O
juiz Sergio Moro não reage com naturalidade quando se sente contrariado. Em
outubro do ano passado, o juiz de Curitiba incomodou-se com um artigo que o
criticava, publicado na Folha de São Paulo, e fez o que muita gente faz.
Escreveu
para o jornal e reclamou. Mas fez também o que uma minoria insegura faz.
Sugeriu que o autor do artigo fosse censurado pela Folha, por considerar que o
texto era panfletário e tinha conteúdo partidário, entre outros defeitos.
O
autor do texto acusara Moro de “intolerância moralista”. O artigo dizia: “A
história tem muitos exemplos de justiceiros messiânicos como o juiz Sergio Moro
e seus sequazes da Promotoria Pública”.
O
juiz devolveu, na carta ao jornal: “Embora críticas a qualquer autoridade
pública sejam bem-vindas e ainda que seja importante manter um ambiente
pluralista, a publicação de opiniões panfletárias-partidárias e que veiculam
somente preconceito e rancor, sem qualquer base factual, deveria ser evitada,
ainda mais por jornais com a tradição e a história da Folha”. Evitada como?
O
juiz não sabia (o que é grave para quem contesta quem o critica) que o autor do
artigo ajudou e continua ajudando a Folha a fazer história. O ‘panfletário’ é
integrante do conselho editorial do jornal e um de seus principais articulistas
há quatro décadas.
Pois
agora a ignorância do juiz Moro poderá ser sanada, porque seu alvo faz história
pelo país e merece um livro que conte sua trajetória. Chega amanhã (29/03) às
livrarias Um Aprendiz de Quixote: Memórias de Arruá (Verbena Editora), com as
memórias do físico, engenheiro e pensador Rogério Cerqueira Leite.
Cerqueira
Leite, o ‘rancoroso’ que acionou o mecanismo autoritário do juiz de Curitiba, é
um dos grandes brasileiros do século 20. É cientista respeitado, contribuiu
para a resistência à ditadura, defende a democracia em sua plenitude, faz e
reflete sobre ciência, universidade, ambiente e as questões essenciais do
humanismo. Desde o começo das manobras da direita, fez campanha contra o golpe
de agosto.
Moro
deveria conhecê-lo, antes de atacá-lo por suas discordâncias em relação à
seletividade da Lava-Jato. Não se trata de desinformação, mas de ignorância
mesmo. Um juiz não pode dizer que desconhece Rogério Cerqueira Leite.
A
Folha trouxe na segunda-feira um breve resumo dos feitos do cientista,
destacando um ponto: ele é um dos raros oráculos brasileiros que junta ciência
e humanidades, sempre fazendo uma abordagem sociológica e literária dos temas
que o inspiram.
Cerqueira
Leite criou, nos anos 80, uma das loucuras nacionais, o Laboratório de Luz
Síncrotron, em Campinas, que atua em várias frentes da pesquisa científica e é
considerado o similar brasileiro dos aceleradores de partículas da Europa.
Mas
ele não é apenas um professor pardal metido em discussões sobre energia
nuclear, combustíveis fosseis (que abomina) e fontes alternativas de energia,
como professor da Universidade de Campinas.
É
um provocador, um polemizador, um intelectual ativo no debate das grandes
controvérsias. Como fez agora ao provocar Sergio Moro e obter como reposta uma
sugestão de que deveria ser eliminado do quadro de colaboradores da Folha.
No
artigo que contrariou o juiz, Cerqueira fez referência aos embates de ideias de
tempos medievais e alertou Moro para o que aconteceu com Girolamo Savonarola, o
padre que desafiou a Igreja e foi queimado vivo em Roma.
O
cientista escreveu que, depois da caçada a Lula, o juiz poderia ser abandonado
pelos que sustentam sua atuação na Lava-Jato: “Cuidado, Moro, o destino dos
moralistas fanáticos é a fogueira. Só vai vosmecê sobreviver enquanto Lula e o
PT estiverem vivos e atuantes”.
O
juiz levou tão a sério a ameaça da fogueira que, na resposta à Folha, lamentou
o fato de o cientista “chegar a sugerir atos de violência contra o ora
magistrado”.
Cerqueira
teve de escrever de novo à Folha, em carta à seção do leitor, para esclarecer e
ironizar, num texto curto e brilhante. Eis um trecho: “O fogo a que me refiro é
o fogo da história. Intelectos condicionados por princípios de intolerância não
percebem a diferença entre metáforas e ações concretas”.
É
como se estivesse falando com uma criança. Mas Sergio Moro, o concreto, deve
encontrar tempo para ler o livro deste senhor de 85 anos. Quem sabe se
arrependa do dia em que teve a ideia de que seria possível censurar o
pensamento de um dos últimos sábios brasileiros.
Peço
desculpas por tirar o prazer da surpresa, mas a própria Folha esclarece, ao
destacar que Cerqueira Leite tem vocação para a encrenca, que o arruá do
subtítulo do livro quer dizer arisco, bravio, indócil e brigão. Com quem um
juiz previsível, cartesiano, esquemático e simplório foi se meter.
*Publicado
originalmente no blog Extra Classe.
http://www.tijolaco.com.br/blog/quem-moro-quis-censurar-por-moises-mendes/
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