O
Supremo Tribunal Federal e o Julgamento de Páris: o embate entre a Constituição,
o Direito do Trabalho e a Ideologia em relação à prevalência do negociado sobre
o legislado.
INTRODUÇÃO
O
Supremo Tribunal Federal está no centro da vida política brasileira, havendo
quem chame o momento de “Supremocracia”.[1] As consequências da supremacia da
cúpula do Poder Judiciário sobre os demais poderes tem sido preocupação
constante de estudiosos da Ciência Política, pelos possíveis efeitos
perniciosos à vida democrática.[2]
Pretende-se
no presente texto demonstrar que o Supremo Tribunal Federal está imbuído na
missão de realizar reforma trabalhista pela via judicial, na qual os princípios
constitucionais estão sendo deixados de lado, tendo por norte valor
metajurídico: a ideologia da flexibilização, baseada em visão unifocal do
princípio da livre iniciativa, sob o mantra da “flexibilização das relações de
trabalho”, sem realizar o devido diálogo com a doutrina de Direito do Trabalho,
e com todos os demais princípios constitucionais condicionantes da livre
iniciativa. Também se pretende demonstrar que para a realização da reforma
pretendida, a Corte Suprema tem renegado seus próprios precedentes sobre a
questão.
Para
demonstrar as hipóteses lançadas, passemos à análise de três julgados recentes,
observando os argumentos utilizados para identificar os princípios
constitucionais ou extrajurídicos utilizados e inter-relacionando os casos.
2 – O ATUAL
CONTEXTO – O DEBATE ACERCA DA REFORMA TRABALHISTA
Logo
após assumir a interinidade da presidência da República, em decorrência do
processo de Impeachment da presidenta eleita, o governo de Michel Temer já
anunciava a realização de reforma trabalhista, indicando como peça central a
prevalência do “acordado sobre o legislado”.[3]
As
notícias começaram a se avolumar no mesmo sentido, a fim de “prestigiar
convenções coletivas”.[4] Foi divulgada a informação de que o governo
pretenderia que “tudo o que estiver na CLT poderá ser alvo de negociação. (…)
Outros casos que poderiam ser acordados dizem respeito a situações em que o
funcionário fica à disposição do patrão, fora do expediente sem ser acionado e
o tempo gasto em deslocamentos quando a empresa busca os trabalhadores –
considerados hoje como hora extra.”[5]
O
governo, então, passou a anunciar que pretenderia fazer a reforma trabalhista
baseada no seguinte “tripé”: terceirização, flexibilização da jornada e
prevalência de acordos coletivos sobre a legislação.[6]
Mesmo
na época da interinidade, a terceirização já estava no centro da reforma
pretendida, tendo o Ministro da Casa Civil dito que “o país precisa caminhar no
rumo da terceirização”, e que o projeto de lei que retira limites da terceirização,
que se encontra atualmente em discussão no Senado Federal, “deve ser votado com
alguma rapidez”.[7]
Já
consumada a deposição da presidenta eleita, o governo Michel Temer, por meio de
seu Ministro do Trabalho, deu declarações atabalhoadas no sentido de que
poderiam ser aceitas jornadas de trabalho de até 12 (doze) horas por dia.[8] A
repercussão extremamente negativa da proposta fez com que o próprio presidente
telefonasse, “muito irritado”, para o Ministro do Trabalho para que este se
retratasse: “O presidente me ligou, me orientou a reafirmar que o governo não
vai elevar a jornada de 8 horas nem tirar direitos dos trabalhadores”.[9] O
governo lançou até vídeo nas redes sociais para “esclarecer fala de ministro”,
afirmando que a retirada de direitos trabalhistas são somente “boatos”.[10]
O
presidente Michel Temer veio pessoalmente afirmar que “é muito desagradável
imaginar que um governo seja tão estupidificado, tão idiota, que chega ao poder
para restringir o direito de trabalhadores.”[11]
As
Centrais Sindicais, em uníssono, repudiaram as propostas do governo, planejando
inclusive atos nacionais e paralisação em protesto contra a reforma
trabalhista.[12]
Assim,
em resumo, o contexto é de início de debate da plataforma política do novo
governo que, por não ter sido democraticamente aprovada, ainda está em plena
discussão na sociedade brasileira.
