As
considerações fornecidas com exclusividade para Carta Maior sobre a sentença
condenatória do juiz Sergio Moro, de Curitiba, no caso do ex-presidente Luis
Inácio da Silva, são de autoria do advogado brasileiro Egas Moniz-Bandeira, 31,
há seis anos integrante da equipe de um dos mais conceituados escritórios de
Zurique, na Suíça, o Baumgarten Machler, apontado como uma das bancas de maior
prestígio em Direito penal e Direito penal econômico.
Egas
se encontra licenciado temporariamente da firma, para se dedicar ao seu
doutorado sobre História Chinesa, na Universidade de Heidelberg e na
Universidade de Tohoku (Japão).
Em
Baumgarten Machler, Moniz-Bandeira faz parte do grupo de advogados da área de
Direito civil e comercial embora o escritório seja mais conhecido pela sua
atuação em Direito penal, nos casos de corrupção e lavagem de dinheiro.
Estas
são as considerações do advogado brasileiro sobre alguns pontos polêmicos da
sentença do juiz Moro:
Sobre a instituição
da delação.
‘’Quanto
à delação premiada, a sentença declara: ‘Quem, em geral, vem criticando a
colaboração premiada é, aparentemente, favorável à regra do silêncio, a omertà
das organizações criminosas, isso sim reprovável. ’ (p. 47). Ora, de lege facta, a colaboração premiada
foi permitida pela lei 12850, de 02 de agosto de 2013. Mas a frase do juiz Moro
não cabe na sentença e chega a ser ofensiva contra muitos juristas de sólida
reputação que criticam a colaboração premiada. Os sistemas jurídicos
continentais, em geral, prevêem a possibilidade de levar em consideração, em
sentença penal, a conduta do réu após cometer o crime. Mas o que é alheio aos
sistemas de Direito continental é o poder de se negociar a pena de antemão,
inclusive por colaboração premiada. Sob influência do Direito anglo-americano,
negociações sobre a pena têm sido introduzidas às leis de vários países, mas em
todos eles a mudança legal é controversa e alvo de muitas críticas. Na
Alemanha, a regra existia entre 1989 e 1999. Após troca de governo, foi
reintroduzida em 2009. Na Suíça, uma norma muito limitada foi introduzida no
Código Penal em 1994: de acordo com o art. 260B, o juiz pode mitigar (mas não
completamente perdoar) a pena pelo crime de "participação em organizações
criminosas" (não por outros) se o autor do crime "buscar evitar que a
organização continue a atuar". Há dois meses, o governo suíço decidiu
expandir a regra para organizações terroristas. No Japão, negociações sobre a
pena foram introduzidas à lei em 2016 e serão permitidas a partir de 2018. Em
todos os países, as colaborações premiadas, especialmente quando permitem a
absolvição de quem cometeu a pena, sofrem severas críticas por várias razões.
Entre elas, podem facilitar falsas acusações e ferem o princípio de igualdade
e/ou a pena pode se tornar incalculável e não representar mais a culpa
individual.’’
Sobre o domínio de
fato.
‘’Quanto
à teoria do domínio de fato, é interessante que a sentença nem mencione Claus
Roxin. Na realidade, ela não é aplicável no caso. A teoria foi desenvolvida por
Roxin e Friedrich-Christian Schroeder para os casos do holocausto. Em
1963, Roxin proferiu uma palestra,
‘Crimes no âmbito de aparatos de poder’ na qual concordou com Schroeder em seu
livro de 1965, ‘O autor atrás do autor do crime’. Os dirigentes nazistas haviam
planejado os crimes do holocausto, mas não os haviam executado pessoalmente. De
acordo com a teoria de Roxin e Schroeder, não eram meros participantes, mas
autores. O debate sobre esse tipo de caso tem sido extremamente intenso e
produziu uma vasta literatura acadêmica. De qualquer modo, a teoria de Roxin
não é aplicável aos casos em pauta, e foi aplicada erroneamente nos casos do
Mensalão, como o próprio Roxin constatou quando da sua visita ao Brasil. A
teoria do "domínio de fato" não afeta a necessidade de provas. Quem
está no topo de uma organização não se torna automaticamente criminoso porque
algum subordinado tenha cometido um crime. Pelo contrário; é necessário provar
o domínio sobre o crime em questão e como os crimes foram organizados e
"orquestrados" pelo "autor atrás do autor".
