A
Greve Geral de 28 de Abril pode recolocar na ordem do dia a necessidade da
transformação radical e demonstrar a potência dos afetos ainda mal
compreendidos pela esquerda e que circulam de modo disperso no espaço
social. Mas isso é apenas uma hipótese,
uma possibilidade; a Greve Geral não apresenta condições de efetividade para
uma mudança da política – ou, poderíamos até dizer com maior precisão, para um
retorno da política – mas apenas condições de possibilidade. Porque, depois do
flagrante sucesso da Greve Geral, o que deve nos preocupar não é apenas se uma
manifestação de sucesso é possível ou não, se ela é politicamente efetiva ou
não, quantos milhões aderiram ou não, mas sim o que acontecerá nos dias
seguintes a ela.
Não
à toa essa preocupação é ressoada por Slavoj Žižek, filósofo e psicanalista
esloveno contemporâneo bastante conhecido no Brasil. Para ele, o problema não é
a revolução em si, mas o dia seguinte à revolução. Tudo bem. Fizemos a
revolução, derrubamos o Estado opressor, libertamos as pessoas dos fetiches do
Capital e seus grilhões, enfim, das estruturas abstratas de dominação que os
submetem.
E
agora? O que substituirá o capitalismo? Žižek nos lembra, em algumas de suas
inúmeras palestras e livros, do movimento de Maio de 68. Mas também nos adverte
sobre sua falência, afinal de contas, Maio de 68, para aqueles que
participaram, goza Žižek, restou somente na memória, como um brado pueril de
juventude, algo que os franceses hoje relembram sentados em cafés com ar
nostálgico, como uma transgressão infantil e inocente, quase idêntica àquela
das crianças que, alertadas pelos pais para que não façam algo, o fazem mesmo
assim, sob o semblante de uma face desafiadora e trocista de quem quer apenas
brincar com fogo, e nada mais. “Nada mudou, mas ao menos nos rebelamos. Enfim,
vamos às compras?”
Não
podemos repetir os mesmos erros do passado; não podemos ir às ruas, violentar a
ordem simbólica do presente e voltarmos às nossas casas para relaxarmos em
nossos sofás, televisões, computadores, tablets e celulares; postarmos fotos e
vídeos de nossas presenças nas manifestações, frases de efeito e de evocação da
importância da luta; incitarmos o ódio e insatisfação enraivecedora dos nossos
companheiros (e “inimigos”), para, então, no dia seguinte voltarmos ao nosso
ciclo de repetição zumbificante.
Devemos
nos preocupar com os dias que se seguirão a partir de agora. Devemos nos
indagar se é possível e como construir uma nova narrativa da esquerda que
produza e concentre novas forças utópicas. Devemos, urgentemente, recolocar a
palavra utopia como o problema e a solução para a concepção de novas ideias.
Pois quando reivindicamos mudanças radicais, quando bradamos por rupturas
estruturais, quando gritamos pelo fim da desigualdade, da exploração e da
colonização da vida pelo Capital, a primeira acusação que disparam em nossa
direção é a de que isso tudo é utopia. Como se utopia fosse sinônimo de absurdo
ou de impossibilidade absoluta.
Inobstante,
as poucas conquistas que tivemos ao longo da história não eram desde o
princípio utópicas? E não poupo preciosismo ao usar a palavra utopia num
sentido bastante preciso: a ausência de lugar ou o não-lugar de alguma coisa.
Mas onde há esta correlação, há tanto uma negação quanto uma afirmação: a
ausência é um lugar; o lugar do sem-lugar. Ela é, portanto, um lugar, que
aparece em seu sinal invertido, como aquilo que está enquanto não inscrito em
seu lugar. A operação de dar lugar a uma ausência não é nada impossível; aliás,
a política hoje é justamente isso: a divisão dos lugares e dos não-lugares, um
regime de visibilidade dos modos de ser e de fazer e, portanto, de não-ser e de
não-fazer. Omnis negatio est determinatio (toda negação é uma determinação),
nos revelou Espinoza.
Para
toda ausência de lugar, há uma possibilidade infinita de inscrição. A utopia é,
antes, um horizonte de infinitas possibilidades, onde a necessidade da
contingência reina absoluta. É preciso que façamos disso uma dialética,
reconhecendo o que foi inscrito e o que deixou de se inscrever, o que pode se
inscrever e o que pode deixar de ser inscrito. A utopia é esse horizonte de
expectativas onde tudo e nada é possível. Nesse não-lugar da utopia, no reino
da contingência absoluta, o amanhã é incapturável por definição, e cada dia que
nasce abre a possibilidade de inscrição desse não-lugar num lugar. E o amanhã
não é a continuação de hoje, mas de todos os “ontem” que lhe precederam; não se
criam mundos de um dia para o outro.
Sem
luta e luto, sem um pouco de esperança, ainda que desesperançosa, sem a
assunção da postura catastrófica de que “o pior já aconteceu”, o que vai nos
restar é inconformação sem propósito, alienação do mundo e de si e medo do
amanhã. Se temos somente isso, então a vida é já a própria morte que não se
sabe enquanto tal. É difícil, sim, pensar e esperar um lugar onde a utopia
deixe de ser apenas ausência e possa se tornar a luz da presença do dia – e,
por definição, deixe de ser utopia. Mas, afinal, quais grandes feitos da
história não foram sofridos, difíceis e aparentemente impossíveis?
Avante,
sempre. Agir, necessário. Mas antes de agir, também pensemos.
Diogo
Mariano Carvalho de Oliveira é mestrando no Programa de Mestrado em Ciência
Jurídica da Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP, graduado em
Direito na Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP, graduando em
Filosofia na Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP, bolsista de
mestrado pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico) e militante do coletivo Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia
– CEII.
http://justificando.cartacapital.com.br/2017/05/02/greve-geral-devemos-nos-preocupar-com-os-dias-que-se-seguirao-partir-de-agora/
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