A
advogada e militante da área de Direitos Humanos Nathaly Munarini Otero analisa
em artigo a sentença do juiz federal Sérgio Moro que condenou o ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva a nove anos e meio de prisão na ação penal do
"triplex do Guarujá".
A
advogada critica a decisão do juiz contra Lula à luz dos pensamentos de Cesare
Beccaria, considerado o principal representante do Iluminismo penal, e filósofo
Michael Foulcault.
"A
tríade punitiva amplamente instalada em um processo baseado em convicções,
opiniões políticas e perseguições. Não é só um ser humano que perde a
oportunidade de um julgamento justo, é a Justiça, que sendo obstruída do seu
caminho natural de equidade acima de tudo, é colocada a postos de anseios
pessoais e ardilosos", diz o trecho do artigo.
Leia, abaixo, o texto na
íntegra.
DE BECCARIA
A FOUCAULT: ASPECTOS POR DETRÁS DA SENTENÇA QUE CONDENA LULA À PRISÃO
Nathaly Conceição
Munarini Otero
Analisando a fundamentação da
sentença sob a ótica beccariana e foucaultiana da punição, partindo-se das
estruturas normativas punitivistas dos séculos passados, sobretudo do século
XVI até meados do XVIII, é possível identificar uma pessoalidade muito
significativa em relação à decisão do então magistrado Sérgio Moro no processo
que condenou Lula à prisão. É sabido que a ânsia por punição em nosso país é
uma característica muito presente no sistema penal, sobretudo acerca de casos
envolvendo pessoas públicas. A mídia completa este cenário, fomentando a
necessidade de ver na prisão todos aqueles que são acusados de algum crime,
ainda que tudo indique que sejam inocentes.
Neste sentido, no que tange à
imparcialidade do juiz, demonstra-se imprescindível que o mesmo evite manter
contato com a mídia a respeito dos temas concernentes nos processos que atua,
por assim dizer, seria um acordo de cordialidade com a própria Justiça, muito
antes que com as partes no processo envolvidas. Aos magistrados não cabe o
direito “[...] de prender discricionariamente os cidadãos, de tirar a liberdade
ao inimigo sob pretextos frívolos, e, por conseguinte de deixar livres os que
eles protegem, mau grado todos os indícios do delito.” (BECCARIA, 2015, p.30)
A sentença proferida pelo
magistrado Sérgio Moro, num primeiro momento e como bem alegou à defesa de Luís
Inácio Lula da Silva, é tendenciosa. Em sede de inquérito policial, a defesa de
maneira muito clara e concisa, apresentou a exceção de suspeição, instituto
presente no artigo 95 do Código de Processo Penal, que foi negada, também em
fase recursal.
O Egrégio Tribunal Regional
Federal da 4ª Região, que julgou improcedente o pedido de suspeição, entendeu
razoável o envolvimento do juiz frente à operação Lava Jato e que não quebrou a
imparcialidade do magistrado a ampla cobertura jornalística nas investigações,
manifestações de opinião pública do magistrado (favoráveis ou contrárias),
estar em pesquisas eleitorais que não tenha anuído ou ter publicado artigo em
revista cientifica a respeito da Operação Mãos Limpas na Itália.
Sob o ponto de vista jurídico,
há que se falar numa deficiência argumentativa, pois resta claro que o
magistrado, por diversas vezes, discursou sobre a operação em questão, além de
pousar para fotos ao lado de adversários políticos do réu Luiz Inácio Lula da
Silva, bem como tornou-se uma celebridade, por assim dizer, em nosso país e
internacionalmente.
É impossível não questionar o
liame entre a imparcialidade de uma autoridade que se submete a tais condutas,
à uma intenção pessoal de expor um acusado, no qual trata-se do ex-presidente,
em que na mesma proporção possui popularidade e é bem quisto pelo povo,
principalmente os mais humildes, que sofrem de uma tremenda impopularidade e
ódio na classe média e rica. É impossível não pensar na família e o
constrangimento destes. É impossível não lembrar que em meio ao turbulento
processo sempre entregue em primeira mão à Globo, a esposa de Lula, dona Marisa
Letícia vem a falecer. É inocente pensar
que o princípio da imparcialidade do juiz fora respeitado nas linhas de uma
sentença judicial baseada em convicções e, nas suas entrelinhas, pautada num
intenso clamor social. E é justamente sobre este clamor social o segundo ponto
a ser tratado aqui.
