A
Paula Beiguelman
“Em
São Paulo só não ganha dinheiro quem não trabalha, só é pobre quem é vadio.”
(Correio Paulistano, junho/1917)
Um
operário morreu, e agora?
A
situação era tensa. Um grupo de operários chegou à porta do cotonifício Crespi
e conclamou os trabalhadores a aderirem ao movimento grevista, que tinha se
iniciado havia dias. A polícia, decidida a não permitir piquetes, interveio
violentamente. O saldo do conflito: um morto. A vítima chamava-se José Ineguez
Martinez, era sapateiro e tinha apenas 21 anos. Depois deste dia São Paulo não
seria mais a mesma.
Numa
fria manhã de julho, dia 11, uma multidão de cerca de 10 mil pessoas caminhou
lentamente pelas principais ruas da cidade paralisada, numa última homenagem ao
operário assassinado. As bandeiras vermelhas e negras tremulavam entre choros e
sentimentos de vingança. A São Paulo proletária estava nas ruas, nunca se tinha
visto aquilo antes.
O
cortejo fúnebre seguiu lento pelo aterro do Carmo – hoje continuação da Avenida
Rangel Pestana –, tentando se dirigir ao Palácio do Governo, mas foi impedido
pela polícia. Seguiu então pela Rua Floriano Peixoto até a praça XV de
Novembro. De repente, a multidão parou e só se ouviu um grito: “Libertem
Nalepinsk! Libertem Nalepinsk!”.
Nalepinsk,
outro sapateiro, preso por ter denunciado o assassinato de Martinez. Uma
comissão se deslocou até a Secretaria da Justiça estadual para exigir a sua
libertação. O delegado-geral, acuado, prometeu soltá-lo logo após o enterro.
Uma vitória. A primeira. A multidão avançou e chegou à Praça da Sé. Agora era a
vez dos discursos. O cortejo então seguiu para o cemitério do Araçá, sua última
parada.
Ali,
diante do túmulo de Martinez, os oradores se revezavam. Eram homens e mulheres
do povo. Na voz traziam a indignação e a revolta. “Soldados, não deveis
perseguir vossos irmãos de miséria. A fome reina em nossos lares, e os nossos
filhos nos pedem pão. Os perniciosos patrões contam, para sufocar as nossas
reclamações, com as armas de que vos armaram (...). Soldados! Recusai-vos ao
papel de carrascos.”. Parte da assistência chorava. Nem mesmo os soldados,
escalados para vigiar o movimento, contiveram-se. Notava-se que alguns deles
enxugavam os olhos com as mangas de suas fardas. Um operário morreu, e agora?
Produzir,
produzir, deve ser o lema dos paulistas
Ser
operário naqueles dias não era nada fácil, nunca foi. Trabalhava-se em média 14
horas diárias, sem férias, sem descanso semanal remunerado e sem nenhum tipo de
assistência pública. Para eles apenas o trabalho. “Produzir, produzir, deve ser
o lema dos paulistas”, afirmava a imprensa burguesa. Mas, produzir para quem?
Começavam a se perguntar os operários.
Por
todo este trabalho, recebiam parcos salários que não eram o suficiente para o
sustento de suas famílias – o que levava mulheres e crianças a se empregarem
nas fábricas, submetendo-se às mesmas condições de trabalho dos homens e
recebendo menores salários. Os locais de trabalho eram insalubres, as jornadas
longas, sem horário para as refeições, que eram feitas ao lado das máquinas.
Afinal, São Paulo não podia parar. “Oh! Pobre dos proletários!”, dizia uma
canção anarquista.
Em
1912, 67% dos trabalhadores têxteis eram mulheres. Em 1918, mais de 50% do
operariado fabril eram constituídos de menores de idade, como podemos constatar
neste trecho de artigo publicado em um jornal da época: “Assistimos a entrada
de cerca de 60 menores, às 7 horas da noite (...). Essas crianças saem às 6
horas da manhã. Trabalham, pois, 11 horas a fio em serviço noturno, apenas com
um descanso de 20 minutos (...). O pior é que elas se queixam de serem
espancadas pelo mestre de fiação (...). Alguns apresentam mesmo ferimentos
produzidos por uma manivela. Trata-se de crianças de 12, 13 e 14 anos.”.
O
custo de vida aumentava dia a dia. Em 1916, os gêneros alimentícios subiram
mais de 60%, sem que houvesse qualquer reajuste salarial. Começavam a faltar
alimentos e toda a produção nacional era vendida à Europa, que estava em
guerra. A fome batia às portas das famílias dos trabalhadores. É neste contexto
dramático que teve início a onda da greve que abalaria o país.
Em
julho de 1917, o que parecia mais uma simples greve – como outras tantas que já
haviam ocorrido desde o começo do século – acabou por desembocar no maior
movimento de contestação operária da historia do Brasil até aquele momento.
