A
atividade administrativa exercida por agentes públicos deve ser rigorosamente
controlada por agentes públicos independentes.
Não por outra razão, a Constituição da República de 1988 criou complexa
e multifacetada teia de controles da atividade jurídico-administrativa, cujo
escopo central é inibir e reprimir atos omissos ou compassivos que destoem da
baliza ética e legal e que possam representar a utilização irracional e
desarrazoada das prerrogativas públicas conferidas pelo ordenamento jurídico
aos que exercem parcela de poder.
Não
se pode, contudo, desprezar os desacertos que as autoridades públicas
envolvidas na atividade de controle podem praticar. Se prefeitos, servidores e
empregados públicos cometem ilícitos, assim também podem agir magistrados, membros do Ministério Público, conselheiros e
ministros dos Tribunais de Contas.
Revisitar o tema do abuso de autoridade é mais do que oportuno, é vital
em uma sociedade cuja Constituição não santifica ou endeusa qualquer dos
agentes públicos.
O
atual PLS 85/2017 relatado pelo senador Roberto Requião (PMDB-PR), cuja
apresentação à Comissão de Constituição e Justiça do Senado na última
quarta-feira (19/4) define como sujeito ativo dos crimes de abuso de autoridade
qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou
fundacional de qualquer dos poderes da União, dos estados, do Distrito Federal,
dos municípios, de território, compreendendo, mas não se limitando os
servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas; membros do Poder
Legislativo; membros do Poder Judiciário; membros do Ministério Público e
membros dos Tribunais ou conselhos de contas.
Para
além de utilizar o vocábulo agente público, valendo-se pois do mais abrangente
rótulo que o direito administrativo conhece para sinalizar o
alcance subjetivo da regra, o PLS 85/2017 ocupa-se de afastar qualquer
sorte de dúvida, mencionando expressamente diversas categorias às quais se
poderá atribuir a prática do crime de abuso de autoridade e ao transportar,
para o parágrafo único do artigo 1º, a concepção doutrinária de agente público,
que desconsidera limites quanto à natureza do vínculo, sua eventual transitoriedade
e à existência ou não de remuneração.
Ainda
que vozes possam reverberar a coincidência da proposta diante dos retumbantes
impactos da operação “lava jato”, parece-nos indiscutível a necessidade de
aperfeiçoarmos a República em sua integralidade, não ignorando as práticas nem
sempre merecedoras de encômios, oriundas daqueles cuja missão essencial é o
controle sobre atitudes alheias.
A
discussão sobre uma nova lei de abuso de autoridade tem gerado grande
preocupação entre membros da magistratura e, em especial do Ministério Público.
As entrevistas concedidas pelos seus representantes mais ilustres e a própria redação do texto
ofertado pela Procuradoria Geral da República ao Congresso Nacional revelam o
desconforto com uma possível contenção, via oblíqua, da atuação
ministerial. Isso porque, o insucesso
em determinada ação judicial poderia caracterizar abuso de autoridade, o que
seria um convite à inação e a um indesejável recato do Ministério Público.
Evidentemente que o estímulo ao silêncio não apenas abalaria o Ministério
Público, como igualmente prejudicaria a sociedade. Portanto, recomenda-se
prudência quando do trato da matéria.
Ao
apresentar as considerações da procuradora-geral da República, Rodrigo Janot
salientou que a pretensão do Ministério Público Federal era afastar o chamado "crime de hermenêutica",
salientando ainda que os agentes
públicos não podem ser punidos pelo exercício regular de suas funções.
A
proposta do relator, senador Roberto Requião, hoje difundida pela mídia, todavia,
não incorporou, em sua totalidade, a redação proposta pelo Ministério Público
Federal. O senador alega preocupação em conter o abuso e não eventuais
desajustes de interpretação, mas argumenta ser necessário não blindar as
autoridades de eventual cometimento de crime.
Assim,
logo após conceituar o crime de abuso de autoridade, os parágrafos do artigo 1º
do PLS 85/17 ressalvam que "as condutas descritas nesta lei constituem
crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade
específica de prejudicar outrem, beneficiar a si próprio ou a terceiro ou ainda
por mero capricho ou satisfação pessoal”
e ainda explicitam que
“divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas,
necessariamente razoável e fundamentada, não configura, por si só, abuso de
autoridade."
