A
história é poética. Não poderia ser diferente. Personagens principais: um poeta
e uma poesia. Thiago de Mello, ainda moço, está preso em uma cela, “muito
estreita”, lembra ele. E, pelo tom de sua voz, podemos até preencher os espaços
vazios do relato e imaginar uma luz sombria; um policial resvalando o cassetete
nas grades enferrujadas; paredes com pintura desvanecida pelo tempo, inscrições
e até mesmo com aqueles risquinhos de contagem do tempo.
A entrevista é de Roney
Rodrigues, jornalista, publicada por Outras Palavras, 02-04-2017.
Estamos
em 1968. Os militares estão no poder e o poeta “rodou” depois de participar da Passeata
dos 100 mil no Rio de Janeiro. É certo que ele pensa que se fodeu e que a
incerteza sobre o que o aguarda nas próximas horas o consome. Mas ele lê na
parede: “Faz escuro mas eu canto porque a manhã vai chegar”. Dá também para
imaginar como seus olhos se iluminaram e até ouvir uma trilha sonora em
crescente. Afinal, é seu poema épico, “Estatuto do Homem (Ato Institucional
Permanente)”, que escreveu em uma noite chilena de 1964, renunciando ao seu
posto diplomático (era, então, adido cultural no Chile) após os militares
brasileiros tomarem o poder e publicarem o Ato Institucional nº 1.
Mas,
enquanto Thiago de Mello me conta essa edificante história sobre seu famoso
poema, só penso em um Ford EcoSport. Aquela caminhoneta percorrendo cenários
idílicos e despovoados em uma propaganda da TV. Uma voz, em tom grave, ao
fundo, declamava o Estatuto do poeta amazonense. Pelo menos, foi assim que, na
infância, aprendi a admirá-lo: em um comercial de carro. Queria saber quem era
aquele cara que falava que as janelas deveriam ficar sempre abertas para o
verde e que poderíamos brincar com os rinocerontes.
Ouço
a história e, enquanto decido se conto ou não sobre isso de poesia/EcoSport,
faço um comentário trivial.
Eis a entrevista.
Então
o senhor chegou a ser preso na época da ditadura…
Eu
fui preso, mas não me gastaram, não. Fiquei um mês e meio só, interrogatório,
tal isso, tal aquilo.
Essa
conversa aconteceu no ano passado. Thiago de Mello visitava São Paulo para
comemorar seus 90 anos – segundo ele, completados em 30 de março de 2016 com
“disposição renovada”. O Poeta da Floresta, amazonense de Barreirinha, vive
atualmente à beira do rio Andirá, a 330 quilômetros de Manaus, e seria
homenageado pela Biblioteca Mário de Andrade.
Estávamos
no lobby de um hotel do centro; ele vestia branco, calças e camisa, combinando
com sua cabeleira, o que lhe conferia ares messiânicos. Perguntou a minha idade
e, como se avaliasse minha juventude, chacoalhou a cabeça.
Eu
pertenço a uma geração em que os editores queriam valorizar o escritor-moço e
corriam atrás. O José Olympio [que fundou a editora homônima, em 1931] a
[editora] Brasiliense com o Caio Prado Júnior, Péricles Eugênio [da Silva
Ramos, editor de diversas antologias], José Paulo Paes [da editora Cultrix].
Hoje tem a 7Letras [editora carioca, uma das pioneiras da “impressão por
demanda”] em que um moço como você tem que pagar para publicar. Ninguém publica
mais poesia porque a alma do negócio não é mais o sonho, mas o lucro.
Eu
também balancei a cabeça, em resposta, condescendente. Ele continua.
Mas
sonhar só vale quando se tem os pés cravados no chão. Eu posso sonhar de levar
vocês dois [está presente também seu assessor de imprensa] para a floresta:
vocês entram no coração da floresta comigo e, dali a pouco, vocês estão até
namorando uma cabocla.
Um
sonho possível. Só ter milhas para comprar a passagem de avião.
É.
Vamos trabalhar?
Vamos.
É meio clichê, eu sei, falar que “há muitos brasis”. Mas o senhor está agora
aqui, no centro de São Paulo, sendo que há dois dias estava em uma cidadezinha
do interior do Amazonas. Viu – e vê – esse contraste. Qual sua impressão desses
brasis?
Quero
que tu saias da terceira pessoa do singular e eleve-se. Subas para a segunda,
para o tu. Na floresta, quando vou sair para o barco, vêm as crianças e falam:
“poeta, poeta, tu me levas pro outro lado?”. Mas isso na cidade de São Paulo é
difícil.
