O
termo “movimentos anti-sistêmicos” era comumente usado, há 25 anos [1], para
caracterizar forças de esquerda, em revolta contra o capitalismo. Hoje, ele não
perdeu relevância no Ocidente, mas seu sentido mudou. Os movimentos de revolta
que se multiplicaram na última década não se rebelam mais contra o capitalismo,
mas contra o neoliberalismo – os fluxos financeiros desregulados, os serviços
privatizados e a desigualdade social crescente, uma variante específica do
domínio do capital adotada na Europa e América desde aos anos 1980. A ordem
econômica e política resultante foi aceita indistintamente por governos de
centro-direita e centro-esquerda, de acordo com o princípio central do
pensamento único e do dito de Margareth Thatcher, segundo o qual “não há
alternativa”. Dois tipos de movimento agora mobilizam-se contra este sistema; e
a ordem estabelecida estigmatiza-os – sejam de direita ou de esquerda – como a
“ameaça populista”.
Não
por acaso, estes movimentos emergiram antes na Europa que nos Estados Unidos.
Sessenta anos após o Tratado de Roma, a razão é clara. O mercado comum europeu
de 1957, um desdobramento da comunidade de carvão e aço do Plano Schuman –
concebido tanto para prevenir o retrocesso a um século de hostilidades
franco-alemãs quanto para consolidar o crescimento econômico pós-guerra na
Europa Ocidental – foi produto de um período de pleno emprego e aumento dos
rendimentos populares, a consolidação da democracia representativa e dos
sistemas de Bem-estar Social. Seus arranjos comerciais pesavam muito pouco na
soberania dos Estados-Nações que o compunham – e à época, foram fortalecidos,
não enfraquecidos. Os orçamentos e as taxas de câmbio eram determinadas
internamente, por parlamentos que prestavam contas a seu eleitorado nacional, e
nos quais políticas contrastantes eram debatidas com vigor. Tentativas da
Comissão de Bruxelas para tornar-se mais poderosa foram notoriamente rechaçadas
em Paris. Não apenas a França de Charles de Gaulle mas também a Alemanha
Ocidental de Konrad Adenauer, ainda que de forma mais discreta, perseguia
políticas externas independente dos Estados Unidos e capazes de desafiá-los.
O
fim dos trinta anos gloriosos impôs uma grande mudança a esta construção. A
partir de meados dos 1970, o mundo capitalista avançado mergulhou num longo
declínio, analisado pelo historiador norte-americano Robert Brenner [2]: taxas
de crescimento mais baixas e aumentos de produtividade menores a cada década,
menos emprego e maior desigualdade, pontuados por recessões agudas. A partir dos
1980, as orientações políticas foram revertidas, num processo que começou no
Reino Unido e nos Estados Unidos mas espalhou-se rapidamente para a Europa. O
sistemas de Bem-estar foram cortados, as indústrias e serviços públicos foram
privatizados e os mercados financeiros, desregulamentados. O neoliberalismo
havia chegado. Na Europa, ele adquiriu com o tempo uma forma institucional
particularmente rígida: o número de Estados-membros do que se tornou a União
Europeia (UE) multiplicou-se mais de quatro vezes, incorporando uma vasta zona
de baixos salários a leste.
Austeridade
draconiana
Da
união monetária (1990) ao Pacto de Estabilidade (1997) e à Lei do Mercado Único
(2011), os poderes dos parlamentos nacionais foram esvaziados por uma estrutura
supranacional de autoridade burocrática blindada da vontade popular, exatamente
como o economista ultraliberal Friedrich Hayek havia profetizado. Com esta
maquinaria instalada, a “austeridade” draconiana pode ser imposta sobre
eleitorados desprotegidos, sob a direção conjunta da Comissão Europeia e de uma
Alemanha reunificada – agora o Estado mais poderoso da União, onde pensadores
influentes anunciaram de modo cândido sua vocação para hegemon continental.
Externamente, no mesmo período, a União Europeia e seus membros deixaram de
jogar qualquer papel relevante no mundo, tornando-se a guarda avançada de novas
políticas de guerra fria contra a Rússia – articuladas pelos Estados Unidos e
pagas pela Europa.
Por
isso, não é surpresa que a casta cada vez mais oligárquica da União Europeia,
desafiando a vontade popular em sucessivos referendos e forçando diktats
orçamentários nas leis constitucionais, tenha gerado tantos movimentos de
protesto contra si. Qual o panorama destas forças?
