"Não
podemos deixar tudo que pertence ao campo da moral ou a outras construções
ideológicas à disposição total do liberalismo burguês. Para nós, a emancipação
feminina não é um sonho, nem mesmo um princípio ético, mas uma realidade
concreta, um fato que diariamente precisa ser tornado real", escreveu
Alexandra Mihaylovna Kollontai, no livro "Bases sociais das questões
feministas", de 1906.
"Nós,
conscientemente, não podemos deixar tudo que pertence ao campo da moral ou a
outras construções ideológicas à disposição total do liberalismo burguês. Para
nós, a emancipação feminina não é um sonho, nem mesmo um princípio ético, mas
uma realidade concreta, um fato que diariamente precisa ser tornado real. O que
é "utópico é a crença feminista de que novas e livres formas de amor,
casamento e família são possíveis sem uma transformação radical de todo o
sistema social". Assim, Alexandra Mihaylovna Kollontai escrevia na introdução
do seu livro "Bases sociais das questões feministas" (социальные
основы женского вопроса) de 1906. A menina que nasceu em São Petersburgo, em
1872, filha de pais nobres, somente foi conhecer a filosofia marxista, os
escritos de Plekhanov e os bolcheviques depois de casada e mãe. A transformação
de nobre em revolucionária se deu através de muito estudo, ao que seu marido
reputava como "uma ofensa pessoal".
Kollontai
foi testemunha ocular do Domingo Sangrento (22/01/1905), quando a guarda
pessoal do czar massacrou manifestantes que marchavam pacificamente até o
Palácio de Inverno, em São Petersburgo, pedindo pão. O episódio é o deflagrador
dos movimentos de 1905, conhecidos como "O ensaio geral". Nas
palavras de Kollontai: "Vi milhares de crianças mortas a tiro ou feridas
além da possibilidade de sobrevivência". Esta experiência marcaria toda
sua trajetória política.
Em
1905, Kollontai já era conhecida por escrever artigos críticos acerca da
situação russa e do marxismo, e por fazer "leituras coletivas" com
operários de diversas fábricas. A verdade é que Kollontai não precisou dos
Bolcheviques ou Mencheviques para se fazer política. Após sua participação nos
eventos daquele ano, e por ser já conhecida crítica do regime dos Romanov,
Kollontai é obrigada a se exilar (primeiro na Suíça e depois Alemanha) entre
1908 e 1917. Neste período, produz boa parte de seus trabalhos afirmando que
"tenho mantido a luta pela emancipação e igualdade das mulheres mesmo com
o duplo desafio de ser cidadã e mãe" demonstrando a dificuldade de uma
mulher, mãe viver no exílio.
Retornando
a Rússia após fevereiro de 1917, apresentou à Duma (governo provisório) um
projeto de lei para criar um seguro maternidade. O resultado de pesquisa e
argumentação em favor do projeto rendeu o livro "Sociedade e
Maternidade" (Общество и материнство) publicado em 1916. Kollontai afirma
a "necessidade" de qualquer governo de se envolver diretamente na
proteção e no bem-estar da mulher grávida e da criança na primeira infância. Em
que pese a extensão dos argumentos, o governo provisório rejeita a lei.
Em
1915 se filia aos bolcheviques e afirma que "cruzaria o Rubicão",
pois sentia que os bolcheviques estavam fadados por "seus sacrifícios a
algo grandioso". Durante a guerra, Alexandra Kollontai trabalha em estrita
conexão com Lênin e é uma das responsáveis pela organização da III
Internacional. As obras de Kollontai passam a ser impressas na Noruega, Suécia,
EUA e Suíça e são tão conhecidas quanto as de Lênin naquele momento. Sua
capacidade intelectual, sua proximidade com os bolcheviques e sua energia
fazem-lhe a primeira mulher eleita para o soviet de Petrogrado. Em sua
biografia, afirma "se me perguntarem qual foi o maior momento da minha
vida, o mais memorável eu digo, sem dúvida, o momento em que o poder soviético
foi proclamado em outubro de 1917".
Já
como Comissária Nacional da Seguridade Pública, no governo bolchevique,
Kollontai coloca em prática a proteção à maternidade e aos trabalhadores em
idade avançada, fazendo do governo revolucionário a vanguarda da proteção
social às mulheres. Segundo o historiador Mark Steinberg, "nenhum marxista
russo jamais escreveu de forma tão explícita sobre gênero, intimidade ou
emotividade e de forma tão fortemente ligada às questões da revolução
socialista". Profética, Kollontai afirma que "na idade da pobreza
capitalista, das contradições de classe e da moral individualista, nós todos
vivemos e pensamos sobre o gélido sentimento da inescapável e inevitável
solidão espiritual" ("A Nova Mulher" ensaio de 1913).
Kollontai
fala de sexualidade, de amor, de prazeres no início do século XX com uma
desenvoltura peculiar. Sempre buscando o Futuro e a "Nova Mulher" que
surgiria através da luta contra a "prisão moral" e a "servidão
amorosa", buscando algo além da "monogâmica e possessiva forma de
família" que necessariamente gerava a "subordinação da mulher".
Kollontai afirmaria que "o código moral sexual é parte integral da
ideologia de classe burguesa" e por isto mesmo a questão sexual não
poderia ser colocada em separado da luta proletária. "Os proletários
precisam descobrir que as antigas formas de virtudes femininas são amarras que
previnem a transformação social" e que para romper com isto a mulher
precisaria se tornar um "ser humano com valor próprio", não por ser
mãe ou fêmea.
Em
1922, foi nomeada embaixadora na Noruega, depois no México e na Suécia
trabalhando até 1945. Foi uma das primeiras mulheres a ocupar o cargo de
embaixadora no mundo, vindo a falecer em 1952. Na plenitude de sua juventude,
Kollontai escreveria no jornal Pravda em março de 1917: "Não fomos nós
mulheres as primeiras a ir para as ruas lutar por liberdade junto com nossos
irmãos, a morrer por isto se necessário? Então porque exatamente quando se
começa a construir uma nova Rússia estamos sentido o medo da liberdade e vamos
ignorar metade da população livre deste país?"
Alexandra Kollontai é a
própria revolução. Inescapavelmente.
*Fernando
Horta é professor, historiador, doutorando na UnB.
https://www.brasil247.com/pt/247/cultura/303073/Alexandra-Kollontai-os-instintos-e-o-amor-em-tempos-revolucion%C3%A1rios.htm
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