E
os operários disseram não!
Uma
comissão de operários do Cotonifício Crespi se dirigiu à direção da empresa
exigindo um aumento salarial de 20%, baseado na elevação do custo de vida. O
dono da empresa não aceitou o pedido. Os operários o ameaçaram com uma greve. A
resposta patronal foi fechar a fábrica. A paralisação então se ampliou
estendendo-se a outras categorias.
No
dia 8 de julho ocorreu o primeiro incidente na porta da fábrica. Um choque
entre operários e policiais deixou inúmeros feridos, e os ânimos se acirraram.
Na manhã do dia seguinte, novo conflito, agora na porta da Companhia Antártica.
Trabalhadores enfurecidos tomaram de assalto um caminhão da empresa de bebida e
destruíram as garrafas por ele transportadas. A massa seguiu em passeata pelo
Brás até a fábrica de tecelagem Mariângela. Ali ocorreu um novo e mais grave
confronto com a polícia. O jovem Martinez caiu mortalmente ferido. Um operário
morreu, e agora?
Saindo
do enterro do sapateiro, a multidão dirigiu-se à Praça da Sé para um grande
comício de protesto. Ali exigiu-se a reabertura das ligas operárias, proibidas
de funcionar no dia anterior, a libertação dos grevistas presos e a punição dos
assassinos de Martinez.
O
Comitê de Defesa Proletária, formado no dia anterior, assumiu a direção do
movimento e apresentou a sua pauta de reivindicações: aumento de 35% nos
salários; proibição do trabalho de menores de 14 anos; abolição do trabalho
noturno para menores de 14 anos e mulheres; jornada de trabalho de 8 horas;
respeito ao direito de associação; congelamento de preços dos alimentos e
redução dos aluguéis.
Nos
bairros operários cresceu o descontentamento. Milhares de populares saquearam
lojas e armazéns, especialmente os que estocavam alimentos. O número de
grevistas crescia dia a dia. De 10 mil subiu para 20 mil – mais de quarenta mil
trabalhadores entrariam em greve durante o movimento. Eram sapateiros,
eletricitários, trabalhadores das companhias de gás, mecânicos e a quase
totalidade dos operários de pequenas oficinas, que compunham o grosso do
proletariado do período.
A
repressão recrudesceu e a resposta popular foi imediata: ergueram-se
barricadas. Os grevistas tomaram os bondes da cidade. Alguns foram destruídos
pela fúria popular. “Uma multidão de garotos”, afirmou o jornal O Estado de S.
Paulo, “se entregou a todos os excessos, escolhendo para alvo de suas loucuras
os carros elétricos (...). E o que é mais deplorável, é que um bando de
mocinhas, infelizes operárias de fábricas, imitou os gestos da garotada,
tomando conta de três elétricos no Largo da Sé.”. Os grevistas tentaram ocupar
a 5ª delegacia, localizada no Brás, mas não conseguiram. O posto policial
passou a ser defendido por tropas de Infantaria e a Cavalaria.
No
largo da Estação Norte, os policiais tentaram invadir um Café, onde se reuniam
alguns líderes grevistas. Foram recebidos à bala. No tiroteio que se seguiu,
vários caíram feridos. Novamente, apareceram as barricadas com sacos de
mantimentos e veículos tombados. As ruas do Brás e da Mooca transformaram-se,
instantaneamente, num labirinto, que ninguém ousava percorrer. No dia 13 de
julho, os jornais publicaram uma nota da Delegacia Geral: “Pedimos ao povo
pacífico que se recolha às suas casas para não ser recolhido no meio dos
desordeiros (...), pois a polícia (...) vai manter a ordem, para isso empregando
os meios mais enérgicos.”.
Frente
aos constantes casos de insubordinação da Força Pública e da Guarda Civil, que
se recusavam a reprimir os grevistas, foram solicitadas tropas do interior.
Navios de guerra aportaram no porto de Santos. Marinheiros foram destacados
para reprimir alguns populares que saqueavam os armazéns da cidade. “A polícia
não permitirá reuniões nas praças e ruas, dissolverá pela força os que
pretenderem ir contra esta resolução”, afirmava um novo comunicado do governo.
Tropas de Infantaria e a Cavalaria percorriam as ruas dispersando aglomerações.
Na
sexta-feira, faltavam pão, gás e transporte. Um grupo de operários tentou parar
os poucos bondes que ainda teimavam em circular, escoltados por policiais
fortemente armados. Novo tiroteio, nova vítima fatal: uma menina de apenas 12
anos. A fuzilaria prosseguiria. Outro morto, o pedreiro Nicola Salermo. O que
era uma simples greve por aumento salarial e melhoria de condições de trabalho
estava se transformando numa insurreição operária.