2 –
APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS CASOS
2.1 – O
CASO DA QUITAÇÃO AMPLA EM PLANO DE DISPENSA INCENTIVADA ESTABELECIDA POR ACORDO
COLETIVO DE TRABALHO
O
Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário nº 590.415, pelo seu
plenário, decidiu pela validade de quitação ampla concedida por trabalhadores a
partir de plano de dispensa incentivada estabelecida por acordo coletivo de
trabalho. No caso, conforme a ementa do julgado, não haveria a limitação do
art. 477, § 2º, da CLT, que restringe a quitação quanto às parcelas e valores
pagos, porque houve condições econômicas mais vantajosas concedidas aos
trabalhadores por meio da negociação coletiva.
Chegou-se
a ser salientado no relatório do acórdão que a indenização do autor da ação que
gerou o precedente foi de 78 vezes o valor de sua maior remuneração mensal. O
voto afirma que as convenções e acordos coletivos de trabalho são a consagração
da autonomia coletiva da vontade, a qual equiparam os sindicatos às empresas,
não havendo a disparidade presente nas relações individuais do trabalho:
“No
âmbito do direito coletivo do trabalho não se verifica a mesma situação de
assimetria de poder presente nas relações individuais de trabalho. Como
consequência, a autonomia coletiva da vontade não se encontra sujeita aos
mesmos limites que a autonomia individual.”
O
voto traz como princípios da negociação coletiva a lealdade e também o
princípio da adequação setorial negociada, em que podem ser transacionadas
setorialmente parcelas justrabalhistas que não sejam de indisponibilidade
absoluta, como “a anotação da CTPS, o pagamento do salário mínimo, o repouso
semanal remunerado, as normas de saúde e segurança do trabalho, dispositivos
antidiscriminatórios, a liberdade de trabalho etc.”[13].
Entendeu
o acórdão que realmente não vigora no Brasil a liberdade sindical plena, mas
que, no caso em concreto, os trabalhadores participaram efetivamente das
negociações.
Ao
final, o Supremo Tribunal Federal decidiu a seguinte tese, com repercussão
geral: “A transação extrajudicial que importa rescisão do contrato de trabalho,
em razão de adesão voluntária do empregado a plano de dispensa incentivada,
enseja quitação ampla e irrestrita de todas as parcelas objeto do contrato de
emprego, caso essa condição tenha constado expressamente do acordo coletivo que
aprovou o plano, bem como dos demais instrumentos celebrados com o empregado”.
Interessante
também ressaltar que em decisão de Embargos de Declaração dessa decisão, o
Ministro relator, Luís Roberto Barroso, afirmou que “um acordo em demissão
coletiva firmado por sindicatos, que inclusive relutaram. Os sindicatos
firmaram o acordo, porque pressionados pelos trabalhadores. (…) Em assembleia;
quer dizer, era um caso inequívoco de manifestação de vontade.”[14] Assim, fica
claro que foi decidida tese com repercussão geral baseada em características
bastante específicas do caso concreto. A pergunta que resta: como dar
repercussão geral a um caso que continha tão específica situação, como admite o
relator? Qual a razão da especificidade do caso, que era, nas palavras do relator,
essencial para a controvérsia, não constou do enunciado da repercussão geral?
2.2 – O
CASO DAS HORAS IN ITINERE
Tomando
como precedente a tese acolhida com repercussão geral, o Ministro Teori
Zavascki, em decisão monocrática no Recurso Extraordinário 895.759, decidiu
ampliar o alcance da decisão anterior, afirmando que poderia haver a supressão
de horas in itinere por negociação coletiva caso fosse compensada a perda com
outras vantagens concedidas no acordo. Assim, afastou monocraticamente julgado
do Tribunal Superior do Trabalho que reconhecia a autonomia coletiva, mas que
resguardava “os preceitos legais de caráter cogente”, alegando ofensa a ratio
da repercussão geral do Recurso Extraordinário nº 590.415. Ao final determinou
que fosse oficiada à “Vice-Presidência do Tribunal Superior do Trabalho,
encaminhando-lhe cópia desta decisão para as devidas providências, tendo em
conta a indicação do presente apelo como representativo de controvérsia”.
