Às
vésperas da reunião da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal na
qual será votado o relatório do senador Roberto Requião substitutivo ao projeto
que moderniza o tratamento legal do crime de abuso de autoridade (PLS 280/2016
e PLS 85/2017), a opinião pública é bombardeada pela mídia comercial, sob a
liderança da Rede Globo, com um mantra: trata-se de um projeto de lei urdido
para enfraquecer a "lava jato" e impedir que ela alcance os objetivos
a que se propõe.
No
mesmo sentido, três procuradores federais que integram a operação divulgaram um
vídeo para alertar que a lei do abuso de autoridade visa limitar as ações do
Ministério Público Federal de combate à corrupção e a atuação do juiz Sergio
Moro, diante do que conclamam à mobilização social para impedir a aprovação do
projeto. Na mesma toada, alguns senadores produziram vídeo pedindo pressão
popular para que o projeto seja rejeitado. E o juiz Sergio Moro publicou um
artigo no jornal O Globo (Independência judicial e abuso de autoridade)
classificando o projeto de lei do abuso de autoridade de “pretexto” cujos
efeitos práticos (e desejados pelos seus patrocinadores) são os de criminalizar
a interpretação da lei e intimidar a atuação independente dos juízes.
Será
assim? O projeto de lei do abuso de autoridade tem por objetivo enfraquecer a
operação "lava jato"? Caso tenha esse objetivo, ele é possível de
produzir efeitos na realidade jurídica e social? E se não há tal intenção
legislativa, ou caso ela não possa se materializar, por que a grande mídia
comercial, os procuradores da operação e o juiz federal Sergio Moro mobilizam a
opinião pública para impedir a sua aprovação?
Debrucemo-nos
com serenidade sobre o projeto para que verdade apareça límpida e sem arroubos
retóricos nem alarmismos sem fundamento. Algumas perguntas são indispensáveis.
No que toca ao objeto do projeto (a incriminação de condutas como crimes de
abuso de autoridade), há uma prevalência da tipificação penal de condutas
próprias dos agentes públicos que comandam e executam a "lava jato"?)
Quanto aos agentes públicos cujos atos de abuso de autoridade passam a ser
puníveis com a nova lei, há um direcionamento da criminalização em direção
àqueles atos comumente praticados direta ou indiretamente pelos agentes
públicos envolvidos no planejamento e execução da operação "lava
jato"? No que concerne à legitimidade processual ativa, que agentes
públicos são encarregados pela nova lei adotar os atos administrativos e
judiciais necessários a que os responsáveis por crimes de abuso de autoridade
sejam punidos?
Vejamos.
O
objeto ou a alcance da lei aparece logo no seu artigo 1o, tendo relator optado
pelo amplíssimo conceito de agente público para fazer incidir o conceito de
abuso de autoridade: “Esta lei define os crimes de abuso de autoridade,
cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas
funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido
atribuído.”
O
projeto define taxativamente os crimes de abuso de autoridade, bem assim
figuras equiparadas, descrevendo com precisão cada conduta incriminada, em
claro aperfeiçoamento técnico e benefício da segurança jurídica quando
comparado com a vagueza e imprecisão do artigo 3º da vigente Lei 4.898, de
1965, que fixa rol meramente exemplificativo de conduta vedadas.
O
artigo 2º do substitutivo do relator estabelece amplo espectro de sujeitos
ativos do crime de abuso de autoridade vem definido, a saber: qualquer agente
público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de
qualquer dos poderes da União, dos estados, do Distrito Federal, dos
municípios, de território, compreendendo, mas não se limitando, os servidores
públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas; membros do Poder
Legislativo; membros do Poder Judiciário; membros do Ministério Público e membros
dos tribunais ou conselhos de contas.
Logo,
não há na definição do objeto da nova lei e do elenco dos sujeitos ativos do
crime de abuso de autoridade qualquer elemento que possa indicar serem os
agentes públicos que planejam e executam a operação "lava jato" os
destinatários preferenciais do projeto de lei. Nem poderia ser diferente, pois,
do contrário faltaria à lei em elaboração os requisitos indispensáveis da
generalidade, segundo a qual a lei não deve dirigir-se a indivíduo ou
indivíduos específicos, mas a todos os que se enquadrarem na hipótese legal, e
da abstração, para a qual a lei não deve atender a uma situação concreta, mas a
todas as situações de fato previstas abstrata e hipoteticamente na norma.