No
coração da UE pré-expansão, da era da guerra fria (a topografia da Europa
Oriental é tão diferente que pode ser posta à parte, para os propósitos deste
texto), movimentos de direita dominam a oposição ao sistema na França (Frente
Nacional), Holanda (Partido da Liberdade, PVV), Áustria (Partido da Liberdade
da Áustria), Suécia (Democratas Suecos), Dinamarca (Partido do Povo
Dinamarquês), Finlândia (Finlandeses Verdadeiros), Alemanha (Alternativa para a
Alemanha, AfD) e Grã-Bretanha (Partido pela Independência do Reino Unido,
UKIP).
Na
Espanha, Grécia e Irlanda, movimentos de esquerda predominaram: Podemos, Syriza
e Sinn Fein. Em caso único, a Itália tem tanto um forte movimento
anti-sistêmico de direita (a Lega) quanto um ainda maior, que atravessa a
fronteira esquerda/direita: o Movimento Cinco Estrelas (M5S). Sua retórica
extra-parlamentar sobre impostos e imigração coloca-o na direita, mas ele está
à esquerda por seu histórico parlamentar de oposição consistente às medidas
neoliberais do governo Matteo Renzi (particularmente sobre Educação e mercado
de Trabalho) e seu papel central ao derrotar os esforços de Renzi para enfraquecer
a Constituição democrática da Itália [3]. A todos estes pode ser acrescentado o
Momentum, movimento que emergiu na Grã-Bretanha por trás da inesperada eleição
de Jeremy Corbyn para a liderança do Partido Trabalhista. Todos os movimentos
de direita, exceto a AfD, precedem o crash de 2008; alguns têm histórias que
remontam aos 1970 ou antes. O Syriza decolou, e o M5S, Podemos e Momentum
nasceram como resultados diretos da crise financeira global.
O
fato central é o peso maior do conjunto de movimentos de direita em relação aos
de esquerda, tanto em número de países em que são maios fortes quanto em força
eleitoral. Ambos são reações à estrutura do sistema neoliberal, que tem sua
expressão mais aguda e concentrada na EU atual, com sua ordem fundada na
redução e privatização de serviços públicos, no abandono do controle
democrático e representação; e na desregulação dos fatores de produção. As três
tendências estão presentes em plano nacional na Europa e em outras partes, mas
são mais intensas no espaço europeu – como atestam a tortura da Grécia, o
atropelamento dos referendos e o tráfego humano. Na arena política, eles
suscitam temas de preocupação popular, convocando protestos contra o sistema
relacionados à “austeridade”, soberania e imigração. Os movimentos
anti-sistêmicos diferenciam-se pelo peso que dão a cada tema – ou com a cor da
paleta neoliberal que mais hostilizam.
Os
movimentos de direita predominam sobre os de esquerda porque desde o início
apoderaram-se do tema da imigração, estimulando reações xenofóbicas e racistas
para obter apoio amplo entre os setores mais vulneráveis da população. Com
exceção dos movimentos na Holanda e Alemanha, que acreditam em liberalismo
econômico, esta reação está (na França, Dinamarca, Suécia e Finlândia) tipicamente
ligada à defesa – e não à denúncia – do Estado de Bem-estar social. Afirma-se
que a chegada de imigrantes sabota-o. Mas seria errado atribuir a vantagem da
direita a esta carta. Em casos importantes – a Frente Nacional (FN) francesa é
o mais significativo –, ela apoia-se também em outros temas.
A
união monetária é o exemplo mais óbvio. A moeda e o banco central únicos,
concebidos no acordo de Maastricht, produziram, num único sistema, a imposição
da “austeridade” e a negação da soberania popular. Os movimentos de esquerda
atacam-no tão veementemente como os de direita, ou até mais. Mas as soluções
que propõem são menos radicais. Na direita, a FN e a Lega têm remédios claros
para a moeda única e a imigração: sair do euro e proibir a entrada de estrangeiros.
Na esquerda, com exceções isoladas, há respostas ambíguas. No máximo,
propõem-se ajustes técnicos à moeda única, complicados demais para ter
audiência popular; e alusões vagas, envergonhadas, a quotas para imigrantes.
Nenhuma destas propostas é tão facilmente inteligível para os eleitores como as
proposições diretas da direita.
