Autofagia,
segundo o Novo Dicionário Aurélio, 4ª edição, página 232, é a nutrição ou
sustento de um organismo à custa de sua própria substância; em sentido
figurado, o ato de consumir-se ou devorar-se.
Exemplo
clássico de autofagia política foi a Revolução Francesa. Instituída sobre o
lema que até hoje consta do ideário dos modernos Estados de Direito
Democráticos — Liberdade, Igualdade, Fraternidade — e com o objetivo de
derrubar a monarquia absolutista francesa, tornou-se um símbolo do despotismo,
levando ao cadafalso cerca de 2,8 mil pessoas.
Entre
os nobres, que constituíram a maioria dos executados, destaca-se o caso da
rainha Maria Antonieta. Chamada de “a austríaca” pelos franceses, que a odiavam
mais que ao próprio Luis XVI, era menor de idade quando deixou seu país para
com ele se casar. Diz a história, ou a lenda, que quando a população faminta
aglomerou-se nos portões do Palácio de Versailles, onde a família real se
refugiara, ao saber que faltavam pães, ela teria dito: “então, deem brioches”. Apesar
de sua ingenuidade e despreparo, portou-se com invulgar dignidade durante seu
processo: na prisão, nas sessões do julgamento quando foi falsamente acusada de
incesto com o filho, ao ser conduzida ao cadafalso numa carroça e ao subir a
este. A tal ponto que a multidão, que costumava festejar freneticamente as
execuções, manteve-se, pela primeira vez, em absoluto e respeitoso silêncio.
Danton,
um dos líderes da Revolução, no seu início disse: “Sejamos terríveis para que o
povo não precise sê-lo”. Mas depois, ao ser condenado à morte, indagou: “O que
fazer para que os oprimidos de ontem não se tornem os opressores de hoje?”
Robespierre,
o mais sádico dos revolucionários e um dos últimos a ser levado à guilhotina,
antes de sua execução tentou por duas vezes o suicídio.
A
desmoralização final da Revolução Francesa ocorreu quando foi instituída a
chamada pelo povo de “La Grande Peur” (O Grande Pavor), onde os processos não
podiam durar mais do que três dias e só havia duas decisões possíveis:
absolvição ou condenação à morte. Em um trágico processo autofágico, a
Revolução acabou por devorar-se, extinguindo-se poucos anos depois.
No
Brasil de hoje, vivemos uma outra “revolução”. Justamente indignada com a
endêmica e generalizada corrupção política e empresarial, a população foi às
ruas, aplaudindo a "lava jato" e o juiz de Curitiba. Empresários de
renome e políticos foram e são conduzidos coercitivamente para depor, ou presos
temporária ou preventivamente, sob aplauso geral, inclusive da mídia.
Nenhum
cidadão de bem pode ser contra o combate à corrupção. Mas abusos têm sido
cometidos: condução coercitiva sem qualquer prévia intimação; prisões
temporárias não prorrogadas ou preventivas revogadas apenas se o detido fizer
delação premiada; prisões provisórias, criadas para garantir a cautelaridade do
processo criminal, que se prolongam ao longo do tempo, convertendo-se em
antecipação da pena e violando o princípio constitucional da presunção de
inocência; mandados de prisão ou de condução coercitiva antecipadamente
comunicados à mídia, em operações escandalosas que recebem nomes de fantasia
cada vez mais apelativos; delações premiadas, que legalmente deveriam ser
mantidas em segredo até o recebimento de eventual denúncia, reveladas diuturnamente
à imprensa sob o falso manto do “sigilo da fonte”...
Investigados
— culpados ou inocentes, não importa — têm seus nomes e imagens expostos à
execração pública. Os maus exemplos vindos do Paraná, espalham-se, com
incríveis rapidez e desfaçatez, por outras unidades da Federação. Os tribunais
do país, inclusive superiores, não coíbem tais abusos, permitindo, ainda que
por omissão, que eles aumentem a cada dia.
Apesar
do aplauso quase unânime e do aparente sucesso do combate à corrupção, a médio
e longo prazo as contínuas e crescentes ilegalidades serão nocivas ao Estado
Democrático de Direito e à própria moralidade pública.
Exemplo
disso veio à tona em recente episódio no Rio de Janeiro. Quando a eminente
ministra do Superior Tribunal de Justiça Maria Thereza de Assis Moura restaurou
decisão de um juiz carioca que, seguindo o exemplo de magistrado norte-americano por ocasião da
prisão provisória de um casal de bispos evangélicos brasileiros, permitira, com
apoio em recente lei, que a mulher do ex-governador Sérgio Cabral ficasse em
prisão domiciliar para cuidar dos filhos menores. Populares se aglomeraram na
frente do prédio da família para, aos gritos, protestar contra uma medida de
conteúdo antes de tudo humano.
De
abuso em abuso, ilegalidade em ilegalidade, acredito que, como a Revolução
Francesa, a "lava jato" e seus aplaudidos executores já tenham
iniciado sua autofagia...
Roberto
Delmanto é advogado criminalista formado pela Faculdade de Direito da USP, foi
membro do Conselho de Política Criminal e Penitenciária do Estado de São Paulo
e do Ilanud (Instituto Latino Americano das Nações Unidas para a Prevenção do
Delito e o Tratamento do Delinqüente).
http://www.conjur.com.br/2017-mai-16/roberto-delmanto-autofagia-lava-jato-executores
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