ter disparado qualquer fogo de artifício contra os policiais militares, relata como foi a sua prisão e qualifica como truculenta e desproporcional a ação da Brigada contra os manifestantes no dia da greve. “Sou professor desde 2002 e sou filiado ao Cpers desde aquela data. Já fui atingido por bombas de efeito moral na época do coronel Mendes, no governo Yeda, aqui na Praça da Matriz. Já vivi várias situações, mas essa agressividade totalmente desproporcional eu ainda não tinha visto”.

Altemir Cozer também conta como foi sua passagem pelo Presídio Central, relata os xingamentos e hostilidades que sofreu, mas também gestos de solidariedade que ocorreram nas horas em que permaneceu detido.

Sul21: Como é que ocorreu o episódio da tua prisão no dia da greve geral?

Altemir Cozer: Eu cheguei por volta das 4h10 na Carris, onde já estavam alguns companheiros. A partir das 4h30, já éramos mais de 200 pessoas fazendo um trabalho de convencimento, conversando com os rodoviários sobre a greve e falando da importância da adesão deles ao movimento. Ficamos ali até um pouco depois das 5 horas. Ninguém da Brigada foi conversar conosco, nos dar um prazo para sair ou algo do tipo. Até que estourou a primeira bomba de gás.  Depois, veio uma rajada de 10 ou 15 bombas lançadas na direção de onde estava a nossa concentração. Aí houve uma correria, tentamos socorrer aqueles que estavam sentindo mais o gás e procuramos nos recompor.  Impressionou a quantidade de bombas que jogaram e a demonstração de força. Chegaram batendo nos escudos e fazendo todo um teatro para nos assustar e intimidar. Isso durou algo entre 15 e 20 minutos.

Depois, uma parte achou que era melhor sair de lá e ir para outros lugares onde também estavam ocorrendo protestos e manifestações. Um grupo nosso, ligado a CSP-Conlutas, junto com outros companheiros, resolveu ir até a esquina da Bento e ali ficamos outros 15 minutos, fazendo bloqueios no trânsito e aguardando os demais colegas para seguirmos para o centro. O nosso propósito era caminhar pela Bento na direção do Centro. Após caminharmos uns 150 metros, antes de chegar no portão da PUC, o pelotão de choque da Brigada começou a andar atrás da gente. Em um primeiro momento, se postaram na avenida e, logo em seguida, lançaram uma leva de bombas. Seguimos caminhando nos afastando das bombas, tentando andar um pouco mais rápido. Lançaram mais duas sequências de bombas e alguns colegas acabaram ficando pelo caminho. Estávamos, então, entre 30 e 40 pessoas.

Um pouco depois de passar a PUC, o pelotão de choque começou a correr atrás da gente com todo o aparato deles e lançando bombas na nossa direção. Nós também começamos a correr até que, numa certa altura, passou um micro-ônibus da Brigada em alta velocidade pelo corredor de ônibus e atravessou-se na pista. Tentamos fazer um zigue-zague na avenida tentando nos proteger e sair daquela emboscada. Foi quando eles nos pegaram e nos mandaram deitar no chão, em meio a muita gritaria e xingamentos, com todas as armas apontadas para nós, algo completamente desproporcional.

Sul21: Que tipo de xingamento?

Altemir Cozer: Baderneiros, arruaceiros, putinhas, sapatão, viadinho, coisas deste calibre. Eles estavam com o domínio total da situação. Foi algo totalmente desnecessário. Se a tarefa deles era liberar a via, poderiam ter chegado em nós, perguntado se iríamos liberar a rua e aí, se fosse o caso, tomar uma atitude para liberá-la. Mas, assim como ocorreu na Carris, não houve nenhuma conversa. Ao contrário, o que houve foi um grande grau de truculência. Foi neste cenário que eles passaram a pedir os documentos e fazer a revista. Eles pegavam os documentos, olhavam, amassavam e jogavam no chão. E ficavam dizendo para alguns: “Esse aqui já roubou calcinha no centro”, “Essa aqui já destruiu prédio” e coisas desse tipo.

Quando chegaram na minha verificação, viram que tinha um registro a meu respeito por ocasião de uma manifestação ocorrida em 2004. Não há nenhum registro policial oficial sobre isso, é um arquivo paralelo deles.

Sul21: E você estava “fichado” neste arquivo paralelo…

 Altemir Cozer: Sim, por uma manifestação contra o aumento das passagens ocorrida em 2004. Eu estava com uma mochila e com uma bandeira da CSP-Conlutas. Eles mandaram jogar a bandeira fora e pegaram a mochila. Dentro da mochila eu tinha óculos para proteção contra o gás, um par de luvas e cinco ou seis fogos de artifício que a gente usa muito nas manifestações para chamar a atenção e animar a turma. Usamos muito, por exemplo, no ano passado, na Praça da Matriz, contra o pacote do Sartori. Eles me acusaram então de ter lançado explosivos contra eles e me algemaram. Depois, colocaram um monte de coisas dentro da mochila, pote de vinagre aberto, um pedaço de pau de bandeira que eles quebraram e colocaram ali…

Sul21: Você viu isso?