Acho
que a resposta que eu tenho para ti é que essa variedade, diversidade, só
valoriza essa sociedade humana chamada Brasil. Porque a gente a encontra no
lugar mais diferente – e para usar uma palavra pobre e infeliz do ponto de
vista de uma sociedade capitalista – “mais atrasado”, como, por exemplo, essa
pequena comunidade no meio da floresta onde eu vivo – chamada Freguesia do
Andirá, nome antigo dado pelos portugueses – e em São Paulo, cidade considerada
a maior metrópole da América Latina.
Aconteceu
alguma coisa em São Paulo. Para começar: o Mário de Andrade viu em um
seringueiro dormindo um homem igual a ele e ficou espantando! Ele não sabia que
os homens da floresta que cortavam a seringueira para tirar leite também
dormiam cansados e, quando viu isso, pensou: “ué, ele é igual a mim”. Mas,
quando Macunaíma vem para cá, eles se encontram.
A
primeira vez que sai da floresta – com 15 anos de idade, para ir pro Rio de
Janeiro porque lá [no estado Amazonas] não havia faculdade – eu me espantei:
tem bonde aqui! Essa diversidade valoriza, ao invés de confundir, em um difícil
processo de aculturação. É difícil. Veja: a criança pergunta à mãe: “por que a
gente não tem essas coisas aqui também?”. Vê, na televisão e na internet, a
cidade e a selva: aqui tem metrô e lá só tem canoa! De vez em quando, aparece
um motor rabeta: essa é a máxima velocidade para eles.
Isso
tudo enriquece a sociedade humana dentro da qual a gente vive e trabalha para
que seja uma sociedade humana solidária. Estamos longe de ser, mas cada um de
nós faz a sua parte. A minha é a palavra escrita. Meus versos. Meus
pensamentos. Meus sentimentos. Aproveito para dizer que eu sou um poeta que,
cada vez mais, acredita que não há uma separação formal e infeliz entre o
sentimento e a inteligência.
É,
uma oposição muito trabalhada na história, não é mesmo?
Isso!
Para começar, os dois são cérebro. O sentimento não está no coração. Aqui [dá
duas batidinhas no peito, com a mão espalmada] está o músculo cardíaco que
controla as coronárias, os vasos, a circulação correndo pelas artérias.
Inteligência está aqui [cutuca com o indicador a fronte]. E sentimento também.
Tanto que muita gente morre de infarto com gol do Corinthians.
No
seu trabalho estão sempre presentes a questão amazônica e a integração
latino-americana. É um sonho antigo a busca pela “Pátria Grande”, vem mesmo
antes de Bolívar. Mas como superar as feridas coloniais? Parece que o Brasil dá
as costas para a América Latina.
O
trabalho pioneiro que iniciei como adido cultural das embaixadas do Brasil em
países da América Latina – que eu chamei de integração cultural – era muito
mais amplo. Era a ideia de que um país rico pudesse ajudar um país pobre,
liberando impostos e integrando mão de obra. Certas riquezas capitalistas da
construção industrial ficaram somente no campo da ciência. Quando eu estava no
Chile, embora eu tivesse ajuda do próprio governo chileno e da embaixada do Brasil,
fazíamos inúmeras reuniões com representantes da América Latina. Éramos
pioneiros. Falávamos que éramos – e continuamos a ser – um continente que não
se conhece. Um continente cujas relações são só em nível de governo e de
ministérios da economia. Os verdadeiros valores culturais de cada país não
estão na diferença de idioma que existe entre países de língua hispânica, tanto
que na Venezuela ninguém sabe nada do Peru e no México não se sabe nada do
Equador. É preciso afirmar isso com esperança, mas dizer a verdade: não nos
conhecemos.
Tratamos
de fazer isso [integrar os países] através dos escritores, dos poemas, dos
cantores, dos músicos e consegui, depois de seis meses de integração, trazer o
Pablo Milanés [cantor e compositor cubano] para cantar em São Paulo e no Rio de
Janeiro. Também trouxemos escritores numa ação conjunta. Fizemos a promoção do
Chile no Brasil, mandando vários arquitetos, escritores e jornalistas para lá.
Integrar
é conhecer. Depois da fase de se conhecer, se passa para uma maior: a
conscientização da necessidade de integrar. Essa integração que se pretende em
nível continental sequer é feita entre os estados brasileiros. As
universidades, por exemplo, não têm um nível de integração. Vivemos ilhados.
Por
que a gente não se conhece?
É
cultural, algo que veio também do nosso passado colonial. Embora naquele tempo
do Brasil Colônia se conhecesse muito de Portugal e, hoje, se conhece pouco.
