O
juiz Sergio Moro determinou que o ex-presidente Lula compareça ao depoimento
das 87 testemunhas de defesa. A decisão é ilegal e demonstraremos o motivo.
Em
primeiro lugar, cabe deixar claro que qualquer réu, assim como a acusação, pode
arrolar, em nome da ampla defesa e do contraditório, até oito testemunhas para
cada imputação. O número de testemunhas assusta porque o Ministério Público
Federal deu essa possibilidade ao cumular diversas imputações. Logo, não foi
invenção nem abuso do acusado. Está na regra do CPP: artigo 401.
Em
segundo lugar, o exercício do direito de defesa se dá pela possibilidade de
estar presente para contraditar as testemunhas, especialmente as de acusação. O
direito ao confronto[1] está previsto na Convenção Americana sobre os Direitos
Humanos (artigo 8º, 2, “f”: direito da defesa de inquirir as testemunhas
presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos,
de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos), pelo qual o acusado
precisa saber o que foi produzido contra si para poder exercer, na plenitude, a
sua defesa direta. No caso de testemunhas de defesa, a questão é diversa.
Em
terceiro lugar, mesmo o acusado em liberdade provisória não pode ser obrigado a
comparecer em oitiva de testemunhas que foram arroladas porque faz parte de sua
tática defensiva. Portanto, a decisão peca ainda pelo ranço autoritário, na
medida em que coloca o acusado na situação de "objeto" de prova, e
não de sujeito do processo. Ressalve-se que, se o acusado estiver em liberdade
provisória, tendo assumido o compromisso de comparecer a todos os atos do
processo, então sua ausência poderá causar-lhe prejuízo (revogação da liberdade
provisória e decretação da prisão). Mas essa é uma situação excepcional, que
não se constitui no caso em análise.
Em
quarto lugar, em casos anteriores de acusados presos pelos mais variados
motivos, mesmo em se tratando de testemunhas defensivas, não se determinou a
obrigatoriedade de comparecimento pessoal do acusado preso, como, aliás, é a
tônica dos processos brasileiros em que, no caso de carta precatória, não se
conduz o acusado ao ato.
Em
quinto lugar, a revelia no processo penal, quando pensada nos moldes do
processo civil, causa estragos assustadores[2]. A defesa técnica estando
presente pode realizar a finalidade do ato de oitiva de testemunhas de
defesa[3]. Aliás, a cisão da audiência em duas partes, justificada pela
quantidade de pessoas a se ouvir, autoriza a deliberação defensiva sobre a necessidade/pertinência
do comparecimento ou permanência do acusado nas respectivas oitivas. Não é
demais recordar, portanto, que a "revelia" não produz nenhum efeito
no processo penal, na medida em que o acusado segue protegido pela presunção de
inocência (logo, não se presume a veracidade dos fatos não contestados, como no
processo civil), a defesa técnica será obrigatoriamente intimada de todos os
atos, e o réu será, se comparecer, interrogado ao final.
Em
sexto lugar, existem mecanismos hábeis para que o juiz determine o
esclarecimento sobre a definição de quais testemunhas deporão sobre que
imputações, controlando abusos, e, ainda sim, na hipótese de testemunha
abonatória, a limitação por impertinência, irrelevância ou caráter protelatório
(CPP, artigo 400, parágrafo 1º) poderia ser realizada. Mas não foi. O juiz
também poderia determinar que a defesa definisse quais testemunhas irão depor
sobre que fatos, para controle do limite legal de oito testemunhas por fato
imputado. Eventual argumentação acerca de manobras protelatórias, abusos ou
"chicanas processuais" pode e deve ser coibida de outra forma, mas
não através da criação de um dever de comparecimento completamente inexistente.
Há um erro em pretender estabelecer uma relação de causa e efeito (número
elevado de testemunhas e dever de comparecer) entre situações completamente
diferentes e que não se vinculam.
Logo,
a determinação não encontra respaldo no CPP e na orientação dos tribunais,
tratando-se de mais uma leitura isolada do processo penal formulada pelo juiz
Sergio Moro, que respeitamos e que, como qualquer juiz, pode estar errado. A
gravidade das condutas imputadas não transforma o processo penal brasileiro
conforme as conveniências, nem pode servir como mecanismo para restrição do
direito de defesa. Por isso, a determinação de comparecimento de qualquer
acusado à oitiva das testemunhas defensivas é abusiva. Mas quando as regras são
inovadas constantemente, não se sabe o que pode acontecer. A criação de uma
condição — presença física do acusado — para que sua defesa possa ser exercida
na plenitude é abusiva.
[1]
RUDGE MALAN, Diogo. Direito ao Confronto no Processo Penal. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2009, p. 206.
[2]
LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo; Saraiva, 2017.
[3]
MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos.
Florianópolis: Empório do Direito, 2017.
Aury Lopes Jr é doutor
em Direito Processual Penal, professor titular de Direito Processual Penal da
PUC-RS e professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais,
Mestrado e Doutorado da PUC-RS.
Alexandre Morais da Rosa
é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo
Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali
(Universidade do Vale do Itajaí).
Revista
Consultor Jurídico
http://www.conjur.com.br/2017-abr-21/limite-penal-lula-nenhum-acusado-ir-oitiva-testemunha
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