O desafio da
migração crescente
A
imigração e a união monetária criam, por razões históricas, dificuldades
especiais para a esquerda. O Tratado de Roma foi estabelecido sob a premissa do
livre movimento de capital, mercadorias e trabalho no interior do Mercado Comum
Europeu. Enquanto a Comunidade Europeia esteve restrita aos países da Europa
Ocidental, os fatores de produção para os quais a mobilidade importava eram o
capital e as mercadorias: a migração entre fronteiras dentro da comunidade era
bem modesta. Mas no final dos 1960, o trabalho imigrante das antigas colônias
africanas, asiáticas e caribenhas, e das regiões semi-coloniais do antigo
Império Otomano, já era numericamente significativo. A expansão da UE para a
Europa Oriental ampliou de modo agudo a migração intra-União. Finalmente,
aventuras neo-imperiais nas antigas colônias do Mediterrâneo – a blitz militar
na Líbia e o incentivo por procuração à guerra civil na Síria – projetaram
grandes ondas de refugiados na Europa, além de terror retaliatório por
militantes de uma região onde o Ocidente permanece instalado como senhor, com
suas bases, bombardeiros e forças especiais.
Tudo
isso alimentou a xenofobia. Os movimentos anti-sistêmicos de direita
alimentaram-se dela e os movimentos de esquerda combateram-na, leais à causa do
internacionalismo humanitário. As mesmas ligações históricas levaram a maior
parte da esquerda a rejeitar qualquer pensamento de fim da união moetária,
vista como uma regressão a um nacionalismo responsável pelas catástrofes
europeias do passado. O ideal de União Europeia ainda é, para estas forças, um
valor central. Mas a Europa concreta, de integração neoliberal, é mais coerente
que qualquer das alternativas até agora propostas. “Austeridade”, oligarquia e
mobilidade de fatores de produção formam um sistema interconectado. A
mobilidade dos fatores não pode ser separada da oligarquia. Historicamente,
nenhum eleitorado europeu foi consultado jamais sobre a chegada em grande
escala de trabalho estrangeiro; ela ocorreu pela porta dos fundos. A negação da
democracia, que incorporou-se à estrutura da UE, excluiu de início qualquer voz
na composição de suas populações. A rejeição desta Europa por movimentos de
direita é politicamente mais consistente que a rejeição pela esquerda, outra
razão para a vantagem da direita.
Níveis
inéditos de descontentamento dos eleitores
A
chegada do M5S, Syriza, Podemos e AfD marcou um salto no descontentamento
popular na Europa. As pesquisas mostram agora rejeição nunca antes vista à UE.
Mas, sejam de direita ou esquerda, o peso eleitoral dos movimentos
anti-sistêmicos permanece limitado. Nas últimas eleições europeias, os três
melhores resultados da direita – UKIP, FN e o Partido do Povo da Dinamarca –
tiveram em torno de 25% do voto nacional. Em eleições nacionais, o número médio
na Europa Ocidental, para todas estas forças de esquerda e direita, é cerca de
15%. Esta percentagem do eleitorado representa pouco perigo ao sistema; 25%
podem representar uma dor de cabeça, mas o “perigo populista” que a mídia
alardeia permanece muito modesto ainda. Os únicos casos em que movimentos
anti-sistêmicos chegaram ao poder, ou pareceram próximos de fazê-lo, são
aqueles onde uma desproporção proposital das cadeiras do Parlamento, construída
como um prêmio para fortalecer o establishment, saiu pela culatra ou ameaça
fazê-lo, como na Grécia e Itália.
Na
verdade, há uma larga distância entre o grande desilusão popular com a UE
neoliberal – no verão passado, maiorias expressaram, na França e Espanha, sua
aversão a ela, e mesmo na Alemanha apenas metade dos entrevistados têm uma
opinião positiva – e a extensão do apoio a forças que se declaram contra ela.
Indignação ou repulsa diante da UE tornara-se comuns, mas há algum tempo o
determinante fundamental dos padrões de voto na Europa tem sido, e é, o medo. O
status quo sócio-econômico é amplamente detestado. Mas é regularmente
ratificado nas pesquisas, com a reeleição dos partidos responsáveis por ele,
devido ao medo de que sacudir a ordem e alarmar os mercados torne a miséria
pior. A moeda única não acelerou o crescimento na Europa, e infligiu aridez
aguda nos países do sul mais afetados. Mas a perspectiva de uma saída
aterroriza mesmo aqueles que sabem o quanto já sofreram. O medo derrota a
raiva. Por isso, a aquiescência do eleitorado grego diante da capitulação do
Syriza a Bruxelas, as decepções do Podemos na Espalha e as trapalhadas do
Partido de Esquerda na França. O sentido geral é o mesmo, em todos os lugares.