Ninguém lê mais Eça de Queiroz aqui. Está se lendo pouco Machado de Assis,
nosso principal escritor. Eu faço uma pergunta para você. Você se comunica com
outros órgãos do país?
Sempre
tem a internet e dá para rolar alguma comunicação. Mas, no geral, sempre
ficamos “ilhados” nesse trechinho Rio-São Paulo.
Pois
é pouco. Vivemos ilhados.
O
discurso de preservação e de sustentabilidade parece, muitas vezes, apropriado
pelo capitalismo. Falo isso porque muito se fala da natureza, mas não de que
essas ações predatórias são políticas e de quem mais sofre com ela: o povo das
florestas.
Sim,
é mais sério. Assim como o Brasil desconhece a vida de nossos irmãos da América
Latina, também desconhece o maior manancial de vida que tem o planeta: a
floresta amazônica. Para a integração entre floresta e povo é preciso, em vez
de preservar, salvar a floresta. Senão não há integração. E sem o povo a
floresta é só paisagem. Quem dá vida à floresta – no sentido da dinâmica da
vida dela – é o homem. É o homem que passa a conhecê-la numa relação mágica:
bate no tronco e conhece a resistência da árvore contra ventanias e temporais;
através de experimentações, conhece a lenha; descobre até remédios. Para todas
as doenças que existem no mundo há um remédio. Nesse momento se estuda a casca
de uma árvore chamada unha-de-gato e o chá de sua casca que pode ser usado para
tratamento do câncer, desde que o diagnóstico tenha sido feito precocemente.
Quando os portugueses chegaram na floresta os índios já tinham a copaíba
[anticicatrizante] e a andiroba [antibiótico], o melhor curativo que tem. Eu
dou o exemplo de Anita, minha gata selvagem de rua – salvamos a vida dela –,
que me arranhou aqui [mostra o braço direito]. Passei pomada de copaíba e, três
dias depois, olha só! [sorri, mostrando algumas discretas marcas] Mas eu não
vou castigar ela, não. Ela não é educada, coitada.
Não
há um risco – ou até um fato, como estamos vendo em muitos casos – desse
discurso de preservação ser apropriado pelo capitalismo?
Há
muito tempo a ação intensa do poder do capitalismo sobre a floresta é só de
cifrão. É um exemplo danoso: abatem a floresta para extrair suas riquezas. E,
com a avanço do capitalismo, muitas áreas das florestas são escolhidas para se
abater e serem transformadas em áreas agrárias, como acontece hoje na Amazônia
com o plantio de soja. No estado do Mato Grosso há um enorme trabalho de
abatimento dessas áreas para a pecuária. Também temos muitos estrangeiros
comprando terrenos na floresta. Vivemos uma ocupação estrangeira e o Brasil até
hoje não tem uma política florestal. Isso a Marina [Silva, liderança da Rede]
diz muito bem. No estado amazônico um empresário chega ao governo e faz
decretos para ampliar seus hectares [reduzindo as áreas de preservação] e passa
a adquirir propriedades. Não temos uma política florestal rígida. Eu tenho um
livro chamado “Amazonas – Pátria da Água” [Editora Bertrand Brasil, 2002] que
trata disso. Eu busquei contribuir para o conhecimento da floresta com meus
livros. São seis ou sete livros só sobre a vida na floresta: suas lendas, seus
mitos, seus milagres, suas grandezas, suas misérias também. Afirmei com
veemência que, dentre os bilhões de vegetais que ali existem, não chegam a
cinco por cento aqueles cujos princípios químicos ativos foram estudados no
Brasil. Os naturalistas, os biólogos e os cientistas europeus estudaram a
floresta. Nós, infelizmente, não estudamos. Agora, você não quer saber nada de
poesia né?
Já
que perguntou, aqui vai uma pergunta poética. O senhor… quer dizer, você
escreveu que a “liberdade é algo vivo e transparente”. A gente está fazendo bom
uso dela ou nesse contexto político estamos mesmo num “pântano enganoso”?
Nós
estamos. Eu estou celebrando a juventude dos meus 90 anos. Só vim a saber fazer
a minha parte, para servir a determinada causa, quando fui atingido pelo raio
da pobreza e da injustiça. Com a formação que eu tive dos meus pais, comecei a
ter uma consciência solidária. Tenho minha arte que é comprometida com a
construção de uma sociedade humana solidária. Eu fiz essa opção. Eu coloco a
minha arte a serviço da conscientização e acredito que é possível a construção
de uma sociedade humana solidária. Coloca essa frase no final.
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