A
“falácia do procurador” (prosecutor`s fallacy) é uma expressão criada por dois
pesquisadores da Universidade da Califórnia, William C. Thompson e Edward
Schumann, que, em 1987, publicaram um artigo intitulado “Interpretation of
Statistical Evidence in Criminal Trials: The Prosecutor's Fallacy and the
Defense Attorney's Fallacy” (Interpretação das Evidências Estatísticas em
Julgamentos Criminais: a Falácia do Procurador e a Falácia do Advogado de
Defesa).
Nesse
artigo, que se tornou muito conhecido, os autores mostram como procuradores e
advogados têm muita dificuldade em interpretar corretamente as probabilidades
de um acusado ser culpado ou não, a partir de normas “bayesianas” que
relacionam uma probabilidade posterior ou condicional (a posteriori) com uma
determinada probabilidade anterior (a priori). Na grande maioria dos casos, as
pessoas sujeitas aos experimentos desses pesquisadores adotaram raciocínios
falaciosos com grande convicção.
Esse
parece ser o caso também dos procuradores da chamada “República de Curitiba”.
Com
efeito, em suas “Alegações Finais” no caso contra Lula, referente ao famigerado
“triplex” do Guarujá, tais procuradores recorrem à lógica probabilística do
bayesionismo, bem como ao explanacionismo de Peirce, para tentar justificar
certa “elasticidade” e “criatividade” na apresentação das provas de
culpabilidade.
No
entanto, uma análise mais detida dos argumentos demonstra um entendimento pobre
e distorcido desses instrumentos metodológicos. Na realidade, como no
experimento de Thompson e Schumann, a argumentação dos procuradores é
claramente falaciosa.
Comecemos
por Bayes, que nos legou um método (seu teorema) para calcular a relação entre
a probabilidade a priori de uma hipótese ser verdadeira ou falsa com a sua
probabilidade a posteriori, após uma determinada evidência ter sido
apresentada. Muitas vezes, essa relação é contraintuitiva, o que leva a erros e
falácias.
Há
um exemplo clássico, dado pela seguinte indagação: qual é a probabilidade de
que uma mulher, após ter um diagnóstico positivo de câncer numa mamografia, ter
realmente câncer, supondo uma prevalência estatística de 1%?
|
Câncer (1%)
|
Sem Câncer (99%)
|
Teste Positivo
|
Positivo Verdadeiro (80% dos casos)
1% X 80%= 0,008
|
Falso Positivo
(9,6% dos casos)
99% x 9,6%= 0,09504
|
Teste Negativo
|
Falso Negativo
(20% dos casos)
1% x 20%= 0,002
|
Negativo Verdadeiro
(90,4% dos casos)
99% x 90.4%= 0,89496
|
Aplicando
as regras do Teorema de Bayes temos que a probabilidade do evento (ter
realmente câncer após um teste positivo) é igual à probabilidade de obter um
teste positivo verdadeiro (0,008) dividida pela soma de todos os resultados
positivos, verdadeiros e falsos, (0,008 + 0, 09504= 0,10504).
Essa
operação (0,008/0,10504) é igual a 0, 0776, ou seja, aproximadamente 7,8%.
Assim, a resposta a nossa pergunta (qual é a probabilidade de que uma mulher,
após ter um diagnóstico positivo de câncer numa mamografia, ter realmente
câncer, supondo uma prevalência estatística de 1%?) é: apenas 7,8%, assumidas
as probabilidades da tabela.
Isso
parece absurdo, à primeira vista. A maioria das pessoas “chutaria” que a
probabilidade é a mesma do intervalo de confiança do teste.
Mas
porque essa probabilidade é tão baixa? Em primeiro lugar porque há muitos
testes falsos positivos entre as mulheres que não tem câncer (a imensa
maioria-99%) e, em segundo lugar, porque os testes verdadeiramente positivos
entre a mulheres que realmente têm câncer são em número muito baixo, pois a
prevalência estatística delas entre a população em geral é também muito baixa
(apenas 1%).
O
que isso nos ensina? Ensina-nos que as probabilidades a posteriori (as
probabilidades após a apresentação de evidências) ou derivadas são fortemente
condicionadas pelas probabilidades a priori (as probabilidades assumidas como
corretas antes da apresentação de evidências).
Agora
bem, substituamos a pergunta anterior pela seguinte pergunta: qual é a
probabilidade de Lula ser considerado inocente ou culpado, após a apresentação
de evidências num determinado processo?
Obviamente,
essas probabilidades derivadas dependerão fortemente das probabilidades das
hipóteses assumidas a priori. Se os
procuradores partirem do pressuposto ou da convicção de que Lula tem uma
probabilidade extremamente baixa de ser inocente (digamos 1%, como no caso
anterior), quaisquer evidências a seu favor que sejam apresentadas, mesmo muito
robustas, não aumentarão, de forma significativa, a baixa probabilidade
pressuposta inicialmente. Por outro lado, evidências favoráveis ou supostamente
favoráveis à sua culpabilidade adquirirão dimensões gigantescas, face à
altíssima probabilidade pressuposta na hipótese a priori (99%), mesmo que sejam
insignificantes ou extremamente frágeis.