Esta
decisão afastou-se das premissas dadas no acórdão com repercussão geral: não se
tratava de plano de dispensa incentivada, não houve prova de participação
efetiva dos interessados e houve lesão a norma cogente ou de ordem pública.
Note-se que o cerne da decisão do RE 590.415 foi o plano de dispensa incentivada,
e a decisão pela legalidade de suas disposições foi a existência da negociação
coletiva, tendo sido tal fato expresso na tese aprovada com repercussão geral.
O
governo comemorou a decisão, afirmando que “decisões judiciais recentes que
permitem flexibilizar leis trabalhistas a partir de acordos coletivos abrem
espaço para mudanças definitivas na legislação e devem “encorajar” o governo e
o Congresso a levar adiante propostas nesse sentido”.[15]
Não
houve no acórdão do Ministro Teori Zavascki nenhuma das preocupações lançadas
no precedente do plano de demissão voluntária, como a ausência de liberdade
sindical no Brasil e o princípio da adequação setorial negociada. Seu argumento
básico é “Ainda que o acordo coletivo de trabalho tenha afastado direito
assegurado aos trabalhadores pela CLT, concedeu-lhe outras vantagens com vistas
a compensar essa supressão.”[16]
2.3 – O
CASO DA JORNADA DE 12 HORAS DE TRABALHO POR 36 DE DESCANSO
Na
Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.842, proposta pelo
Procurador-Geral da República, questionava-se a constitucionalidade de
dispositivo da Lei nº 11.901/2009 que previa a jornada de 12 horas de trabalho
por 36 horas de descanso para os bombeiros civis. O argumento da ação pela
inconstitucionalidade seria a violação do direito fundamental à saúde e à
redução dos riscos inerentes ao trabalho (art. 7º, inciso XXII, Constituição da
República), tendo em vista que o elastecimento da jornada aumenta a incidência
de acidentes do trabalho, bem como que a compensação de jornada deve ser
prevista em acordo ou convenção coletiva de trabalho, conforme prevê a
Constituição da República no art. 7º, inciso XIII.
O
ministro Edson Fachin observou que a norma estabelece regime de trabalho
compatível com as atividades desempenhadas pelos bombeiros civis, também
chamados de brigadistas, pois garante a eles um período de descanso superior ao
habitual em razão de sua jornada de trabalho de 12 horas. O ministro afirmou
que a jornada prevista na lei está respaldada na Constituição Federal (artigo
7º, inciso XIII) pela possibilidade de compensação de horas trabalhadas
mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho.”[17] Aduz ainda que não há
prejuízo à saúde, por falta de estudos científicos e que a jornada de 12 horas
não é prejudicial pois seguida de 36 horas de descanso.
O
relator afirma em seu voto que: “embora não haja a previsão de reserva legal
expressa na Constituição, a previsão de negociação coletiva permite inferir que
a exceção estabelecida para os bombeiros civis garante, em proporção razoável,
descanso de 36 horas para cada 12 horas trabalhadas, além de assegurar a
jornada máxima de 36 horas semanais.”
Cita
como precedente o Recurso Extraordinário n. 425975, de relatoria do Ministro
Carlos Velloso.
Aqui
chegamos a um ponto quase inacreditável: o acórdão citado como precedente julga
no sentido totalmente contrário à tese do voto do Ministro Facchin. De fato, a
ementa do RE 425975 assim está redigida: “A majoração da jornada de trabalho
semanal para além do limite previsto no art. 7º, XIII, somente pode ocorrer em
situações excepcionais.”
Tratava-se
de Recurso Extraordinário interposto pelo Estado de Pernambuco para tentar
reverter decisão do Tribunal de Justiça que tinha julgado a
inconstitucionalidade de portaria que preveria a escala de 24 horas por 72
horas de descanso, supostamente lastreada por lei estadual. O acórdão estadual
havia declarado a inconstitucionalidade da lei que previa a duração semanal de
48 horas, bem como anulou a portaria, afirmando que a Constituição facultava a
compensação de jornada caso houvesse convenção ou acordo coletivo de trabalho,
o que não existia no caso. O Ministro Carlos Velloso manteve a decisão ˜por
seus próprios fundamentos.[18] Ou seja, a decisão acabou por afirmar que não
poderia lei ou portaria fazer a compensação dos limites constitucionais,
somente podendo isso ocorrer, em casos excepcionais, por negociação coletiva.