Ponto
importante é a legitimação ativa para provocar o Estado-juiz a julgar e punir
os agentes públicos que pratiquem crimes de abuso de autoridade. É do que trata
o artigo 3º do substitutivo do relator. A crer-se no pavor medo que o projeto
parece instilar nos procuradores da "lava jato" e no juiz federal
Sergio Moro e que, aparentemente, contamina alguns senadores, bastará que a
nova lei passe a viger para que país assista uma caçada macabra aos
procuradores e juízes, que estarão sujeitos a perseguições de toda ordem por
parte dos poderosos cujos interesses sejam contrariados por suas decisões
independentes.
Só
que não.
No
processo penal brasileiro, os crimes em cuja punição prevalece o interesse
público sobre o interesse privado têm como “dono da ação penal” o Ministério
Público, seja na ação pública incondicionada, em que o Ministério Público deve
requerer a instauração da ação penal independente de provocação da vítima, seja
na ação pública condicionada a representação (pedido da vítima). Se o
Ministério Público deixar de intentar a ação penal no prazo legal, abre-se a
oportunidade para que a vítima o faça: é a ação penal privada subsidiária da
pública, prevista no artigo 5º, LIX, da Constituição Federal e no Código de
Processo Penal. Mesmo nesse caso, todavia, o protagonismo do Ministério Público
não desaparece nem se enfraquece, cabendo-lhe atuar como titular da ação penal
em toda a instrução processual, podendo, inclusive, impedir que a vítima
negligencie ou desista da ação, hipótese em que o parquet reassume na
integralidade a sua condição de “dono da ação”.
Depois
de haver experimentado algumas alternativas de texto para o artigo 3º, que
trata da legitimação ativa para o crime de abuso de autoridade, o relator
parece ter optado pela redação que reproduz o tratamento dado à matéria no
Código de Processo Penal:
“Art.
3º Os crimes previstos nesta lei são de ação penal pública incondicionada.
§
1º Será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for
intentada no prazo legal, cabendo ao Ministério Público aditar a queixa,
repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do
processo, fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo tempo, no
caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal.
§
2º A ação privada subsidiária da pública será exercida no prazo de seis meses,
contado da data em que se esgotar o prazo para oferecimento da denúncia.”
Portanto,
nos casos de crime de abuso de autoridade, em que o interesse público prevalece
sobre o particular, o Ministério Público é o titular da ação penal, vale dizer,
é dele a atribuição/competência para requerer, através da denúncia, a
instauração da ação penal para a punição dos responsáveis. Daí se vê que não
tem base legal, fática ou lógica a afirmação de que a nova lei do abuso de
autoridade impedirá o funcionamento da "lava jato" ou que, ao menos,
teria esse propósito. Para que isso ocorresse seria necessário que os demais
membros do Ministério Público se unissem em conspirata para, reiteradamente,
denunciar ao Judiciário como caracterizadores de crime de abuso de autoridade
os atos regulares e legais dos agentes públicos integrantes da força-tarefa da
"lava jato", hipótese cerebrina e caricata.