Talvez
seja por isso que, no caso das alegações finais desses procuradores, o
pagamento de um pedágio se torne uma prova “robusta” de que o triplex seria de
propriedade de Lula, o que é francamente ridículo. Talvez seja por isso também
que a prova cabal, verdadeiramente robusta, de que o apartamento nunca
pertenceu a Lula tenha sido simplesmente descartada na peça “criativa” e
“convicta” dos procuradores.
Referimo-nos,
é claro, à documentação que prova que o triplex sempre foi de propriedade da
OAS, estando hipotecado à Caixa. Quaisquer transferências de titularidade
teriam, necessariamente, de ser acompanhadas por depósitos na conta da Caixa
relativa a tal hipoteca, o que, comprovadamente, nunca ocorreu. Salientamos que
as regras lógicas de Bayes estipulam que, caso uma evidência torne uma hipótese
absurda, ela deve ser descartada.
Os
procuradores, no entanto, mantêm sua hipótese contra as evidências
apresentadas.
Para
entender melhor esse absurdo, recorramos ao método “explanacionista”, ou
inferência lógica de Peirce, por eles mesmos recomendado como metodologia
adequada para a interpretação de evidências e formulação de juízos.
Tal
método, também conhecido como abducionismo, nada mais é, em termos muito
simplistas, que um método de construção de hipóteses destinadas a explicar
(explanar) fatos determinados. Ante a impossibilidade de realizar experimentos
controlados que nos deem certeza científica concernente a alguns fenômenos,
esse método pode, de fato, ser muito útil para oferecer explicações lógicas e
razoáveis para alguns eventos.
Não
chegaríamos ao ponto de afirmar, como fazem os procuradores, que “o estado de
certeza diz mais a respeito da falta de criatividade do indivíduo do que a
respeito da realidade”, pois isso seria sucumbir a um absurdo solipsismo
filosófico, embora eles não se apercebam disso. Mas podemos admitir que a
inferência lógica que busca a melhor explicação possível pode ser útil, ante a
“dificuldade probatória” que se observa em muitos casos.
Entretanto,
a inferência lógica têm regras claras. Ela não pode ficar simplesmente ao sabor
da “criatividade” dos formuladores das hipóteses. Sobretudo, ela não permite
que tal criatividade desconheça os imperativos fáticos.
A
hipótese a ser escolhida tem de ser a que explica de forma mais coerente e
consistente os fatos, em relação a todas as outras que possam ser formuladas.
Peirce tinha como máxima que a hipótese não pode ser mais “extraordinária” (complexa
ou extravagante) que os fatos explanados. Em outras palavras, a hipótese a ser
escolhida deve ser a que explica de forma mais simples e direta as evidências
apresentadas.
Isso
é o mesmo que dizer que as hipóteses têm de ser submetidas à “navalha de
Occam”. Trata-se de princípio heurístico atribuído à William de Occam (ou
Ockam), teólogo e filósofo inglês do século XIV, segundo o qual, entre várias
hipóteses concorrentes, devemos escolher a que tem menos pressupostos, isto é,
a que explica os fenômenos de forma mais simples e elegante.
Foi
Occam, aliás, além de Conan Doyle, quem inspirou o personagem William de
Baskerville, o monge franciscano inglês que atua como um “sherlock holmes”
medieval em “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco, mal citado pelos procuradores.
Pois
bem, sabemos, pelo próprio texto dos procuradores, que:
1) Lula e seus familiares jamais ocuparam o
triplex.
2) Lula (ou qualquer preposto) nunca adquiriu
o imóvel, como está provado pela documentação da Caixa Econômica Federal.
3) O imóvel não foi doado ou presenteado a
Lula, conforme demonstra a mesma documentação.
4) As únicas “evidências” de culpabilidade
conseguidas foram, basicamente, a declaração de um réu em desespero,
apresentada fora do instrumento da delação premiada (portanto, sem nenhum
compromisso de dizer a verdade) e um bilhete de pedágio.
Ante
isso, seguindo os preceitos da inferência lógica de Peirce e o princípio
heurístico de Occam, perguntamos: qual a melhor hipótese que explica esses
fatos, essas evidências?
Talvez
porque não sejamos tão “criativos” ou “convictos” como os procuradores,
escolheríamos a hipótese de que Lula é inocente da acusação imputada. Temos
razoável certeza de que tal hipótese seria também a escolhida por Peirce e
Occam. No reino da ficção, William de Baskerville, Sherlock Holmes e C. Auguste
Dupin, que tanto parecem encantar a imaginação juvenil dos procuradores, também
a escolheriam, até mesmo para evitar a construção de tramas estrambólicas e
ridículas, que irritariam os leitores por absoluta falta de verossimilhança.
Bayes
diria, assumindo que a probabilidade inicial da culpa ou inocência de Lula
fosse igualmente de 50% (uma hipótese justa e neutra), que a probabilidade a
posteriori da inocência seria claramente mais alta.
