Como
os traficantes e donos de escravos no século XIX, os deputados recorreram às
virtudes do livre-mercado para desmontar a CLT
O
fim da escravidão atrapalharia o capitalismo, argumentavam os interessados
A
reforma trabalhista que autoriza o vale-tudo nos contratos de trabalho foi
aprovada na Câmara de Deputados com o recurso previsível a argumentos
neoliberais. Vários deputados alegaram ser preciso reinstituir o livre-mercado
nas relações trabalhistas, pois as leis existentes protegeriam em excesso o
vendedor da jornada de trabalho e diminuiriam o incentivo aos compradores de
mão-de-obra. No fim, o aumento da demanda favoreceria os trabalhadores: a
reforma trabalhista seria para o próprio bem deles.
No
louvor às virtudes do livre-mercado, este discurso é muito semelhante àquele
dos traficantes e proprietários de escravos brasileiros no século XIX. Os
primeiros reclamavam das pressões inglesas para fechar um mercado como outro
qualquer: o do corpo negro. Os segundos exigiram até indenização do Império por
intervir na esfera da livre propriedade privada em 1888, embora talvez
soubessem que o tipo de greve geral da época, a fuga massiva de escravos,
exigia a abolição para preservar a mão-de-obra no campo. Em 1887, o Clube
Militar anunciara a recusa do Exército a caçar e capturar os escravos que
fugiam em massa.
O
equívoco do argumento liberal é que nunca existiu algo como o livre-mercado
independentemente dos valores de cada civilização. Estes valores são
duradouros, mas mudam em função do debate político. Em 1819, por exemplo, os
liberais do parlamento inglês eram contrários à “intervenção artificial” que
proibia o trabalho de crianças com menos de 9 anos de idade e limitava a “apenas”
12 horas a jornada dos que tivessem menos de 16. Hoje, nem no Brasil se defende
algo parecido.
O
próprio patriarca do liberalismo econômico, Adam Smith, escrevia em 1776 que os
empresários combinavam rebaixar salários (manipulando o livre-mercado) e impor
leis que proibiam greves e até a associação dos trabalhadores que reagissem ao
conluio empresarial. O mercado de trabalho, portanto, nunca foi “livre”: sempre
foi regulado pelo poder, por instituições e valores civilizatórios (ou
bárbaros).
No
Brasil, os senhores de escravos que pensaram a formação do mercado de trabalho
moderno planejaram estimular a imigração de europeus depois que uma nova Lei de
Terras impedisse que se transformassem em camponeses, ao exigir a compra das
terras públicas e não apenas sua ocupação. Isto forçaria os imigrantes, sem
terras, a se empregarem a baixíssimos salários, ao contrário dos Estados
Unidos.
Em
São Paulo, os fazendeiros organizaram um esquema de financiamento público da
formação do mercado de trabalho, atraindo imigrantes com o pagamento da viagem
transatlântica e do alojamento na Hospedaria dos Imigrantes. As condições de
trabalho e de vida eram tão semelhantes à escravidão e tão distantes da
civilização que a Itália proibiu em 1902 a emigração para o Brasil, o que a
Espanha fez em 1910.
Na
República Velha, as leis violentas contra greves e associações trabalhistas
eram talvez mais duras do que no tempo de Adam Smith. As forças públicas
estaduais eram especializadas em repressão social contra os trabalhadores que
rompessem “unilateralmente” o contrato de trabalho. Foi diante da grande greve
de 1917 que o governador de São Paulo, Washington Luís, disse que a “questão
social é um caso de polícia”.
A
questão social tornou-se um caso de política pública na década de 1930.
Liderada por Getúlio Vargas, a nova elite política queria modernizar o País, o
que significava superar aspectos de sua herança agrária, colonial e escravista
em nome de um projeto de industrialização com ampliação de direitos
trabalhistas.
Isto
não resultava apenas de novos valores civilizatórios importados (como o
positivismo, a doutrina social da Igreja católica, o socialismo e o fascismo),
mas da urgência que a questão social assumiu no mundo depois da Revolução Russa
e da Grande Depressão. Tratava-se de reprimir os comunistas com requintes de
crueldade (caso de Olga Benário), mas evitar a radicalização geral oferecendo
direitos trabalhistas modernos: jornada de oito horas e descanso semanal
(1932); previdência (1933); férias (1934); salário mínimo (1940).
O
empresariado pressionou Vargas contra os direitos, os fiscais e os juízes
trabalhistas, continuando a pressionar depois de sua queda, até 1964. O golpe
foi saudado pelo jornal O Estado de S. Paulo como o fim da Era Vargas, mas a
Consolidação das Leis do Trabalho não morreu. Além da repressão a sindicatos e
greves, os economistas da ditadura encontraram uma maneira mais “técnica” para
rebaixar salários: uma fórmula de correção de salários que não os protegia da
inflação, mesmo quando seu cálculo não era manipulado (como em 1973). Depois de
cair 35% entre 1964 e 1967, o salário mínimo despencou mais de 40% entre 1979 e
1984.
A
luta para civilizar as relações de trabalho no último país ocidental a abolir a
escravidão parecia ter tido uma vitória definitiva com a Constituição de 1988.
Mas seu sentido como “Constituição Cidadã” não é só reformado, é revertido em
2017, um século depois de que nossa “questão social” foi chamada de “caso de
polícia”.
Em
contexto de grande desemprego, a possiblidade de trocar o legislado pelo
negociado em contratos “livres” se assemelha à liberdade da raposa no
galinheiro. Não há espaço para discutir com detalhe a reforma trabalhista, mas
o sentido da mesma é o de degradar o trabalhador à condição de um “insumo”
barato, rebaixando os padrões de civilidade em nossa vida social.
Não
é exagero afirmar que o requinte de crueldade da reforma trabalhista do governo
Temer é o tratamento de grávidas e jovens mães: "Gestantes e quem está
amamentando poderão trabalhar em ambientes insalubres se isso for autorizado
por um atestado médico. No caso das grávidas, isso só não será possível se a
insalubridade for de grau máximo".
Surpreende
que, com popularidade de 5%, Michel Temer se ache legitimado para tamanha
transformação. Não surpreende que uma greve geral seja convocada para esta
sexta-feira 28. Surpreenderá se não for tratada como um caso de polícia e se,
depois dela, os congressistas passarem a dar ouvidos à opinião da população
que, supostamente, representam. O conflito social quanto à natureza mais
civilizada ou mais bárbara de nosso contrato social parece estar só no começo.
https://www.cartacapital.com.br/economia/da-escravidao-a-reforma-trabalhista
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