Na análise foucaultiana da
punição, o clamor do povo, é por si só, muitas e muitas vezes a sentença
antecipada de uma conduta supostamente delituosa. Por assim dizer, o povo
decide antes se o acusado é culpado ou não. Aliás, o estigma que um acusado
carrega, ultrapassa até mesmo uma sentença absolutória, ele é a marca eterna de
uma culpa projetada por uma plateia de espectadores que julgam com o juiz. O
Brasil e o mundo já sabiam a sentença de Moro, antes mesmo de ser prolatada.
Não por estar repleta de provas, mas no cotidiano da vida o próprio juiz
deixava escapar seu animus nas capas das revistas, manchetes e jornais, rádios,
entrevistas e até como lidava com a fama, mesmo sendo um juiz e, não, um ator
Global.
Tratando-se da punição de uma
sentença à época de um sistema penal arcaico, o suplício das masmorras do
século XVI era uma tortura corporal ao apenado, na qual o sofrimento por este
supostamente causado a outrem, era reproduzido em seu corpo, às vistas do
público. Nos rituais de suplícios, a presença do povo é requisito
imprescindível. Suplício secreto, não é suplício. É preciso envolver o povo,
ainda que ele pouco entenda das leis e do crime. “Procurava-se dar o exemplo
não só suscitando a consciência de que a menor infração corria sério risco de
punição; mas provocando um efeito de terror pelo espetáculo do poder
tripudiando sobre o culpado.” (FOUCAULT, 2013, p.56).
Passados os séculos, no
presente caso podemos perceber a inquietação jurídica pautada por intenções pessoais
de um magistrado parcial, na qual o suplício dá lugar a um julgamento
midiático. Da apresentação da denúncia processual feita numa coletiva aberta à
mídia, num hotel e com o apoio de um Power-Point ilustrado à sua sentença sendo
divulgada à imprensa de forma mais célere que para o advogado da parte mostra
que há algo diferente neste julgamento. Quando Lula alega perseguição e
parcialidade, há uma enxurrada de argumento de que o mesmo não está acima da
lei e que deve ser julgado como qualquer brasileiro, mas da celeridade à forma
como o processo é apresentado à sociedade é totalmente diferente dos processos
que envolvem quaisquer brasileiros. Quem dera se o judiciário fosse tão célere
como os processos que trazem Luiz Inácio Lula da Silva.
Quais às intenções em expor um réu, que
apesar dos pesares, tem um amplo apoio popular? Há uma certa obscuridade quando
pensamos em como certas conversas grampeadas entre Lula e seus familiares,
advogados e companheiros foram divulgadas sem quaisquer respaldos jurídicos,
sem falar em uma coação coercitiva assinada por um juiz na qual já havia sido
informado que o réu se demonstrava solícito quanto à seus depoimentos.
A mídia utilizada para corromper
um processo é o que nos causa maior espanto. A lógica da punição amparada por
uma comoção social que é alimentada por inverdades, faz parte do cenário penal
há séculos. Junto ao sentenciante terá uma carga elevada de moralidade pública.
“Assim que o crime for cometido, e sem perda de tempo, virá a punição,
traduzindo em ações o discurso da lei e mostrando que o Código, que liga as
ideias, liga também as realidades. A junção imediata no texto, deve sê-lo nos atos."
(FOULCAULT, 2013, p. 106)
Expor um acusado para que seja
julgado pelo povo é uma lógica perversa que perpetua há séculos no sistema
penal mundial. O interrogatório, é se não, um meio de escrachar o ser humano,
muito mais do que obter verdades honrosas assinadas a termo. As audiências
televisionadas que envolviam Lula e suas testemunhas, eram também dias de
julgamentos em todo o Brasil. Na república que guarda como fundamento a
dignidade da pessoa humana é preciso ter redobrado cuidado com o
interrogatório. É um meio difícil de se aproximar do conhecimento da verdade
“[...] por isso os juízes não devem recorrer a ela sem refletir. Nada é mais
equívoco. Há culpados que têm firmeza suficiente para esconder um crime
verdadeiro...; e outros, inocentes, a quem a força dos tormentos dez confessar
crimes que não eram culpados. (FOULCAULT, 2013, p. 41).
A masmorra moderna corre o risco
de se repetir por meio da opinião pública. Conjugada por um só verbo: punir.
Sem antes averiguar-se, sem antes ouvir. E ainda que o devido processo legal
seja respeitado, a ânsia por condenar é o que movimenta parte dos poderes
tomados por vinganças políticas. “O clamor público, a fuga, as confissões
particulares, o depoimento de um cúmplice do crime, as ameaças que o acusado
pode fazer, seu ódio inveterado ao ofendido, um corpo de delito existente, e
outras presunções semelhantes, bastam para permitir a prisão de um cidadão.