A
proposta parece buscar um ponto de equilíbrio entre a redação original do PLS
280/2016 que, ao conceituar o crime de abuso de autoridade, fazia alusão ao
abuso do poder conferido às autoridades públicas sem, todavia, abordar a
questão relativa à interpretação jurídica, e a sugestão ofertada pelo
Ministério Público Federal que, sinteticamente, pretendia afastar a
criminalização diante de divergência de entendimentos.
A
escolha adotada pelo Relator, em princípio, parece ajustada, ainda que seja
crucial aprimorar a redação para que se esclareça, por exemplo, o que se
compreende como divergência "necessariamente razoável e
fundamentada".
Preservada
a regra como hoje proposta pelo relator, sem ajustes de conteúdo, não serão
raros os casos em que haverá dissonância de entendimento sobre a
responsabilização ou não, diante da imprecisão de sua construção.
Um
exemplo ajudará a compreender o receio
que verbalizo.
Atualmente,
é possível testemunhar situações em que, a despeito da compreensão sedimentada
pelo STF, o Ministério Público insiste no ajuizamento de ação, visando a
condenação de agente público, entidades e/ou cidadãos. Ainda que se possa
lançar mão do argumento da autonomia e independência funcional do membro do
Ministério Público, de fato garantida constitucionalmente, parece necessário
reconhecer que tais prerrogativas são concedidas visando o desempenho racional
das atribuições ministeriais.
A
propositura de ações em que se sustentam teses repudiadas pelo Supremo Tribunal
Federal, em especial quando objeto de via súmula vinculante ou em casos de
repercussão geral, espelha, a nosso sentir, antes o descompromisso com o
interesse público, além de provocar transtornos injustificáveis para os que
precisarão se defender.
Nesse
cenário, parece-nos que a diversa interpretação jurídica realizada pelo membro
do Ministério Público não autorizaria o manuseio de ação, a questionar
determinada conduta praticada por autoridade, se amparada em decisão com
repercussão geral ou súmula vinculante do STF.
Trata-se de exemplo ilustrativo do enquadramento em abuso, por
existência de “divergência não razoável” – artigo 1o do PLS 85/2017.
Mas
a análise que faço pode não encontrar ressonância. Outros poderão argumentar
contrariamente. A simples possibilidade de dissenso recomenda que, desde logo,
e tanto quanto possível, se aperfeiçoe a construção da norma, para sinalizar a
seus destinatários os eventuais "campos minados " de seu ofício. A
expressão “mero capricho ou satisfação pessoal” retrata conceito jurídico
indeterminado de difícil caracterização. Talvez pudesse ser substituída por
algo como “razões pessoais incompatíveis com o interesse público”.
De
toda forma, para além da conveniência (ao menos) de ajustes para o aprimoramento
do artigo 1º do PLS 85/2017, é curioso perceber que a essência do receio
ministerial concentra-se exatamente na questão da criminalização da divergência
de interpretação.
Preocupa-se
o Ministério Público em afastar qualquer tentativa de se imputar a seus membros
a prática de abuso de autoridade, na hipótese em que o pedido formulado em ação
por eles patrocinada, a partir de determinada compreensão da ordem jurídica,
seja posteriormente rechaçado pelo Poder Judiciário.
Ocorre
que o mesmo Ministério Público rotineiramente ignora a possibilidade de
divergência interpretativa, dirigindo-se furiosamente contra autoridades
públicas que ousam se filiar a corrente outra que não a que embala o pensamento
ministerial.
Interessante
notar que o argumento que nutre a reação ministerial retratada em documentos e
recentemente verbalizada tanto em entrevistas não discrepa daqueles
corriqueiramente apresentados pelos réus diante de ações movidas pelo próprio
MP.
Não
raras vezes, o agente público competente para o exercício da atividade
administrativa se vê lançado no polo passivo de ações penais e de improbidade,
pela prática de ato administrativo, sem dolo ou culpa, apenas porque a sua
escolha ou conduta não representa a opção que aos olhos do membro do Ministério
Público parece adequada. Sem falar nas teses criadas ao arrepio da lei e dos
mais básicos princípios constitucionais, como é o caso da “presunção de dolo”.
É
interessante como de nada adianta a posição divergente àquela do MP estar
fundada em entendimento jurisprudencial e/ou doutrinário pré-existente — e esse
é um problema que precisa ser debatido. Isso sem falar no tom ameaçador das
recomendações por meio das quais o Ministério Público costumeiramente não se
limita a exigir o saneamento de supostas falhas, mas chega a exigir a adesão a
opções de política pública que, na sua visão, são as melhores.