Dessa
maneira, assumindo os pressupostos teóricos e epistemológicos esgrimidos pelos
próprios procuradores, sua hipótese estaria refutada ou seria descartada como a
de menor poder explicativo.
Contudo,
nossos bravos e criativos procuradores, em seu cego solipsismo filosófico e
judicial, argumentam que “como provado (provado como?) no presente caso, sendo
o triplex no Guarujá destinado ao réu Lula pela OAS a partir dos crimes de
corrupção contra a Administração Pública Federal, sobretudo contra a Petrobras,
esconder que o réu Lula é o proprietário do imóvel configura o crime. Dizer que
não há escritura assinada pelo réu Lula é confirmar que ele praticou o crime de
lavagem de dinheiro”.
Ou
seja, a prova do crime é a ausência de provas.
Conforme
a lógica paradoxal desses procuradores, “quanto maior o poder ostentado pelo
criminoso, maior a facilidade de esconder o ilícito”. Assim, a ausência de
provas é, nesse caso, a grande prova. Não temos como provar, ergo está provado.
De
fato, com o uso de uma lógica paradoxal, inconsistente, uma interpretação
equivocada da teoria do domínio do fato e de muita imaginação política, na peça
criativa dos procuradores a total ausência de provas se converte na prova
suprema.
O
que isso tem ver com o teorema de Bayes e com as regras da inferência lógica de
Peirce? Nada, rigorosamente nada. A essa altura, Bayes e Peirce, que Deus os
tenha, devem estar se revirando em seus túmulos, estarrecidos com as
barbaridades lógicas que são cometidas em seus nomes. Claus Roxin, que ainda
está vivo (não por muito tempo, a depender de nossos criativos procuradores e
juízes) também deve estar sendo supliciado pelo uso inadequado do domínio do
fato.
E
Eugène Ionesco está se corroendo de inveja.
O
problema, portanto, não está em Bayes, Peirce ou qualquer outro grande teórico
da lógica probabilística. Está nos procuradores, que deles fazem uso
oportunista e completamente equivocado.
Essas
“Alegações Finais”, caso fossem apresentadas numa corte anglo-saxônica séria,
acostumada ao princípio da dúvida razoável, mas também zelosa do princípio,
olvidado pelos procuradores, do in dubio pro reu, provocaria risos de escárnio
em juiz que não se arvorasse em procurador.
“Exóticos”
e “extravagantes” não são Bayes e Peirce. Exóticos são esses procuradores e seu
extravagante solipsismo.
Na
realidade, os procuradores usaram Bayes, Peirce e o simpático Eco, que gastava
tanto do Brasil, apenas para dar ares de “cientificidade” às suas crenças
ideológicas e partidarizadas.
Falta
a esses procuradores, pelo visto, um conhecimento mínimo desses autores. Se os
leram, não os entenderam. Ou pior: leram, entenderam, mas os usam com evidente
má-fé.
Falta,
sobretudo, a tais procuradores, algo que sobrava no grande astrônomo alemão
Johannes Kepler: grandeza de espírito e honestidade intelectual.
Como
muitos procuradores, Kepler era um homem de profundas convicções religiosas.
Ela acreditava firmemente que as órbitas planetárias tinham de ser círculos
perfeitos e que os planetas se moviam a velocidade constante, tal com
apregoavam a igreja e os antigos gregos. Contudo, analisando os dados
pormenorizados de Tycho Brahe, astrônomo dinamarquês famoso por sua acuradas
observações empíricas, Kepler chegou à conclusão de que suas hipóteses iniciais
estavam erradas e que os planetas, na realidade, tinham órbitas elípticas e se
moviam a velocidades variáveis ( mais rápidas próximo ao Sol e mais lentas
longe dele).
Kepler,
como se diz popularmente, rendeu-se às evidências, reformulou suas hipóteses e,
com isso, tornou-se um dos maiores cientistas da História. Na realidade, foi
ele que abriu caminho para Newton, que criou o moderno entendimento moderno do
mundo como algo guiado por leis naturais matematicamente formuladas. Tal
vanguarda lhe assegurou a hostilidade de seus contemporâneos, mas lhe reservou
um lugar na posteridade. É reverenciado no mundo inteiro como um herói da
razão.
Não
parecer ser esse o destino de nossos procuradores. Intelectualmente mesquinhos,
guiam-se somente por suas convicções políticas e ideológicas e pelos holofotes
da mídia. Em nome deles, atropelam não apenas direitos e garantias individuais,
mas também a própria verdade e as regras da lógica. Pouco parecem se importar
com o dano que causam ao país, às suas instituições e ao próprio sistema de
justiça.
Homens
menores que são, seu grande objetivo é condenar e encarcerar o maior líder
popular da história do Brasil, em busca do aplauso fácil dos poderosos e de
parte de seus contemporâneos.
A
posteridade, no entanto, lhes reserva um destino amargo. No máximo, serão
mencionados em livros como os de Thompson e Schumann, nas notas de pé de página
que fizerem referência aos tolos que se guiam pelas falácias da vaidade.
https://www.brasil247.com/pt/colunistas/marcelozero/303797/A-fal%C3%A1cia-do-procurador.htm
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