Em
seu voto, Fachin ressalta que o Sindicato dos Bombeiros Civis no Distrito
Federal é a favor da jornada disposta na lei. Interessante, no entanto, que o
Ministério Público Federal, na sustentação oral da causa ora em comento,
demonstrou que outros sindicatos eram contrários ao regime de trabalho
legal.[19]
Relevante
se mostrou a discussão do voto. Após manifestação do Ministro Luís Roberto
Barroso no sentido de que deveria ser deixado claro na decisão que poderiam ser
estipulados outras jornadas, seja por acordo individual ou negociação coletiva,
para a defesa da liberdade de contratar, livre iniciativa e também autonomia
negocial coletiva, seguiu-se ampla discussão, em que a única divergência
parecia ser a necessidade ou não de se declarar na decisão da ADI n. 4.842 que
a negociação coletiva poderia estipular jornada diversa da legal, estando todos
consentes de que poderia. A Ministra Rosa Weber foi a única que divergiu,
dizendo que, conforme o texto constitucional, somente convenção ou acordo
coletivo poderia estipular compensação, e não a lei. O Ministro Marco Aurélio
afirmou que não poderia ser por acordo individual, mas que por negociação
coletiva poder-se-ia dispor de maneira diversa ao emanado pela lei. Por fim,
foi declarada de forma simples a constitucionalidade da lei dos bombeiros
civis, ficando vencidos os Ministros Luís Roberto Barroso, Marco Aurélio e Rosa
Weber, por motivos diversos entre eles.
Por
outro lado, da discussão sobressaíram-se duas falas importantes para a análise
da posição que vem assumindo o Supremo Tribunal Federal. Em determinado momento
o Ministro Luís Roberto Barroso afirma: “toda a tendência do direito do
trabalho contemporâneo é no sentido da flexibilização das relações e da
coletivização das discussões, no que foi complementado pelo Ministro Marco
Aurélio: “mais dia ou menos dia vamos ter que partir para essa reforma.”
3 – A
GUINADA NA JURISPRUDÊNCIA
Como
já vimos no caso da jornada de doze horas por trinta e seis de descanso, está
havendo guinada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que vem
ignorando todos os precedentes da Corte sobre a questão.
O
tribunal, até bem pouco tempo atrás, tinha o seguinte entendimento, conforme o
julgado a seguir:
“Estabilidade
provisória da empregada gestante (ADCT, art. 10, II, b): inconstitucionalidade
de cláusula de convenção coletiva do trabalho que impõe como requisito para o
gozo do benefício a comunicação da gravidez ao empregador. 1. O art. 10 do ADCT
foi editado para suprir a ausência temporária de regulamentação da matéria por
lei. Se carecesse ele mesmo de complementação, só a lei a poderia dar: não a
convenção coletiva, à falta de disposição constitucional que o admitisse. 2.
Aos acordos e convenções coletivos de trabalho, assim como às sentenças
normativas, não é lícito estabelecer limitações a direito constitucional dos
trabalhadores, que nem à lei se permite.” (RE 234186 / SP, Relator Ministro
Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, Publicado em 31/08/2001)
No
voto desse julgado, o Ministro Sepúlveda Pertence afirma de maneira clara:
“De
qualquer sorte, jamais o poderia fazer a transação de natureza coletiva, à
falta de disposição constitucional que o admitisse. Trata-se de direito
irrenunciável da empregada, que não pode ser afastado ou neutralizado por
simples convenção. Aos acordos e convenções coletivos de trabalho, assim como
às sentenças normativas, não é lícito estabelecer limitações a direito
constitucional dos trabalhadores, o que nem à lei é permitido. As cláusulas
deles resultantes têm seu âmbito circunscrito às categorias profissionais
envolvidas, cujos integrantes não podem ter reduzidos ou eliminados os direitos
constitucionais, assegurados a todos os brasileiros em igual situação.”
