As
proteções da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) resguardam quem exerce o
papel social de mulher, seja biológica, transgênero, transexual ou homem
homossexual. E o sujeito ativo da violência doméstica contra elas também pode
ser do sexo feminino, já fixou o Superior Tribunal de Justiça, desde que fique
caracterizado o vínculo de relação doméstica, familiar ou de afetividade.
Para
juiz de São Gonçalo, mãe agiu de forma "machista" ao internar filha à
força.
Com
base nesse entendimento, a Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher de São Gonçalo (RJ) aceitou pedido da Defensoria Pública do Rio de
Janeiro e estabeleceu medidas para proteger uma mulher transgênero de sua mãe.
Após
assumir que era trans em janeiro de 2016, a mulher passou a enfrentar forte
rejeição de sua mãe, que, opositora da identidade de gênero, acredita que a
escolha da filha não passa de uma doença mental adquirida pelo convívio com
“más influências”. Devido às ideias de sua mãe, a mulher trans mudou-se para
Minas Gerais com sua companheira, também transgênero.
Passado
certo tempo, a mãe buscou a reconciliação. A filha acreditou, voltou para São
Gonçalo e passou a morar perto dela. No entanto, a mãe retomou a intolerância
em relação à orientação sexual da filha e decidiu interná-la em clínica
psiquiátrica, à revelia. Assim, certo dia, enfermeiros arrastaram-na, à força, para
ambulância que a levaria ao estabelecimento. Os vizinhos presenciaram a filha
tentando resistir à internação — ela ficou praticamente nua durante a luta.
A
situação, no entanto, não impediu que ela fosse colocada no veículo e levada
para clínica fora do Rio. Lá, foi submetida a pseudotratamento e teve seu longo
cabelo raspado. Para evitar o sofrimento da jovem, a Defensoria Pública pediu à
Justiça que estabelecesse medidas para protegê-la de sua mãe.
Ao
julgar o caso, o juiz da Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
de São Gonçalo, André Luiz Nicolitt, apontou que a internação e o corte de
cabelo forçados violaram a dignidade humana da mulher trans.
“Convicções
contrárias à orientação e identidade sexuais da pessoa não merecem acolhida nos
dias de hoje, devendo o Poder Judiciário repelir violação ao arcabouço de
direitos fundamentais da pessoa humana, em obediência ao princípio da
inafastabilidade da jurisdição”, destacou.
Citando
filósofas como Simone de Beauvoir e Judith Butler, o juiz afirmou que o gênero
é um conceito sociológico independente do sexo. Logo, se a filha “se veste como
mulher, se identifica socialmente como mulher, ingere medicamentos hormonais
femininos, ou seja, se vê e se compreende como mulher, não possuindo terceira
pessoa autoridade para a designar de outra forma”.
Segundo
Nicolitt, o sujeito ativo dos crimes previstos na Lei Maria da Penha pode ser
tanto homem quanto mulher — entendimento já fixado pelo STJ (Conflito de
Competência 88.027).
“Isso
porque a cultura machista e patriarcal se estruturou de tal forma e com tamanho
poder de dominação que suas ideias foram naturalizadas na sociedade, inclusive
por mulheres. Sendo assim, não raro, mulheres assumem comportamentos machistas
e os reproduzem, assumindo, não raro, o papel de opressor, sendo
instrumentalizadas pelo dominador, como na escravidão existiu o negro que era
‘capitão do mato’, o que vem sendo tratado às vezes como síndrome de
Estocolmo”, argumentou o juiz.
E
a mãe, no caso, age de forma machista ao afirmar que a filha decidiu deixar de
ser homem por influência do “demônio”, “loucura” ou más companhias, ressaltou.
Na
visão de Nicolitt, todas as medidas protetivas da Lei Maria da Penha podem ser
aplicadas àquelas do gênero feminino, independentemente do sexo. Ou seja: são
cabíveis também para resguardar gays, travestis, transgêneros e transexuais,
além de mulheres.
Dessa
maneira, o juiz aceitou parcialmente o pedido da Defensoria e ordenou que a mãe
não chegue a menos de 500 metros da filha e que não entre em contato com ela
por nenhum meio de comunicação. Além disso, André Luiz Nicolitt determinou a
busca e apreensão dos objetos pessoais da mulher trans que estão na casa de sua
mãe.
Processo
0018790-25.2017.8.19.0004
Por Sérgio
Rodas. correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.
Revista
Consultor Jurídico
http://www.conjur.com.br/2017-jun-10/lei-maria-penha-protege-tambem-mulher-transgenero-homem-gay
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