A
Carta de 1988 foi chamada de Constituição Cidadã e, de fato, expressou um
significativo avanço do reconhecimento dos direitos da população brasileira.
Embora os trabalhadores não tenham imposto nenhuma derrota acachapante à classe
dominante, a verdade é que a Constituição Cidadã não saiu exatamente como os
capitalistas e seus representantes queriam. Durante os anos finais de ditadura,
os trabalhadores estavam submetidos à desvalorização dos salários e ao alto
desemprego, mas, por outro lado, a classe dominante e o seu regime autoritário
foram obrigados a aceitar a criação, desde baixo, de um partido de
trabalhadores e a fundação da primeira central sindical brasileira.
Foi
nesse contexto de avanço relativo do movimento social que a noção de
"cidadania" tornou-se uma palavra de ordem, como se fosse um
"slogan" gritado por uma torcida de milhares de brasileiros. Para a
classe trabalhadora, aquele foi um singular momento da disputa política, pois a
escolha de palavras usadas para definir e divulgar a movimentação dos atores
políticos, em qualquer contexto, condiciona a dinâmica de derrotas e vitórias.
A partir dos anos derradeiros da ditadura militar, falar em "cidadania"
passou a ser uma exortação à luta pelos direitos típicos de um estado
democrático.
As
palavras que marcaram a luta política no Brasil contra o regime ditatorial na
década de oitenta ecoavam a valorização dos direitos e da democracia que se
formara na Europa, sobretudo depois do fim dos regimes autoritários da Espanha
e de Portugal. Não por acaso, boa parte dos livros e artigos mais importantes
sobre o tema "direitos humanos" foi publicada durante os anos 1980. E
no inicio da década de 1990, um dos mais influentes intelectuais do mundo,
Norberto Bobbio, publica um livro que resume a produção literária sobre esse
tema e, ao mesmo tempo, coloca o debate num patamar mais alto ao afirmar que
vivemos a ERA DOS DIREITOS.
E,
de fato, desde o início do período da redemocratização, pode-se observar a
ampliação das expectativas populares pela afirmação dos direitos civis e a
consolidação dos direitos políticos. Mas a cidadania é igualmente constituída
pelos direitos sociais, típicos do Século XX, os quais incluem o direito à
saúde, à educação e a outros direitos que devem ser obrigatoriamente oferecidos
pelo Estado aos seus cidadãos. Compreendendo também os direitos trabalhistas e
os direitos previdenciários, a cidadania democrática pode ser definida como o
direito de desfrutar do nível de civilização vigente em cada momento da vida
coletiva.
Não
se passaram nem duas décadas depois da assinatura da Constituição de 1988 e
nós, brasileiros, começamos a assistir o recrudecimento de ofensivas de todos
os setores das classes dominantes, sem exceção, contra a Constituição-Cidadã.
Diversos, inúmeros, economistas conservadores passaram a martelar a tecla do
"o Brasil não cabe na Constituição", como se a Carta de 1988 fosse um
tratado de direitos luxuosos à la Suécia. Insistem que o país não produz
riqueza social suficiente para se permitir gastar tanto em educação, saúde e em
outros serviços públicos básicos. Propõem "enxugar a máquina",
enquadrar os gastos do governo em uma contabilidade de pequeno comércio.
Além
de economistas reacionários, diversos comentaristas e colunistas da grande
imprensa se alistaram na guerra contra os direitos dos cidadãos brasileiros.
Basta mencionar aqui o caso do colunista que convoca todos a abandonarem essa
ideia de "ter direitos" porque os direitos de cada um não foram
submetidos a "deliberação democrática", o que configuraria
autoritarismo dos que reivindicam seus direitos.
Desde
o golpe de abril de 2016, a ofensiva passou para o interior do poder político.
Temos assistido o empenho de integrantes do legislativo e do executivo numa
luta sem tréguas pela violação da Constituição de 1988.
Foi
montada uma tropa de choque para violar a Constituição: o presidente ilegítimo
e seu ministério, a maioria do parlamento, as tevês, os jornais tradicionais e as
revistas semanais, as velhas rádios reacionárias, praticamente todos os
colunistas e comentadores desses meios de comunicação de massa, os economistas
defensores do mercado, os partidos políticos da direita pragmática e da direita
ideológica, além, é claro, dos oportunistas de um modo geral. Evidentemente,
cada ataque aos direitos da classe trabalhadora é envolto em mentiras sobre a
necessidade de "modernizar a CLT", "adequar o país ao
envelhecimento da população", "defender a aposentadoria das gerações futuras",
formando um roteiro de hipocrisias que é repetido várias vezes ao dia para mais
de cem milhões de brasileiros.
O
contexto político de nossos dias é surreal. Tendo se livrado do estigma do seu
apoio incondicional à ditadura militar de 1964, os membros da classe dominante
atuam despudorodamente para enviar os setores desorganizados e frágeis da
classe trabalhadora para a barbárie.
Os
inimigos da Constituição de 1988 querem recriar um Brasil como aquele que
existia na primeira metade do Século XIX, sem cidadania, sem direitos, apenas
privilégios que o poder político garantia para uma minoria na qual se apoiava.
Ou seja, em pleno Século XXI, pretendem instituir um Brasil pré-cívico.
Roseli Martins
Coelho
Docente da
Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e doutora em Filosofia
Política pela Universidade de São Paulo
http://www.brasil247.com/pt/colunistas/geral/291913/Constitui%C3%A7%C3%A3o-ou-barb%C3%A1rie.htm
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