Entretanto,
a guinada da jurisprudência vem de forma pouco ortodoxa, pois não estão claros
os princípios constitucionais que lastreariam a alteração de posicionamento.
Enquanto
que no caso paradigma do plano de dispensa incentivada, o princípio seria o da
autonomia privada coletiva expressamente demonstrada, tendo em vista a falta de
liberdade sindical existente no Brasil, no caso das horas in itinerepartiu-se
diretamente para a sobreposição do negociado coletivamente em relação a normas
cogentes ou de ordem pública, não levando em consideração a problemática
levantada no caso paradigma, submetendo sua validade somente a troca desses
direitos por outras vantagens. No terceiro caso avaliado, no entanto,
verifica-se que o princípio da primazia da autonomia coletiva cede espaço em
relação à lei, mesmo contrariamente ao disposto à Constituição. Se é certo que
pelo dispositivo expresso do inciso XIII do art. 7º constitucional a negociação
coletiva pode realizar a compensação da jornada nos limites estipulados pela
lei maior, ela não permite que o faça por meio de lei.
Assim,
parece que o mandamento metajurídico da flexibilização prevaleceu sobre a
negociação coletiva, pois apesar da Constituição expressamente vincular a
compensação da jornada à necessidade de convenção ou acordo coletivo de
trabalho, o Supremo Tribunal Federal, alterando sua jurisprudência, decide que
a lei pode fazê-lo. Caso o objetivo maior fosse a valorização da negociação
coletiva, tendo em vista as diferentes visões sindicais a respeito do
dispositivo legal, teria o Supremo Tribunal Federal deixado a solução, como
prevê a Constituição, para convenções e acordos coletivos, na abrangência de
cada sindicato.
4 – O
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A REFORMA LABORAL BRASILEIRA
O
Supremo Tribunal Federal vem, de maneira cada vez mais clara, tentando
implementar política em relação às questões trabalhistas, em aberto ativismo
judicial.
Não
se mostra coincidência que a pauta escolhida pela nova Presidenta do Supremo
Tribunal Federal, a Ministra Carmen Lúcia, para inaugurar sua gestão à frente
da Corte Suprema escolheu diversos temas trabalhistas, tendo sido chamada de
“pauta trabalhista”.[20]
De
fato, todos os itens abordados pelo novo Governo Federal estão recebendo
especial atenção da Corte Suprema brasileira, que desenha realizar a reforma em
arrepio – e diríamos mais, em verdadeiro atropelo – do debate democrático. Se
tomarmos o cerne das reformas anunciadas pós-Impeachment, todos os pontos estão
bem encaminhados no Supremo Tribunal Federal.
Conforme
vimos, a questão da prevalência do negociado sobre o legislado vem se
construindo de forma rápida na Corte. Até a questão da legalidade de jornada de
12 horas foi liberada pelo Supremo Tribunal Federal, no terceiro caso estudado,
na mesma semana que houve a reação à proposta governamental.
O
fim dos limites à terceirização está encaminhado, tendo sido liberado para
julgamento pelo Relator Luiz Fux.[21]
Assim,
os fatos levam a crer no protagonismo deliberado do Supremo Tribunal Federal na
reforma trabalhista neoliberal.
