O
Brasil abrirá mão da autonomia?
Não
é só no terreno das medidas internas (como Previdência Social, relações
trabalhistas e investimentos sociais) que a desmontagem do que resta de um
projeto de desenvolvimento autônomo e inclusivo do Brasil está sendo levada a
cabo por um governo que carece da legitimidade que só o voto do povo pode
conferir.
Dois
fatos recentemente noticiados, sem muita análise, têm o potencial de afetar de
maneira significativa a visão que até hoje prevaleceu sobre a inserção do
Brasil no contexto global e regional. Comecemos pelo mais simples. Segundo
relatos, sempre esparsos e desprovidos de detalhes, estariam programados (ou já
em curso) exercícios militares envolvendo alguns de nossos vizinhos, além de
Panamá e Estados Unidos.
O
objetivo dessas manobras estaria definido por seu caráter humanitário, mas,
segundo comentários não desmentidos, elas poderiam também servir a questões
ligadas à segurança, como o combate ao narcotráfico. O parceiro norte-americano
do Brasil, nessas operações, seria o Comando Sul do Pentágono, uma espécie de
quartel-general avançado para questões latino-americanas e caribenhas, por meio
do qual Washington procura garantir sua hegemonia na região.
Cabem,
a propósito, duas ou três observações, que faço com certa cautela, até porque
as informações a respeito desses exercícios não são facilmente disponíveis. Um
primeiro comentário refere-se justamente à relativa falta de transparência que
cerca o tema, diferentemente, por exemplo, da ampla divulgação dada à chamada
Operação Ágata, realizada em nossas fronteiras durante o governo Dilma
Rousseff.
Na
época, o esforço de transparência visava também, mas não exclusivamente,
tranquilizar os países fronteiriços sobre os objetivos da operação e dar-lhes
garantia de que sua soberania não seria violada. Outro ponto refere-se ao
objetivo dos exercícios e o que eles implicarão na prática. A presença de
forças extrarregionais, entendidas como não sul-americanas, em exercícios
militares sempre foi vista com bem fundamentada cautela, se não mesmo
desconfiança, por nossas Forças Armadas. A presença de observadores, mesmo em
uma operação definida como humanitária, dá acesso a dados e informações
fundamentais à nossa segurança (e à dos nossos vizinhos).
O
Brasil, em diversos governos, sempre foi muito prudente nesse particular.
Recordo-me, a propósito, de um episódio ocorrido no governo Itamar Franco,
quando um cônsul dos Estados Unidos pretendeu acompanhar a vistoria do terreno
em que se deu a matança de índios ianomâmis. Na ocasião, o diplomata foi
retirado do helicóptero em que embarcou juntamente com autoridades brasileiras,
por orientação expressa do Itamaraty.
Talvez
ainda mais grave, o fato de essas manobras ocorrerem em um momento
especialmente delicado que vivem vários países da América do Sul alimenta suspeitas
e desconfianças que procuramos, ao longo dos anos, superar. A criação do
Conselho de Defesa Sul-Americano, no âmbito da Unasul, contribuiu decisivamente
para melhorar a atmosfera das relações entre países da região de diferentes
matizes ideológicos, afastando a ameaça de conflitos que pareciam iminentes.
Uma
fissura entre países descritos como “bolivarianos” e os que se perfilam (em
tese) a um suposto padrão democrático liberal não interessa ao Brasil, que deve
justamente zelar pela concórdia e a unidade na América do Sul, respeitando o
princípio essencial do pluralismo. Ao que tudo indica, o esforço em acentuar
essa personalidade sul-americana (consubstanciado, entre outras iniciativas, na
criação da Escola Sul-americana de Defesa – Esude) está cedendo lugar a cediças
concepções de “Segurança Hemisférica”, gestadas durante a Guerra Fria.
O
outro tema que gera preocupação é o da apressada adesão à OCDE, o clube de
países ricos. O Brasil, como outros emergentes, há anos tem acordos de parceria
com aquela organização, mas sempre evitou tornar-se membro pleno. Há razões
econômicas e de natureza geopolítica nessa postura. No mesmo dia em que escrevo
este artigo, um jornal especializado salienta que o Brasil terá de assumir
novas obrigações em matéria de liberalização econômica, mesmo antes de ser
admitido como integrante pleno.
Entre
os que defendem, por boa-fé ou dever de ofício, esse curso de ação,
argumenta-se que o Brasil pratica muitas das normas preconizadas pela OCDE. A
diferença é que, hoje, elas podem ser revistas e modificadas por um governo que
venha a ser legitimamente eleito. No caso de adesão à organização, tais normas
se transformam em obrigação internacional, cujo descumprimento implicaria
censura ou, no limite, algum tipo de sanção.
Mas
o prejuízo maior será de natureza geopolítica. Nos últimos anos, de forma
explicita e, há mais tempo, de modo intuitivo, o Brasil tem se pautado pela
visão de que um mundo multipolar, sem hegemonias ou consensos fabricados nas
capitais dos países desenvolvidos, era o que mais nos convinha.
A
tendência à multipolaridade, no campo econômico, foi consideravelmente
fortalecida pelo surgimento dos BRICS. Foi a ação concertada dessas grandes
economias emergentes, no fórum do G-20, na esteira da crise financeira do fim
da primeira década deste século, que se possibilitou uma reforma, ainda que
modesta, do sistema de cotas do FMI e do Banco Mundial, reforma que só foi
implementada quando as cinco economias emergentes decidiram criar suas próprias
instituições financeiras.
A
soberania é o que define uma nação como tal, do ponto de vista jurídico e
político. Se abrirmos mão de parcelas importantes desse atributo essencial dos
povos independentes, estaremos nos condenando a um papel de ator secundário e
subordinado na cena internacional, com repercussões no bem-estar da nossa
população e na segurança do Brasil como Nação.
*
Foi chanceler nos governos Lula e ministro da Defesa no primeiro mandato de
Dilma Rousseff
http://dilma.com.br/soberania-ameacada-por-celso-amorim/
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