Em
bom momento o Supremo interrompeu a votação sobre delações premiadas, num
debate que será retomado na quarta-feira.
Apesar
do placar de 7 a 0, que indica uma maioria matemática já formada num plenário
de onze ministros, a pausa pode inspirar uma reflexão necessária, que envolve
uma questão essencial da democracia.
Por
trás desse debate, não se discute uma forma mais eficaz de combater a corrupção
- objetivo com o qual o país inteiro está de acordo, ainda que existam
divergências naturais quanto aos métodos empregados.
Está
em discussão a preservação do Supremo Tribunal Federal como um dos três poderes
da República - aquele que não deve acusar nem defender, mas julgar, atividade
que deve se caracterizar pelo equilíbrio e isenção.
O
debate envolve o caráter das delações da Lava Jato, assunto que tem gerado
desconforto e mal-estar em áreas crescentes do Judiciário e mesmo entre aliados
de primeira hora do golpe. Depois de assistir de camarote às agruras de
personalidades ligadas ao Partido dos Trabalhadores, temem que seus amigos do
peito sejam levados para as "masmorras de Curitiba", como disse Teori
Zavaski, certa vez.
A
proposta em debate pretende dar garantias aos delatores. Uma vez aprovadas pelo
ministro relator - no caso, Edson Fachin - as delações não poderão ser
revistas, nem modificadas nem anuladas até o momento da sentença. Detalhe: o
relator nem julga o mérito da delação. Verifica se não foram cometidos deslizes
de forma, que são importantes - envolvem o caráter voluntário do depoimento por
exemplo - mas não definem tudo, é claro.
Pela
decisão de ontem, parece aceitável, para a maioria do Supremo, receber um
pacote pronto, elaborado pelo Ministério Público Federal.
É
uma mudança de fundo, quando se sabe que o MP não cumpre uma função neutra no
Judiciário.
Comanda
a Polícia Federal e é o responsável pela acusação. Por causa disso, a obrigação
legal dos procuradores é explorar toda e qualquer possibilidade de descobrir um
crime, mesmo a mais remota. Seus integrantes têm um grau de autonomia funcional
com poucos paralelos no mundo -- nenhum paralelo, segundo determinados
analistas. Do lado oposto, como se sabe, ficam os advogados que representam o
direito de defesa.
A
todo juiz, da primeira instância ao Supremo, cabe exibir uma postura
equidistante, para ouvir as partes e julgar conforme a Constituição em vigor. É
um cuidado ainda mais necessário num país onde o MP adquiriu uma musculatura
especialmente poderosa.
Num
país onde o Ministério Público segue a regra que gosta de definir como "em
dúvida, pró-sociedade", cabe ao juiz assegurar o mandamento "em
dúvida, pró-réu," que sintetiza a presunção da inocência.
Ao
abrir mão do direito de reexaminar uma delação, a balança que o Supremo deveria
regular fica inteiramente desequilibrada. Não é qualquer mudança.
Na
saída da ditadura militar, o país aprovou, a partir do voto popular, uma
Constituição garantista, na qual os direitos e garantias individuais são o
pilar do sistema jurídico e, por essa via, das liberdades públicas. Com a
mudança projetada ontem, aponta-se para uma medida do universo punitivista,
onde predomina a acusação e a vontade de punir.
Você
até pode achar que é assim mesmo, que a roubalheira está demais e é preciso
fazer alguma coisa de qualquer maneira. A experiência ensina que este é o
caminho seguro para o desastre. Usar situações de excepcionais para justificar
decisões excepcionais é o caminho óbvio para estados de exceção -- o nome
científico para ditaduras e tiranias.
No
período do Terror de Stalin, os tribunais se limitavam a referendar as decisões
do procurador Andrey Vychinzky, especialista em confissões e delações que
levaram 200 000 pessoas a morte.
A
decisão de ontem ilustra um aspecto importante do momento atual. Desmoralizado
por denúncias de corrupção devastadoras, combatido por manifestações cada vez
mais amplas que pedem sua saída imediata, Michel Temer encontra-se em situação
insustentável. Sua sobrevivência depende de um equilíbrio de forças cada vez
mais precário.