5 –
CONCLUSÃO
De
toda a análise, podem-se tomar as seguintes conclusões:
a)
o Supremo Tribunal Federal assumiu papel de liderança na reforma trabalhista
pretendida pelo governo Temer, em claro e aberto ativismo judicial, como
demonstram a impecável coincidência entre a pauta governamental e a de
julgamentos da Corte Suprema e o diálogo entre os Ministros Luís Roberto Barroso
e Marco Aurélio Mello no julgamento da ADI 842: “toda a tendência do direito do
trabalho contemporâneo é no sentido da flexibilização das relações e da
coletivização das discussões; ˜mais dia ou menos dia vamos ter que partir para
essa reforma.”;
b)
as últimas decisões representam uma guinada na jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal, sendo às vezes simplesmente olvidados os precedentes da corte
acerca da matéria, bem como realizadas releituras que se afastam completamente
do teor original;
c)
parece certo que o Supremo Tribunal Federal já definiu pela prevalência da
negociação coletiva em detrimento da lei trabalhista;
d)
Entretanto, os contornos da prevalência do negociado sobre o legislado não
parecem estar ainda definidos. Se no caso da dispensa incentivada houve a
problematização da falta de liberdade sindical no ordenamento jurídico
brasileiro, porém no caso das horas in itinere admitiu-se expressamente a
derrogação de norma de proteção, justificada pela negociação sobre outras
parcelas, sem se verificar, no entanto, qualquer paridade entre o que foi
concedido e o que foi adquirido na troca. Na discussão do caso da jornada de
doze horas por trinta e seis de descanso, no entanto, apareceram várias linhas
de pensamento, desde a que a negociação coletiva não poderia ultrapassar os
limites impostos pela lei, salvo previsto na Constituição Federal, que parece
ser a posição do Ministro Marco Aurélio, até o extremo, trazido pelo Ministro
Luís Roberto Barroso, que é a possibilidade de derrogação da lei, em alguns
casos, mesmo por acordo individual, devido à livre iniciativa e liberdade do
empregador de contratar.
e)
a última conclusão é que a ideologia da flexibilização está a nortear as
decisões do Supremo Tribunal Federal, que se dão em caráter eminentemente
político, afastando-se sobremaneira do campo jurídico e da Constituição da
República. Assemelha-se aqui ao mito do julgamento de Páris, no qual este, um
mortal de Troia, foi incumbido por Zeus – que não quis tomar nenhum partido – a
escolher a mais bela entre três deusas – Hera, Atena e Afrodite -, sendo que a
vencedora ficaria com a maçã de ouro oferecida por Éris, a deusa da discórdia.
As deusas passaram a tentar seduzir Páris para ser a escolhida e ganhar a maçã
de ouro: Hera prometeu tornar Páris o rei da Europa e da Ásia; Atena lhe
ofereceu sabedoria e a arte da guerra; Afrodite ofereceu a Páris a mulher mais
bonita do mundo, Helena. Páris escolheu a oferta de Afrodite, que levou a maçã
de ouro, e Páris seguiu para Troia com Helena. O problema é que Helena era
casada com o rei Menelau, de Esparta. A fim de buscar Helena, empreendeu-se a
grande Guerra de Troia. O mito nos ensina a relacionar as consequências com
nossas escolhas. Ao escolher a beleza – a ideologia -, e desprezando a ordem
civil e a sabedoria, representadas pelas outras deusas, o Supremo Tribunal
Federal acaba por causar imenso desequilíbrio nas relações de Trabalho. Helena
– ou as relações de trabalho -, é esposa das forças sociais, e o seu rapto
poderá favorecer o desequilíbrio da sociedade. Guerras podem vir, não no
sentido histórico-mitológico, mas sob a forma de graves distúrbios que não
deveriam ser encorajados – muito menos criados – pela Corte Suprema.
Rodrigo
Carelli - Professor de Direito do Trabalho na Faculdade Nacional de Direito -
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Procurador do Trabalho no Rio de
Janeiro
Publicado
originalmente em CARELLI, Rodrigo de Lacerda. O Supremo Tribunal Federal e o
julgamento de Páris : o embate entre a Constituição, o direito do trabalho e a
ideologia em relação à prevalência do negociado sobre o legislado. Revista do
Tribunal Superior do Trabalho, São Paulo, SP, v. 82, n. 4, p. 302-312,
out./dez. 2016.
Ilustração: FRANÇOIS
XAVIER FABRE, Julgamento de Páris.
[1]
VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. In: Revista Direito GV, São Paulo, p.
441-464, jul-dez. 2008.
[2]
GARAPON Antoine. Le gardien des promesses. Justice et démocratie. Paris: éd.
Odile Jacob, 1996; WERNECK VIANNA, Luiz. A judicialização da política no
Brasil. In: WERNECK VIANNA, Luiz et alii. A judicialização da política e das
relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1999, p. 47–70;
WERNECK VIANNA, Luiz. A judicialização das relações sociais. In WERNECK VIANNA,
Luiz et alii. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
Rio de Janeiro: Editora Revan, 1999, p. 149–156; HIRSCHAL, Ran. Towards
juristocracy: the origins and consequences of the new constitutionalism.
Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2004.
[3]
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/06/1778635-temer-quer-lancar-medidas-de-curto-prazo-na-economia-diz-padilha.shtml,
acesso em 16/09/2016.
[4]http://g1.globo.com/economia/noticia/2016/07/ate-o-fim-do-ano-governo-vai-enviar-proposta-trabalhista-e-de-terceirizacao.html.
[5]
http://oglobo.globo.com/economia/proposta-de-reforma-trabalhista-preve-negociacao-ate-de-ferias-13-salario-19864000,
acesso em 16/09/2016.
[6]
http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,reforma-trabalhista-proposta-por-temer-quer-alterar-clt-e-ampliar-terceirizacao,10000074765,
acesso em 16/09/2016.
[7]
http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/06/1782556-governo-temer-quer-acelerar-terceirizacao-de-legislacao-trabalhista.shtml,
acesso em 16/09/2016.
[8]
http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,reforma-trabalhista-preve-contrato-por-produtividade-e-jornada-de-ate-12-horas-por-dia,10000074826,
acesso em 16/09/2016.
[9]
http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,planalto-ficou-irritado-com-declaracoes-de-ministro-sobre-reforma-trabalhista,10000074910,
acesso em 16/09/2016.
[10]
http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/09/1811894-ministerio-do-trabalho-faz-acao-em-redes-sociais-para-esclarecer-fala-de-ministro.shtml,
acesso em 16/09/2016.
[11]
http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/09/temer-nega-boatos-de-que-va-destruir-saude-e-direitos-trabalhistas.html,
acesso em 16/09/2016.
[12]
http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/09/1811978-centrais-sindicais-criticam-reforma-trabalhista-e-planejam-protesto.shtml,
acesso em 16/09/2016.
[13]
Recurso Extraordinário nº 590415/SC, fls. 16-17.
[14]
http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2629027
[15]
http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-09/para-ministro-decisoes-do-stf-fortalecem-defesa-do-acordado-sobre-o-legislado,
acesso em 19/09/2016. Afirmou o Ministro da Indústria, Comércio Exterior e
Serviços, Marcos Pereira: “Quero crer que essas decisões judiciais, tanto do
Superior Tribunal do Trabalho [TST] quanto do Supremo Tribunal Federal [STF],
deverão servir para fortalecer o nosso debate de defender que se aprove a
prevalência do acordado sobre o legislado”. “Estou trabalhando para que a gente
pegue essas decisões e avance, se encoraje. Se a Justiça do Trabalho e a
Suprema Corte do país já estão reconhecendo, por que não avançarmos também no
âmbito do Legislativo?”
[16]
RE 895759/PE. As vantagens listadas no acórdão em troca da supressão das horas
in itinere foram: “tais como ‘fornecimento de cesta básica durante a
entressafra; seguro de vida e acidentes além do obrigatório e sem custo para o
empregado; pagamento do abono anual aos trabalhadores com ganho mensal superior
a dois salários-mínimos; pagamento do salário-família além do limite legal;
fornecimento de repositor energético; adoção de tabela progressiva de produção
além da prevista na Convenção Coletiva”.
[17]
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=325336.
[18]
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=342523.
[19]
https://www.youtube.com/watch?v=lobW8tTUgVk.
[20]
http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-09/pauta-trabalhista-marcara-primeira-sessao-de-carmen-lucia-na-presidencia-do,
acesso em 19/09/2016.
[21]
Sobre o ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal, em especial em relação à
questão da terceirização, vide o nosso artigo “O Ativismo Judicial do Supremo
Tribunal Federal e o debate sobre a terceirização”, in Revista do Tribunal
Superior do Trabalho, Brasília, vol. 80, nº 3, jul/set 2014.
http://jornalggn.com.br/noticia/o-supremo-tribunal-federal-e-o-julgamento-de-paris-por-rodrigo-carelli
Nenhum comentário:
Postar um comentário