Mas
nem sob tal imaginário e incrível bombardeio dos seus pares de Ministério
Público os agentes públicos que dirigem a operação "lava jato"
ver-se-iam impedidos de prosseguir em suas ações regulares e legais. Para a
descontinuidade da operação não bastaria a ação concertada do Ministério
Público, mas também a concordância do Poder Judiciário, ao qual cabe, pelo
recebimento da denúncia do Ministério Público, dar início à ação penal. Logo se
vê que nada disso guarda o menor laivo de factibilidade. Para que os ânimos dos
juízes — inclusive do juiz Sergio Moro — e do procuradores serenem vale dirigir
a eles o conselho do juiz Sergio Moro aos políticos, no artigo publicado no O
Globo: “deve-se confiar na atuação da Justiça, em todas as suas instâncias,
para a necessária depuração”, pois “qualquer condenação criminal depende de
prova acima de qualquer dúvida razoável.“
Aqui
um parêntesis. Como se vê pelo contexto do artigo publicado, ao usar o termo
“razoável” o juiz Sergio Moro cometeu o que se chama em psicanálise de ato
falho ou, do ponto de vista da lógica da argumentação, uma incongruência: num
momento ele considera que o uso do termo “razoável” no artigo 1º do substitutivo
do relator é prova de que o projeto “não contém salvaguardas suficientes”. Com
efeito, diz o juiz Sergio Moro: “Afirma [o relatório], por exemplo, que a
interpretação não constituirá crime se for ‘razoável’, mas ignora que a
condição deixará o juiz submetido às incertezas do processo e às influências
dos poderosos na definição que vem a ser uma interpretação razoável.” Logo
depois, “tranquiliza” os políticos investigados pela "lava jato":
“deve-se confiar na atuação da Justiça, em todas as suas instâncias, para a
necessária depuração”, pois “qualquer condenação criminal depende de prova
acima de qualquer dúvida razoável.“ É compreensível que o juiz Sergio Moro use
o termo “razoável”. É difícil pensar adequadamente o Direito nestes tempos de
crescente densidade normativa dos princípios sem socorrer-se do princípio da
razoabilidade, como o fez com acerto o relator do projeto, sem que isso
represente, como apregoam os adversários do projeto, insegurança jurídica ou
vulnerabilização do juiz.
Outra
objeção lançada contra o projeto de lei dos crimes de abuso de autoridade é o
de que os juízes passariam a ser condenados por julgar de modo diverso ao que
prevê a referida lei, criminalizando-se a hermenêutica. Mas para que isso
ocorresse, como está patente no projeto, na Constituição Federal e no Código de
Processo Penal, seria necessário o Ministério Público denunciasse o juiz por
crime de abuso de autoridade, que um juiz recebesse a denúncia (iniciando, com
isso, a ação penal), que o juiz da ação condenasse o juiz réu e que essa
condenação fosse mantida nas instâncias superiores.
Como
se vê, pouco importa que poderosos, admita-se, queiram esconder-se detrás da
nova lei para aterrorizar os procuradores da "lava jato" ou o juiz
Sergio Moro. Isso simplesmente não acontecerá porque o sistema
jurídico-judicial é que aplicará a lei oriunda do projeto. Quem dirá, ao final
e ao cabo, o que é crime de abuso de autoridade serão juízes, desembargadores,
ministros dos tribunais superiores (logo, a jurisprudência), promotores de
Justiça, procuradores do Ministério Público, sub-procuradores gerais da
República, Procurador Geral da República, delegados de Polícia, assessores
jurídicos dos órgãos do Estado e também "a doutrina" (esse
interessante termo com que o invencível cacoete dogmático do Direito insiste em
denominar os teóricos do Direito).
Em
suma, para emprestar um termo caro ao juiz federal Sergio Moro, o sistema
jurídico-judicial realizará “a devida depuração” da lei do abuso de autoridade
em todos os seus aspectos, inclusive de um ou outro conceito mais ou menos
aberto que, eventual e inevitavelmente, apresente.
E,
como sempre, o sistema judicial fará a depuração ou modulação do alcance da
nova lei em sua própria defesa e para a sua própria sobrevivência e reprodução.
Não tem importância qual seja o desejo do legislador. Será o sistema
jurídico-judicial que definirá o “espírito da lei”.
É
princípio primeiro hermenêutica jurídica a distinção entre a intenção do
legislador (mens legislatoris) e o espírito da lei (mens legis). O espírito da
lei é completamente autônomo em relação à intenção do legislador (salvo o caso,
excepcional e raríssimo, em que os debates legislativos possam servir como
recurso argumentativo na defesa de uma tese em juízo). Como o espírito da lei não
tem boca para dizer que a lei é, é o sistema jurídico-judicial no seu fazer
interpretativo (hermenêutica jurídica) que dirá o que lei é.