O sistema é ruim. Confrontá-lo é arriscar-se à vingança.
O
que explica, então, o Brexit? A imigração em massa é outro medo que atravessa a
UE, e foi agitada no Reino Unido pela campanha pela Retirada, em que que Nigel
Farage foi um orador e organizador notável, junto a conservadores destacados.
Mas a xenofobia sozinha não é suficiente para superar o medo do colapso
econômico. Na Inglaterra, e em outros países, ela cresceu à medida em que um
governo depois do outro mentiu sobre a escala da imigração. Mas se o referendo
sobre a UE tivesse sido apenas uma disputa entre estes dois medos, como o
establishment político desejava, a opção por Permanecer teria certamente
vencido por uma boa margem, como ocorreu em 2014, no referendo sobre a independência
da Escócia.
Houve
outros fatores. Depois de Maastricht, a classe política britânica rejeitou a
camisa de força do euro, apenas para buscar um neoliberalismo local mais
drástico que qualquer outro no continente. Primeiro, a arrogância
financeirizada do Novo Trabalhismo, que afundou a Grã-Bretanha numa crise
bancária antes de todos os outros países europeus. Em seguida, um governo
Conservador-Liberal de “austeridade” mais drástica que qualquer politica gerada
por constrangimento europeu. Do ponto de vista econômico, os resultados desta
combinação são únicos. Nenhum outro país europeu foi tão polarizado
regionalmente, entre uma metrópole na bolha, de alta renda (Londres e Sudeste)
e um Norte e Nordeste empobrecidos, desindustrializados. Onde os eleitores
sentiram que tinham pouco a perder se votassem pela Retirada (uma perspectiva
mais abstrata do que deixar o euro), não importou o que poderia acontecer à
City e aos invetimentos estrangeiros. Nesse caso, o Medo importou menos que o
Desespero.
Também
do ponto de vista político, nenhum outro país tem um sistema eleitoral tão
escancaradamente blindado. Em 2014, sob um regime de representação
proporcional, o UKIP tornou-se o maior partido inglês no Parlamento Europeu.
Mas um ano depois, com 13% dos votos, ele obteve um único assento em Londres,
enquanto o Partido Nacional Escocês, com menos de 5%, conquistou 55 cadeiras.
Sob os regimes intercambiáveis de Trabalhistas e Conservadores, produzidos por
este sistema, os eleitores da base da pirâmide de renda abandonaram as eleições.
Mas ao adquirem subitamente, por uma vez, uma chance real de decidiu um
referendo nacional, eles voltaram para tomar a decisão que desolou Tony Blair,
Gordon Brown e David Cameron.
Por
fim, e de modo decisivo, há a diferença histórica que separa a Grã-Bretanha do
continente. Além de ter sido, por séculos, um império que apequenou
culturalmente todos os rivais europeus, o país não sofreu qualquer derrota,
invasão ou ocupação nas duas guerras mundiais – ao contrário da França,
Alemanha, Itália e a maior parte do continente. Por isso, a expropriação dos
poderes locais por uma burocracia na Bélgica causou mais atrito que em outros
lugares. Por que um Estado que derrotou duas vezes o poder de Berlim deveria se
curvar à intromissão insolente de Bruxelas ou de Luxemburgo. Temas relacionados
a identidade podem desencadear reações mais diretas que no resto da UE. Por
isso, a fórmula normal – o medo de vingança econômica supera o medo da
imigração desconhecida – não funcionou, curvado por uma combinação de desespero
econômico e auto-estima nacional.
O salto no
escuro dos EUA
Estas
foram também as condições em que, nos EUA, um candidato presidencial
republicano de história e temperamento sem precedentes – detestável para a
opinião tradicional dos dois partidos, sem nenhum esforço para conformar-se aos
códigos aceitos de conduta civil ou política e mal visto por muitos de seus
eleitores – pode atrair um número suficiente de trabalhadores industriais
desprezados e ganhar a eleição. Como na Grã-Bretanha, o desespero superou a
apreensão, nas regiões proletárias desindustrializadas. Também lá, de forma
muito mais crua e aberta, num país com uma história mais profunda de racismo,
os imigrantes foram denunciados e exigiram-se barreiras físicas e burocráticas.