Os
aliados que articularam o golpe contra Dilma se encontram divididos entre duas
opções. A possibilidade de garantir sua sobrevivência até o fim do mandato,
cada vez mais difícil. E a organização de um golpe dentro do golpe, que seja
capaz de impedir que a derrocada do governo abra caminho para a antecipação de
eleições-diretas.
Essa
situação explica o movimento da Globo e aliados para, no interior das
instituições e em linha direta com uma fatia importante do Supremo, promover um
golpe dentro do golpe. A receita é livrar-se de um presidente que se
transformou num perigo público e, ao mesmo tempo, reforçar a artilharia contra
eventuais forças que podem liderar a luta por diretas -- a começar por Lula.
Uma operação de alta precisão, diga-se.
É
curioso notar que o principal argumento usado no STF pela preservação das
delações como um acordo imutável entre o Estado e delinquentes de grande
fortuna é o da lealdade.
Diz-se
que o Estado deve ser leal a seus compromissos. Se fez um acordo, deve cumprir
o acertado.
Parece
uma conversa entre cavalheiros. Confesso que quase fiquei emocionado.
O
mesmo argumento pode ser lido nos jornais de hoje.
Vamos
entender bem o que está em curso. Mesmo que uma maioria de ministros considere
absurdo um acordo que garante imunidade absoluta para malfeitores que
resolveram delatar - caso dos irmãos Joesley e sócios mais próximos - o STF não
tem o direito de voltar atrás. Ainda que apareçam fatos novos - e sabemos como
o nosso Brasil é rico em novidades - nada se poderá fazer até o momento da
sentença. O Supremo assiste em silêncio, em posição subalterna.
Dita
no meio de uma seção da tarde ilustrada por palavras incompreensíveis para
99,9% da plateia, a palavra "lealdade" é de fácil compreensão e
envolve valores que todos respeitam. Ninguém quer viver num pais onde o Estado
não cumpre o que combina, certo?
O
problema é que a palavra "lealdade" envolve um valor essencial da
condição humana e do convívio em sociedade. Seja nas relações entre marido e
mulher, patrão e empregado, governantes e governados, só funciona num sistema
onde envolve reciprocidade.
E
aí nós chegamos a um dado crucial. O mesmo STF que está prestes a aprovar uma
jurisprudência em nome da lealdade devida a grandes tubarões da corrupção, que
falam de uma conta de 150 milhões de dólares na Suíça como se fosse uma
caderneta de poupança no banco da esquina, não é capaz de assegurar o
cumprimento de palavras que se encontram escritas na Constituição.
Se
você está preocupado com liberdades individuais, pense num sistema carcerário
que mantém 40% dos prisioneiros em regime de prisão provisória, contrariando a
regra elementar de que uma pessoa só pode ser presa depois que a sentença
transitou em julgado.
Se
tem uma dívida a receber, já reconhecida pelo próprio Estado, não custa
recordar os bilhões de reais acumulados na fila dos precatórios, para centenas
de milhares de homens e mulheres - alguns cálculos falam em 3% do PIB, rolados
ano após ano, numa deslealdade regular, instituída.
Na
luta para conseguir um exame urgente no SUS, pergunte pelo artigo 6 da
Constituição, que diz que a "saúde é um direito de todos e um dever do
Estado." (Repita a pergunta quando, em segundo grau de deslealdade, seu plano
de saúde for reajustado pelo dobro da inflação).
Nas
caminhadas pelo Brasil, quando se deparar com aquela miséria de causar
depressão, pense no parágrafo III do artigo terceiro da Constituição. Ali se
combinou que um dos "objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil" é "reduzir a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades regionais."
Quando
perceber que o número de crianças e famílias que pedem esmola na rua não para
de aumentar, tenha uma certeza: essa tragédia vai aumentar.
Com
a aprovação da Emenda que fixa o teto para os Gastos, que o STF assistiu em
silêncio, esse quadro de deslealdade absoluta, total, irá agravar-se. Quando o
debate sobre a reforma da Previdência avançar, recorde a deslealdade aos
aposentados do mundo trabalho -- e a lealdade generosa a altos funcionários do
Estado, inclusive do Judiciário.
Mas
podemos ficar tranquilos.
Quando
um delinquente arrependido fizer um acordo, será tratado com toda lealdade.
Vamos
aguardar até quarta-feira para verificar se é isso mesmo.
https://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/302839/STF-jura-lealdade-eterna-a-corruptores-arrependidos.htm
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