Altemir Cozer: Sim. Eu já estava algemado, sendo levado para dentro de uma viatura. Não sei ainda exatamente qual foi o relatório final que eles fizeram na Polícia Civil, descrevendo o que havia dentro da minha mochila. Esse foi o episódio da minha prisão.

Sul21: E você ou algum de seus colegas disparou fogos de artifício contra o choque da Brigada?

Altemir Cozer: Não. Não havia nem condição disso. A nossa preocupação era tentar se livrar das bombas de gás que eles estavam jogando contra nós. E seria de uma estupidez total lançar fogos contra eles, pois estávamos numa situação completamente vulnerável em relação ao aparato que eles tinham. O nosso objetivo era prosseguir com a manifestação. Se jogássemos fogos contra a Brigada, obviamente que a repressão iria aumentar. Isso não aconteceu.

Sul21: Você foi preso junto com outras duas pessoas, não?

Altemir Cozer: Eu nem fiquei sabendo disso na hora. Quando cheguei na 2ª DP, vi dois colegas comerciários algemados lá na sala onde eles algemam as pessoas junto a uma barra de ferro. Esses dois colegas tinham sido presos lá na Carris, por dois P2, acusados de ter quebrado ônibus. Fiquei algemado o tempo todo. Demorou um tempo porque também era dia de luta da Polícia Civil e havia um protesto por ali. Cheguei por volta das 8 horas e saí lá pelo meio-dia, sendo levado para o Presídio Central.

Sul21: Como foi essa passagem pelo Presídio Central?

Altemir Cozer: Eu imagino que passei pelos procedimentos normais de qualquer preso. Tiraram as algemas e me entregaram na recepção do presídio. Todos os que trabalham ali são membros da Brigada Militar. O primeiro que me recebeu novamente verbalizou xingamentos, me chamando de baderneiro, arruaceiro e outras coisas. Foi o bom dia que recebi na chegada. Dali, fui para uma sala onde tirei toda a roupa, onde fiquei sem o meu casaco e o meu calçado. Não sei se é com todos, mas, no meu caso, seguiram me xingando e zombando de mim. Quando o brigadiano cortou o meu cinto disse: “Bem que eu podia te deixar entrar com essa cinta, pois, de repente, tem utilidade lá dentro”. Esse foi o cartão de visitas na entrada.

Fui levado para uma cela e depois me chamaram para ser fichado, já de pés descalços e sem o meu casaco. O que mais me incomodou naquele momento foi estar descalço, pois o piso estava bastante sujo e muito frio. No fichamento, tive um atendimento mais humano e equilibrado por parte de um sargento da Brigada. Ele conversou comigo, explicou qual era a situação, tratando de fazer o serviço dele dentro daquilo que deveria ser a regra.

Depois do fichamento, fui levado para uma cela de triagem aguardando transferência para a cela onde eu iria ficar. Neste período, chegaram mais uns oito ou nove jovens para fichamento. Depois fomos encaminhados para um corredor, onde ficamos mais um tempo de cara para a parede, aguardando a definição de para onde cada um iria. Dali fui encaminhado para a cela 5 do que, depois, fico sabendo que é denominado “brete”. É uma galeria que antecede as galerias definitivas. Fui levado para essa cela com mais três pessoas, em um corredor de bastante movimentação. Aí também ouvi xingamentos e comentários agressivos por parte de alguns brigadianos. Eu estava com uma camiseta onde, nas costas, estava escrito: Fora Temer! Contra a Reforma da Previdência! Um dos policiais passou e disse “Fora, Temer!”, dando uma cacetada nas grades. Quando me chamaram para fazer a revista, antes de entrar na cela, foi a mesma coisa.

Cheguei a essa cela por volta das três e meia da tarde e fiquei lá até o meio-dia de sábado. Era uma cela grande até, mas muito suja, com muita comida podre pelo chão e com acesso à água praticamente inexistente. Havia seis “beliches” de concreto, sendo que um deles não existia mais. Todo o primeiro período foi de muita conversa com o resto do pessoal que estava na cela. Eles queriam conversar, saber quem eu era. Expliquei que era um dia de greve geral, de protesto contra a reforma Trabalhista e da Previdência. Eles já tinham visto na minha camiseta o “Fora Temer!” quando eu passei. Quando eles me chamaram para conversar, falaram: “ô do Fora Temer…”. Contei como tinha sido preso e o que eu fazia da vida. Foi um diálogo longo e muito interessante.

Sul21: Como estava seu estado de ânimo a essa altura dos acontecimentos?

Altemir Cozer: Houve alguns episódios mais complicados, como, por exemplo, comer pela primeira vez. Lá pelas quatro horas da tarde, chegou alguém com uma panelona para oferecer a comida, mas eu não tinha nenhum recipiente para pegá-la, muito menos eles para oferecer. O carcereiro conseguiu um pote descartável e me deu a comida. Como também não tinha talher, comi com os dedos. Comi devagar, pois já fazia muito tempo que tinha comido pela última vez.