Sobre grampos em
telefone de escritório da defesa do réu.
“’O
juiz mandou grampear o telefone da banca de advogados de Lula como se fosse o
telefone da empresa de palestras usada pelo ex-presidente. Depois, ignorou
vários ofícios da operadora de telefonia avisando que o número não pertencia à
empresa de palestras e sim ao escritório dos seus advogados, fato pelo qual
teve que se explicar ao STF. Mesmo se aceitarmos a afirmação do juiz de que ele
não agiu de má fé, o fato de ter ignorado os documentos (não só um) no seu caso
principal, levanta dúvidas sobre os métodos de trabalho e o profissionalismo
dele e da sua equipe. ’’
A autodefesa de um
suposto partidarismo político do juiz.
‘’Moro
incluiu esse ponto na sentença; é claro que não acusaria a si próprio de ser
partidário. Mas pouco importa essa auto-avaliação; o que importa é o seu
comportamento de fato. Eu assisti a uma
palestra de Moro na Universidade de Heidelberg onde foi questionado sobre a sua
foto com Aécio Neves. Ele se defendeu ao
dizer que se tratava de um evento público e que o senador não é réu em
nenhum dos seus processos. Ora, mesmo que Aécio Neves não seja seu réu, as
fotos mostram um forte viés partidário da parte do juiz. Se realmente não fosse
partidário, ele evitaria tais contatos políticos. E esse é só um exemplo
relativamente inocente. Mais grave é o seu comportamento jurídico, inclusive em
relação às delações premiadas. ’’
Sobre
reação do juiz às alegações da defesa de Lula. ‘’Para não ferir o princípio de
ampla defesa, o juiz reagiu às alegações feitas pela defesa. Mas outra questão
é: se as defesas do autor são convincentes. ’’
Sobre a repercussão
do caso na Europa.
‘’Não
percebi muita repercussão entre colegas europeus. Os jornais noticiaram o caso,
muitos sendo bastante críticos. O jornal
Spiegel, por exemplo, escreve: ‘Em seu julgamento, Moro confirma aquilo pelo
que há muito tempo é criticado: o desdobramento jurídico do maior escândalo de
corrupção da história do Brasil segue critérios políticos e não jurídicos. ’ Os
jornais, de modo geral, têm escrito mais sobre a Venezuela do que sobre o
Brasil.’’
Sobre o processo em
outras cortes.
‘’É
possível que a defesa de Lula leve o caso para a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, em Washington, que pode examiná-lo. Ao contrário do sistema
europeu de proteção dos Direitos Humanos, pessoas naturais não podem levar o
caso diretamente à Corte Interamericana de Direitos Humanos, em San José. Isso
só ocorrerá se a Comissão submeter o caso à Corte. Alternativamente, a defesa
de Lula também pode levá-lo ao Comitê de Direitos Humanos, em Genebra, como já
fez no ano passado. ’’
Sobre a comparação
com Eduardo Cunha. “Moro diz o seguinte:
‘Ele
[Cunha] também afirmava como álibi que não era o titular das contas no exterior
que haviam recebido depósitos de vantagem indevida, mas somente 'usufrutuário
em vida'.
Obviamente,
ser ‘usufrutuário em vida’ já é uma grande (!) vantagem. Lula, por contrário, não só nega a
titularidade, mas qualquer tipo de vantagem, até mesmo a posse.