Se,
enfim, não é crível que conceitos tão elementares como os aqui sucintamente
expostos não sejam do domínio dos procuradores da "lava jato" e do
juiz federal Sergio Moro, o que justificaria, então, as suas iniciativas
midiáticas contra o projeto de lei do crime de abuso de autoridade mediante o
argumento — falso, vimos; falso, sabem eles — de que, com a aprovação da lei, a
"lava jato" passaria a correr graves riscos em sua eficiência e mesmo
continuidade.
Talvez
mais do que em qualquer outra oportunidade, a guerra da mídia comercial, em
especial da Rede Globo, contra a lei do abuso de autoridade oferece uma fresta
de luz por onde a consciência nacional possa dar um passo à frente. Já vimos
que a nova lei não representa qualquer risco para a investigação da "lava
jato" como para qualquer outra investigação, nem cria dificuldades para o
trabalho regular e legal da polícia, do Ministério Público e do Judiciário.
Logo, não é a legalidade, nem a eficiência das investigações, nem o trabalho
constitucional que desenvolvem os membros do Ministério Público e do Poder
Judiciário o que está em jogo.
O
que está em jogo é o poder. Não o poder exercido regularmente, segundo os
limites da Constituição e da lei. Mas, justamente, o poder que usufruem e
exercem à margem da lei determinados “interesses especiais”, para usar mais uma
expressão do juiz Sergio Moro no referido artigo. Embora o alarde se dirija
publicamente contra o artigo 1º ou o artigo 3º do projeto, é bem mais crível
que o que esteja a incomodar os mega-poderes que se mobilizam contra a nova lei
sejam outros artigos do projeto, que criminalizam, por exemplo, a espúria
associação de agentes públicos, inclusive do Ministério Público e Judiciário,
com interesses econômicos e políticos que ainda não se acostumaram com a ideia
expressa no artigo 5º da Constituição Federal: todos são iguais perante a lei.
A
simples leitura do projeto é suficiente para constatar que é uma lei que vem em
boa hora. Sempre é uma bora hora para estabelecer limites legais e humanos às
ações policiais e dos agentes públicos do sistema carcerário (artigos 11 a 25),
à exposição processualmente desnecessária da intimidade ou da vida privada de
quem encontra-se sob investigação (artigo 28), à procrastinação injustificada
de procedimento investigatório (artigo 31), bem assim é sempre conveniente
impor tratamento humano e respeitoso aos os defensores dos investigados (artigo
32) e respeito ao princípio da presunção de inocência (artigo 38).
Os
agentes públicos que exercem suas atribuições com respeito à Constituição e às
leis nada têm a temer com o advento da nova lei de crime de abuso de
autoridade. O alarmismo injustificado dos procuradores vinculados à
investigação "lava jato" e o trabalho de mídia que, juntamente com o
juiz Sergio Moro, levam adiante para impedir que o Congresso Nacional aprove a
lei é uma espécie de desnudamento da operação "lava jato", uma
confissão. Igualmente ilustrativo é a simbiose de interesses que une os que militam
dentro e fora do aparato estatal contra a aprovação de uma lei dos crimes do
abuso de autoridade. Seriam esses também “interesses especiais” poderosos e
contrariados?
De
toda sorte, sem sombra de dúvida os debates na CCJ do Senado nesta quarta-feira
(26/4) darão a todo o Brasil a oportunidade de afastar toda distorção
ideológica (falsa consciência) a respeito de um projeto que protege os
cidadãos, de modo particular os pequenos, os fracos, diante da opressão
burocrática, quando essa assume contornos suficientemente graves para que a
sociedade resolva, por meio do Congresso Nacional, tipificá-los penalmente.
Mais
do que oportuna, a nova lei já passou da hora. Será, certamente, um mecanismo
de proteção do cidadão comum, bem assim um elemento importante para o necessário
e urgente reequilíbrio do sistema de pesos e contra-pesos que conformam o
estado democrático de direito.
Quem
viver, verá.
http://www.conjur.com.br/2017-abr-26/samuel-gomes-lei-abuso-autoridade-nao-poe-lava-jato-risco
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