Ora,
se não é correta a punição de membros do Ministério Público, porque há de lhes
ser assegurada a liberdade para eleger determinada linha interpretativa, igualmente
não se deveria cogitar do ajuizamento de ações em face de outras autoridades
públicas nas hipóteses em que o comportamento adotado não se amolda àquele
desejado pelo órgão ministerial, mas se afina com entendimento doutrinário ou
jurisprudencial, ainda que não pacíficos.
Promotores
e procuradores da República costumam
resistir bravamente à ideia de
que à autoridade administrativa deve ser assegurada a mesma liberdade
hermenêutica que pretendem lhes seja garantida.
Se
é crucial afastar o "crime de hermenêutica" para o exercício
satisfatório das prerrogativas que a Constituição da República garante aos
promotores, procuradores de Justiça e procuradores da República, há se se
salvaguardar o mesmo espaço de interpretação para as demais autoridades.
Afinal, ubi eadem ratio ibi idem jus, ou seja, “onde houver o mesmo fundamento
deverá haver o mesmo direito”. Ou ainda:
ubi eadem legis ratio ibi eadem dispositivo (“onde há a mesma razão de
ser, deverá prevalecer a mesma razão de decidir”).
Em
outras palavras, pau que não dá em Chico não pode dar em Francisco. Diante de
uma diversidade de entendimentos a respeito de certo assunto, há de se
assegurar à autoridade competente o direito a atrelar-se à determinada linha
interpretativa, sem asfixiar o espaço decisório do agente público. Mas,
definitivamente, não é isso o que vem ocorrendo.
A
liberdade que se pretende conceder ao Ministério Público de ater-se a uma ou
outra linha de pensamento acolhida pela jurisprudência também deve ser
garantida os demais agentes públicos, sob pena de ser mantido um privilégio
inadmissível a determinados órgãos controladores — que passam a se estabelecer
acima do bem e do mal. Tolher tal liberdade deve ser considerado um caso de
abuso de autoridade.
O
momento convida ainda a uma outra reflexão a respeito da qual o PLS 85/2017
nada disse expressamente — mas deveria.
Entre
os tipos penais distribuídos pelo PL 85/2017 não há previsão específica sobre o
enquadramento, em termos de abuso de autoridade, da instauração de inquérito
civil ou criminal ou do ajuizamento ações pelo Ministério Público, a despeito
de evidenciada a prescrição da pretensão persecutória.
Tenho
presenciado o desassossego de pessoas que se veem compelidas a contratar
advogado, para o oferecimento de defesa e acompanhamento de ação proposta em
flagrante desconsideração à prescrição.
O
Supremo Tribunal Federal firmou tese com repercussão geral, nos autos do
Recurso Extraordinário 669.069, sobre a prescritibilidade das ações de
reparação de danos à Fazenda Pública decorrentes de ilícito civil. A despeito
disso, ainda hoje o Ministério Público
propõe ações contra atos alcançados pela prescrição. E não me refiro a casos em
que se imputa aos réus a prática de improbidade administrativa. Refiro-me a
casos em que o propósito é exclusivamente o ressarcimento ao erário. A situação
é ainda mais dramática quando se postula e, pior, se obtém o bloqueio dos bens
dos réus (a propósito, é urgente discutir a absurda jurisprudência a respeito
deste tema, o que será objeto de outra coluna).
Ora,
prerrogativas funcionais são ferramentas imperiosas ao exercício responsável
das atribuições inerentes ao cargo público. São intoleráveis e igualmente
danosas à sociedade os excessos e a insensatez. Movimentar a estrutura do Poder
Judiciário e do próprio Ministério Público em busca de ressarcimento não mais
possível diante do transcorrer dos dias é também lesivo ao erário e ao
interesse público.
Enfim,
parece evidente que a reflexão sobre os equívocos e exageros das autoridades
responsáveis pelo controle é muito relevante, inclusive para ser preservado o
importante papel que a Constituição da República lhes conferiu. Disciplinar o
assunto mediante lei, mais do que oportuno, é fundamental.
Cristiana
Fortini é advogada, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e
ex-controladora-geral e ex-procuradora-geral-adjunta de Belo Horizonte. Tem
pós-doutorado na Universidade George Washington (EUA).
http://www.conjur.com.br/2017-abr-20/interesse-publico-marco-legal-abuso-autoridade-oportuno
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