Tais indícios devem, porém, ser especificados de maneira estável pela lei, e não
pelo juiz, cujas sentenças se tornam um atentado à liberdade pública quando não
são simplesmente a aplicação particular de uma máxima geral emanada do código
de leis.” (BECCARIA, 2015, p.31)
A sentença, desprovida de
argumentação sólida e como já falado anteriormente, recheada de convicção, é um
documento que empurra mais um ser humano à punição injusta. Indo ao encontro
das alegações finais, resta claro que Lula é vítima de uma perseguição política
numa "guerra jurídica" ou de “lawfare", "com apoio de
parcela expressiva da mídia, bem como, uma gama de direitos individuais, foram
violados, por meio de uma devassa na
vida privada dele e de seus familiares.
Em uma das capas da revista Isto é,
fora colocado o Juiz Sérgio Moro em posição de adversário, “lutando” contra
Lula[1]. Isso demonstra o parágrafo da defesa, de modo que, uma revista
amplamente assinada no Brasil, teve total liberdade de colocar um magistrado
como opositor de um réu. Para além do baixo comprometimento da mídia com a
democracia, o que assusta é um juiz de primeira instância que ao julgar um
ex-presidente, sabendo que sua decisão pode interferir drasticamente no cenário
político do país, não toma as medidas cabíveis para evitar que sua imagem seja
amplamente divulgada para, nitidamente, prejudicar o réu.
Pergunta-se, quando um juiz pode
tornar-se parte de um processo? Opinar sobre ele em canais e em redes sociais,
palestrar, ainda que indiretamente, sobre uma operação tão complexa? Qual o
ponto de conexão entre a parcialidade de uma autoridade, a opinião pública e
uma condenação já esperada por boa parte da população?
Na dita sentença, o presente juiz
Sérgio Moro guarda parte dela para se defender das imputações da conduta de
compactuar diversas vezes com a imprensa: “Em ambiente de liberdade de
expressão, cabe à imprensa noticiar livremente os fatos. O sucessivo noticiário
negativo em relação a determinados políticos, não somente em relação ao
ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, parece, em regra, ser mais o reflexo
do cumprimento pela imprensa do seu dever de noticiar os fatos do que alguma
espécie de perseguição política a quem quer que seja. Não há qualquer dúvida de
que deve-se tirar a política das páginas policiais, mas isso se resolve tirando
o crime da política e não a liberdade da imprensa.” Este é o entendimento dele
que contraria a imparcialidade posta na constituição. Como um juiz pode
defender uma imprensa em um processo crime tão relevante, na qual um dos réus
foi escrachado por esta mesma imprensa?
Reflexões como estas norteiam o
sistema punitivista há vários séculos. O julgamento de uma conduta, muitas
vezes tem mais a dizer sobre o julgador, do que sobre o julgado. “O poder levou
os juízes a julgar coisa bem diversa do que crimes: foram levados em suas
sentenças a fazer coisa diferente de julgar; e o poder de julgar foi, em parte,
transferido a instâncias que não são as dos juízes da infração.”(FOCAULT, 2013,
p.25)
A tríade punitiva amplamente instalada
em um processo baseado em convicções, opiniões políticas e perseguições. Não é
só um ser humano que perde a oportunidade de um julgamento justo, é a Justiça,
que sendo obstruída do seu caminho natural de equidade acima de tudo, é
colocada a postos de anseios pessoais e ardilosos.
É na lógica beccariana de Justiça, que
fica claro entender um sistema criminal injusto e covarde. A jurisprudência
criminal tem afastado da ideia de justiça e aproximado da força e do poder.
Como se nela residisse a solução do problema criminal. O suplício é a prisão
que detém o acusado. “[...] é porque, finalmente, as forças que defendem
externamente o trono e os direitos da nação estão separadas das que mantêm as
leis no interior, quando deveriam estar estreitamente unidas. (BECCARIA 2015,
p.31).”
Quem perde é a Justiça. E quem ganha?
[1] FERREIRA,
Wilson. A construção do super-herói amoral nas capas de “Veja” e “IstoÉ”.
Disponível em: Acessado em: 29/07/2017
https://www.brasil247.com/pt/247/brasil/308980/Advogada-analisa-senten%C3%A7a-de-Moro-contra-Lula.htm
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