Acima de tudo, o império não era uma memória distante do passado, mas um
atributo vívido do presente e uma exigência natural do futuro. No entanto,
tinha sido posto de lado pelos poderosos em nome de uma globalização que
significou ruína das pessoas comuns e humilhação de seu país. O slogan de Trump
foi Fazer os EUA grandes de novo – prósperos e dispostos a descartar os
fetiches do livre movimento de bens e trabalho, vitoriosos em ignorar as
barreiras e piedades do multilateralismo. Ele não errou ao proclamar que seu
triunfo foi um Brexit em grande escala. Foi uma revolta muito mais espetacular,
porque não se restringiu a um único item – simbólico, para a maioria – e não
contava com nenhum respeito do establishment ou bênção editorial.
A
vitória de Trump deixou a classe política europeia – o centro-direita e o
centro-esquerda unidos – em desencanto ultrajado. Romper as convenções
estabelecidas sobre migração é ruim demais. A UE pode ter tipo poucos
escrúpulos para encurralar os refugiados na Turquia de Recep Tayyip Erdogan, com
suas dezenas de milhares de presos políticos, tortura policial e suspensão do
império da lei; ou para fazer vistas grossas às barricadas de arame farpado na
fronteira norte da Grécia, para mantê-los bloqueados nas ilhas do Mar Egeu. Mas
a UE, em respeito à decência diplomática, nunca glorificou abertamente suas
exclusões. A desinibição de Trump nesta matéria não afeta diretamente a União.
O que afeta, e causa preocupações muito mais sérias, é sua rejeição à ideologia
do livre movimento dos fatores de produção e, ainda mais, seu desdém sem
cerimônia pela OTAN e seus comentários sobre uma atitude menos beligerante
diante da Rússia. Se alguma destas atitudes é mais de um gesto a ser em breve
esquecido, como muitas de suas promessas domésticas, ainda falta saber. Mas sua
eleição cristalizou uma diferença significativa entre diversos movimentos
anti-sistêmicos da direita ou de um centro ambíguo e partidos da esquerda
estabelecida – rosados ou verdes. Na França e Itália, movimentos de direita
opuseram-se de modo consistente a políticas de nova guerra fria e a aventuras
militares aplaudidas por partidos da esquerda – incluindo a blitz sobre a Líbia
e as sanções contra a Rússia.
O
referendo britânico e a eleição norte-americana foram convulsões
anti-sistêmicas da direita, porém acompanhadas por levantes anti-sistêmicos de
esquerda (o movimento de Bernie Sanders nos EUA e o fenômeno Corbyn, no Reino
Unido) menores em escala, embora mais surpreendentes. Ainda não se sabe quais
serão as consequências dos dois fenômenos, embora certamente mais limitadas que
as previsões atuais. A ordem estabelecida não foi nem de longe derrotada nos
dois países e, como demonstrou a Grécia, ela é capaz de absorver e neutralizar
revoltas de qualquer sentido, com rapidez impressionante. Entre os anticorpos
que ela já gerou, estão simulacros yuppies das rupturas populistas (Albert
Rivera na Espanha, Emmanuel Macron na França), que investem contra os impasses
e corrupções do presente e prometem uma política mais limpa e dinâmica no
futuro, além dos partidos decadentes.
Para
os movimentos anti-sistêmicos de esquerda, a lição dos anos recentes é clara.
Se não desejam ser superados pelos movimentos de direita, não podem ser menos
radicais em atacar o sistema – e precisam ser mais coerentes em sua oposição a
ele. Isso significa, na Europa, admitir a possibilidade de que a UE pode ter se
tornado tão atrelada à construção neoliberal que reformá-la já não é seriamente
concebível. Ela precisaria ser desfeita, antes que algo melhor possa ser
construído – ou por meio de rupturas em face da UE real, ou reconstruindo a
Europa em outras bases, jogando Maastricht às chamas. Estas possibilidades
provavelmente só serão reais em caso de uma crise econômica nova, e mais
profunda.
Notas
1
- Por Immanuel Wallerstein, Giovanni Arrighi e outros
2
- Robert Brenner, The Economics of Global Turbulence: the Advanced Capitalist
Economies from Long Boom to Long Downturn 1945-2005, Verso, Nova York, 2006.
3
- Raffaele Laudani, ‘Renzi’s fall and Di Battista’s rise’, Le Monde
diplomatique, edição em inglês, Janeiro de 2017
* Publicado
originalmente no jornal francês Le Monde Diplomatique. Tradução de Antonio
Martins.
http://outraspalavras.net/capa/neoliberalismo-ordem-contestada/
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