Um
dos aspectos mais surrealistas do processo judicial em curso no Brasil
refere-se à resistência de promotores e procuradores ao projeto de lei do abuso
de autoridade, relatado pelo senador Roberto Requião no Senado. É a mais
descarada atuação corporativa empreendida por esses profissionais do arbítrio,
com total despudor, em defesa de privilégios gritantes e contra direitos
fundamentais do cidadão naquilo que ele tem de mais essencial, a prerrogativa
que possa vir a ter de reagir na Justiça ao abuso de poder.
O
principal ponto de resistência da corporação de procuradores e promotores se
refere a uma tecnicalidade jurídica de difícil compreensão por não
especialistas. É esse caráter obscuro que facilita a neutralização absoluta do
projeto em favor, justamente, das corporações mencionadas. É que elas insistem
em submeter uma eventual ação de abuso de autoridade à livre interpretação do
juiz a respeito do ato praticado, pelo que a autoridade responsável pelo abuso
acabaria protegida por critérios de julgamento subjetivos.
A
forma como o debate a respeito é escamoteado de maneira mais fácil é mascará-lo
com a terminologia jurídica especializada. Em lugar de reconhecerem no projeto
a intenção clara de manter um poder efetivo de desvirtuar a capacidade da
futura lei de combater o abuso de autoridade, os opositores do projeto falam
pomposamente em "hermenêutica", significando a capacidade
discriminatória do juiz de decidir conforme seus próprios critérios, e não
conforme a lei objetiva. Em consequência, cria-se a lei e depois liquida-se com
ela.
A
boa notícia é que uma clara maioria no Senado, com igual simpatia de uma
maioria também na Câmara, parece inclinada a aprovar o projeto. É importante
assinalar que, na defesa dele, o senador Roberto Requião gastou boa parte do
seu tempo assegurando e provando que a projetada lei não tem nada a ver com a
Lava Jato e não tem nenhuma intenção de criar obstáculos para qualquer
investigação criminal em curso. É exclusivamente para combater o abuso de
autoridade. Quem é contra é a favor do abuso. Seja de um juiz que mantém presa
no meio de 20 homens uma garota de 13 anos, seja do fiscal de renda que achaca
um contribuinte.
https://www.brasil247.com/pt/colunistas/josecarlosdeassis/288736/Do-abuso-da-autoridade-ao-abuso-do-oportunismo.htm
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