Diante
do impasse nas negociações entre operários e patrões, formou-se uma comissão de
jornalistas de diversas publicações da capital paulista. O seu objetivo era
mediar o conflito. Desse esforço nasceu uma proposta de aumento geral de
salários de 20%, respeito ao direito de associação e não dispensa dos
grevistas. O governo, por sua vez, comprometeu-se a libertar os presos e
reconhecer o direito de reunião. Afirmou também que “o poder público
intercederá (...) para que sejam estudadas e votadas medidas que protejam os
trabalhadores menores de 18 anos e as mulheres no trabalho noturno.”. Propostas
que foram aceitas prontamente pelo Comitê de Defesa Proletária.
O
Comitê decidiu, então, comunicar a proposta em três grandes comícios: no Largo
da Concórdia, na Lapa e no Ipiranga. Em todos eles foi aceita a contraproposta
patronal e decidida a volta ao trabalho, sob a condição de se retornar à greve
caso os patrões descumprissem o acordo. “Com a volta de alguns milhares de
operários ao trabalho, a cidade retomou ontem o aspecto que tinha antes de se
iniciar o movimento grevista”, noticiou aliviado O Estado de S. Paulo. Mas, a
calma era apenas aparente. Depois destes dias turbulentos, a cidade de São
Paulo não seria mais a mesma. A paisagem urbana havia mudado com a entrada em
cena de um novo personagem: o proletariado.
As
lições da greve (ou um novo ator à procura de outro roteiro)
Embora
os acontecimentos de julho de 1917 tenham representado uma das mais belas
páginas da luta do proletariado brasileiro, apresentou também suas limitações.
Pouco a pouco a maioria das conquistas foi sendo retirada pelos patrões. As
perseguições e prisões dos líderes não só continuaram como aumentaram. As
promessas da burguesia, pouco a pouco, transformaram-se em pó. Por que isso
ocorreu?
Primeiro,
apesar de combativos, os operários constituíam-se em minoria da população e se
encontravam dispersos em pequenas oficinas, existindo, assim, uma fragilidade
nas suas organizações de classe. Segundo, esta fragilidade deu lugar à proliferação
de ideias anarquistas, típicas dos pequenos artesãos. O anarquismo era a força
hegemônica no setor mais combativo do movimento sindical brasileiro. Eles
recusavam-se a organizar os operários de forma mais centralizada, negavam a
necessidade de o proletariado constituir um partido classista e revolucionário
– única maneira de travar uma luta política consequente contra a burguesia e o
seu Estado.
Esta
concepção da luta operária os prendia, fundamentalmente, aos marcos da luta
estritamente econômico-corporativa. Questões-chave – como ampliação da
democracia (eleições livres, voto secreto, direito de voto aos analfabetos, a
mulheres e estrangeiros residentes no país, legalização dos partidos de
esquerda), a luta pela reforma agrária e contra o imperialismo – passavam ao
largo das reivindicações anarquistas. Num país dependente, composto por uma
população majoritariamente camponesa, dirigido por uma oligarquia agrária, que
excluía grande parte do povo da efetiva participação política, estas seriam
bandeiras que poderiam trazer aliados importantes aos operários em luta.
Somente
assim poderiam se constituir em força político-social autônoma, e disputar efetivamente
a hegemonia da sociedade brasileira e garantir as condições indispensáveis à
consolidação e à ampliação das conquistas do conjunto dos trabalhadores.
Se,
por um lado, a greve de 1917 representou o ápice do anarquismo no movimento
operário brasileiro, por outro, mostrou todas as suas limitações, que em pouco
tempo acabariam por reduzir e mesmo eliminar a sua influência. A Revolução
Russa de outubro de 1917 mostrou outro caminho: O da organização do
proletariado enquanto partido independente, como instrumento de luta pela
conquista do poder político e construção de um Estado socialista de caráter
proletário. Coisas então incompreensíveis para os anarquistas. Uma das
consequências da greve geral de 1917 – e de outros embates que se seguiram –
foi a fundação do Partido Comunista do Brasil, ocorrido em março de 1922. Este
foi o marco da crise geral do anarquismo e representou o início de uma nova
fase na história da luta dos trabalhadores brasileiros rumo à sua libertação.
* Artigo publicado
originalmente na revista Debate Sindical, n. 12, de set/out de 1992.
* Augusto Buonicore é
historiador, presidente do Conselho Curador da Fundação Maurício Grabois. E
autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e
desencontros, Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas e
Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução. Todos publicados pela
Editora Anita Garibaldi.
Bibliografia
BANDEIRA, M.; MELO, C.;
ANDRADE, A. T. O ano vermelho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967 (há
uma edição atual da editora Expressão Popular).
BEIGUELMAN, Paula. Os
companheiros de São Paulo: Ontem e hoje. São Paulo: Cortez, 2002.
KHOURY, Yara Aun. As
greves em São Paulo. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1981.
http://altamiroborges.blogspot.com.br/2017/05/os-reflexos-da-greve-geral-de-1917.html
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