Sul21: O que era a comida?

 Altemir Cozer: Arroz, feijão e uns pedaços não sei exatamente do que. Comi um pouco, o que me acalmou um pouco, me deu sede, mas não encontrei água no início. Os outros presos brincaram comigo: “E aí, professor, está vendo como é a comida aqui. É isso aí mesmo. Depois o senhor conta para o seus alunos”. Eles estavam preocupados que eu comesse. No início da noite, tentei dormir um pouco. Ainda estava muito tenso, mas consegui dormir um pouco, meio amontoado. Estava começando a fazer frio. Os presos até me ofereceram um cobertor. Não sei quanto tempo passou, até que apareceu um sargento dizendo que eu tinha parlatório, que foi a primeira vez que conversei com o meu advogado. Era uma e meia da manhã. Nesta ida ao parlatório, aconteceu uma coisa muito bonita. Um preso me ofereceu os chinelos dele para que fosse até lá. Ele disse: “Professor, pega emprestado o meu chinelo porque não se faz isso com ninguém, caminhar neste frio de pé no chão. E muito menos com um professor”. Peguei o chinelo, agradeci e foi um alívio. Uma coisinha de nada, colocar um chinelo nos pés.

Na conversa com o meu advogado, fiquei sabendo pela primeira vez que já tinha um habeas corpus desde às 19h. Ele também estava ansioso com essa situação que não se resolvia. Quando retornei para a cela, o preso que tinha me emprestado um chinelo disse para o carcereiro que na cela que havia sido liberada às dez da noite tinha um cobertor. “Pega para o professor, que ele deve estar com muito frio”. Eu peguei o cobertor e até brinquei com eles: “Pô, agora virou hotel de luxo”. Aí consegui dormir mais tranquilamente até a manhã de sábado. Lá pelo meio da manhã fui chamado para o parlatório de novo e ele me contou que tinha passado a noite tentando agilizar a minha soltura. Houve um problema do sistema, disseram. Ele me disse que tinha um pessoal do movimento fazendo uma vigília junto ao portão do Central.

Finalmente, lá pelas 13h, vieram me avisar que eu iria sair. Após os procedimentos burocráticos, um pouco antes de sair, alguns brigadianos me perguntaram: “Tá professor, mas em quem vamos votar?”. Respondi pra eles que o importante não era tanto em quem votar, mas sim que houvesse eleição e os trabalhadores pudessem decidir em quem votar. Encontrei os primeiros brigadianos que me receberam no presídio e me perguntaram se eu iria continuar com os protestos. Eu disse que sim, que era necessário. Eles disseram que isso era bom, pois se já estava ruim com os protestos, ficaria pior sem. Me falaram para não desistir, mas que não era mais para levar fogos de artifício.

Sul21: Você já havia passado por algum episódio parecido com esse antes?

 Altemir Cozer: Eu participo do movimento social desde que cheguei em Porto Alegre, no início dos anos 2000. Sou professor desde 2002 e sou filiado ao Cpers desde aquela data. Já fui atingido por bombas de efeito moral na época do coronel Mendes, no governo Yeda, aqui na Praça da Matriz. Já vivi várias situações, mas essa agressividade totalmente desproporcional eu ainda não tinha visto. Não havia resistência nem enfrentamento da parte dos manifestantes que justificasse aquela agressividade. Depois fiquei sabendo que a Brigada queria entrar dentro do Campus da UFRGS, na Agronomia, porque estava ocorrendo um piquete lá dentro.

Toda essa agressividade parecia uma ação coordenada que se repetiu em outros lugares. Nós tivemos o episódio da ocupação Lanceiros Negros antes da greve do dia 30, que também foi marcada por uma grande truculência. Agrediram o deputado Jeferson Fernandes e fizeram o que fizeram com várias mulheres. Pelos relatos que recebemos, repetiu-se a prática de xingamentos e humilhações, com ofensas de cunho racista, homofóbico, machista e ideológico.

No dia da greve, quando estávamos com as mãos na parede, eles diziam para nós: “Ocupar e resistir, é? Quero ver a resistência” – numa clara provocação. Passavam alguns carros buzinando, e eles falavam: “Estão vendo. Quanto mais a gente prender e bater e vocês, mais apoio nós temos da população”. É algo que foge do próprio protocolo de conduta da Brigada. Parece haver uma linha geral na Brigada nesta direção. Não sei se parte do próprio comando ou da Secretaria de Segurança. Poderia haver alguns PM’s ou algum comandante de pelotão de choque desequilibrados, mas o que estamos vendo é algo generalizado e preocupante. Imagino que o propósito seja desmoralizar as pessoas ou exemplarmente derrotar o movimento.

http://www.sul21.com.br/jornal/professor-conta-como-foi-sua-prisao-na-greve-do-dia-30-e-passagem-pelo-presidio-central/


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