Além
disso, são duas situações juridicamente diferentes. No caso do Lula, trata-se
de um imóvel; no caso de Cunha, contas bancárias. As regras para aquisição de
imóveis diferem das regras para aquisição de contas bancárias A comparação
realmente não procede. No caso de imóveis, a propriedade é registrada em
registro público. Não há registro com o nome de Lula. Seria, em tese, mesmo
possível que o proprietário, para disfarçar-se e não aparecer no registro,
registrasse o imóvel no nome de uma empresa por ele controlada. No caso do
Lula, não há indício para tal. A mera posse (domínio de fato) também seria uma
vantagem relevante, mas não vejo provas suficientes que comprovem a posse. No
caso de contas bancárias, como a de Cunha, não há registro público sobre a
propriedade. Há sim, formulários do banco onde aparecem as assinaturas do
próprio Cunha. A interpretação de tais formulários depende das circunstâncias e
pode ser difícil (bem mais do que a interpretação do registro público de
imóveis), mas no caso dele, as provas que temos deixam bem claro que ele era o
beneficiário efetivo da conta. Logo, se compararmos os dois casos, temos que
chegar à conclusão de que há provas no caso de Cunha e não há no caso de Lula.
Sobre ‘’a propriedade
de fato’’.
“Este
ponto é muito importante: a ‘propriedade de fato’. Tal categoria jurídica não
existe no Brasil - ou alguém é proprietário ou não é. A propriedade é uma
categoria jurídica e não de fato. É o direito do dono de fazer o que bem achar
com a coisa (art. 1228 do Código Civil). Em geral, a aquisição da propriedade
se dá por registro de título (existem algumas outras formas, como a usucapião, que
não são aplicáveis aqui). Aqui, não
houve registro de título. A categoria factual correspondente é a posse, norma
no art. 1196 do Código Civil. De acordo com a norma, o possuidor ‘tem de fato o
exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade. ’ Quer dizer, o possuidor é
aquele que tem as chaves do apartamento e o usa de fato. O proprietário pode
ser o possuidor, ou pode ser outra pessoa (no caso de aluguel, por exemplo).
Não vejo provas suficientes de que o Lula tenha possuído o apartamento em algum
momento. ’’
Sobre a cronologia do
caso.
“O
caso se deu, realmente, após o fim do mandato de Lula. Crime de corrupção
pressupõe uma vantagem de cada lado. Como a Lava Jato não encontrou indícios de
uma contrapartida da parte de Lula, o juiz argumenta que ‘é suficiente que o
agente público entenda que dele ou dela era esperado que exercitasse alguma
influência em favor do pagador assim que as oportunidades surgissem’. Fala
claramente de uma contrapartida a ser dada no futuro. Acontece que, segundo a
denúncia, Lula recebeu a obra em 2009, três meses antes do fim do seu mandato.
A obra só foi concluída em 2013, vários anos depois de Lula deixar a
presidência. Em 2013, Lula não era mais agente público e não tinha mais poder
de decisão direto. Como é que a construtora esperava que Lula, no futuro,
exercitasse alguma influência em seu benefício? O juiz omite completamente uma
discussão desse assunto.’’
Sobre parcialidade na
avaliação da prova testemunhal.
''Um
ítem importante que se vê nos embargos é a parcialidade do juiz no ponto da
avaliação da prova testemunhal. Segundo o princípio da ampla defesa, o juiz
teria que ter discutido todos os testemunhos colhidos, mas escolheu ignorar
aqueles que se alinhavam à posição da defesa, somente considerando outros,
aqueles que convêm à sua posição. Cabe ressaltar que a sentença baseia-se,
principalmente, no depoimento de Léo Pinheiro, que é corréu. O corréu não é
testemunha e portanto não tem obrigação de falar a verdade.
Sobre o sequestro de
bens de Lula.
“Foi
um sequestro cautelar. Medidas cautelares têm como requisito que haja um
‘perigo na demora’, ou seja, o perigo de que algum dano aconteça caso a medida
não seja tomada imediatamente. O juiz parece ter ignorado esse requisito
fundamental uma vez que não justificou a possível dilapidação do patrimônio. O
juiz simplesmente ‘reputou prudente sentenciar o caso antes’. O juiz gosta de
falar de ‘prudência’ em vez de se basear nos requisitos legais.’’
http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Principios-Fundamentais/Do-dominio-do-fato-a-propriedade-de-fato-/40/38482
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