Há
uma inversão perversa na formulação do Ministro Gilmar Mendes, que abriu a
estrada para que o Caixa 2, recursos extra-numerários, não-contabilizados,
ganhassem o direito a uma anistia amiga.
Até
que ponto o Ministro é cidadão? Ele tem direito a time de futebol, tem direito
a amar perdidamente, tem direito a andar pela praia, até o Leblon. Tem direito
a embebedar-se naqueles dias em que a vida deixa de valer a pena, tem direito a
cantar no banheiro, tem direito a gritar um palavrão, tem direito a um
churrasco com amigos, tem direito a sentar-se no cinema ou no teatro sozinho e
não ser incomodado.
Tem
direito a tocar ou ouvir um violão. Pode dançar na gafieira, pode cozinhar,
pode escrever poemas, pode até mentir sobre o que não fez e diz ter feito, pode
contar vantagens, pode ostentar o anel, a amante ou o carrão. Pode pensar que
ninguém é melhor do ele, pode sentir que ninguém é pior do que ele. Pode ter
manias, TOC, pode jamais descer num quinto andar, por exemplo, ou, nunca, por nada
nesse planeta, deixar um quadro inclinado na parede. Pode sentir saudades.
Pode
voltar sozinho, para onde foi acompanhado. Pode perder no jogo e no amor, pode
ganhar no jogo ou vice versa. Pode ter um cão ou gato, que o receba, como nos
recebem esses nossos companheiros silenciosos. Pode ver a meia-noite, com um
copo de whisky nas mãos, ouvindo a música que apenas existe em seu mundo mais
remoto. Pode querer saber que raios virou seu melhor amigo de infância, aquele
um ao lado de quem sonhava com o mundo adulto, idealizado e feliz.
Na
função que enverga, de integrar uma corte que tem por finalidade dizer a última
palavra, o Supremo Tribunal. Me lembro do primeiro Supremo que vi, era criança
e minha mãe colocou à mesa do domingo o Supremo de Frango, para comemorar os
anos de meu irmão. Um tio, corintiano até a alma e além da alma, me dizia que
Rivelino era um craque Supremo. Cresci e Supremos eram os seios de uma vizinha,
que jamais me notou, bem mais velha, naquela fase da vida em que dois anos
seriam capazes de separar gerações.
Só
grande já, soube que havia um Tribunal Supremo; depois dele, nada, depois dele,
o vale sombrio da força bruta. Naqueles dias de ditadura militar, Ministros do
Supremo, o mesmo nosso Supremo, davam exemplos históricos do que poderia ser
independência e dignidade. Pouco se falava de Supremo, quase ninguém sabia da
existência de um Supremo tão Supremo que nada havia que o superasse.
Uma
espécie de grande pai, que desse a última palavra sobre tudo, qualquer coisa,
um professor ameaçava: podem até dizer que o quadrado é redondo. Tão supremo
que revogava as linhas geométricas. Pensava no Supremo frango de minha mãe, com
creme de milho.
O
Supremo que conheci era aterrador porque era silencioso, só rompendo seu
mutismo em estranhos debates, que, por serem supremos, jamais poderiam ser
debates. Os Supremos juízes debatendo entre si era uma visão que eu não
alcançava, muito no Olimpo para um recém-formado, no interior do estado. Uma
vez, uma única vez, um deles foi a uma Semana Jurídica, que recomeçava
timidamente, no fim da ditadura. Descobri que existiam além das abstrações
jurídicas.
A
voz suprema calava as outras vozes, impunha ordem ao ambiente e o quadrado e o
seu redondo que se virassem nas novas identidades trocadas. Todavia, era sempre
a última palavra.
Parece
um bolero e é mesmo um bolero jurídico: a Última Palavra, capaz de calar os
Doutos, capaz de silenciar os hermeneutas, capaz de vergar a Constituição ao
que dela os Supremos Juízes extraíram. Depois do vozerio, da algazarra das
crianças, do falatório dos bacharéis, els impõem a última palavra.
Por
isso, é assustador quando um deles, desgarrado, ao invés de solucionar o
impasse, cria-o. Gilmar Mendes abriu a cena e criou o impasse, trouxe a
discórdia, plantou a desavença. Na polêmica que criou acerca dessa praga
eleitoreira, chamada Caixa 2, o Ministro deixou de sê-lo, indo além do que as
fronteiras de seu jardim permitiriam.
Ele
avançou o sinal e não deixou sua opinião, que somente existiria em sua cadeira
suprema; fora dela, o que ele exerceu foi abuso de poder, porque não se
adiantou, mas abriu o caminho para que se operasse a mais atroz maldição
jurídica: o seletivismo, o que não se permite a alguns, será permitido a
outros, que estão mais próximos do banquete em que se devora a leitoa gorda do
poder.
Para
alguns, os deserdados, os despejados, os expulsos, o caixa 2 é crime, gerou
prisões, gerou uma ação penal midiática, a primeira; gerou o primeiro
super-juiz, um que mandou exatamente Gilmar Mendes ouvir as ruas, porque já
conseguia ouvir os sons do processo, os gritos de dor dos advogados e daqueles
que viam claramente que o som das ruas era, em verdade, um exercício de ventriloquia
de massa.
Todos
saímos de nossos anonimatos, indo aos braços da redes sociais, que parecem
teriam suprimido as solidões humanas, afinal, sempre haverá alguém disposto a
nos ouvir. Os juízes, supremos ou não, foram a elas e as tornaram destinatárias
de suas opiniões, dadas fora de qualquer âmbito de discussão processual.
A
antecipação da opinião nas redes sociais cria um frissom, um suspense. Será que
ele vai decidir conforme prometeu? Será que não? Os advogados, sabendo a
opinião do juiz, como farão? O réu, vendo anunciada sua execração
antecipadamente, irá preparar uma roupa ou frase para a ocasião? Todos eles
sonham com William Bonner pronunciando vagarosamente seus nomes, naquela
silabação moralizadora, a voz barítona, todos na sala.
O
Supremo Juiz disse o que seus admiradores esperavam? Os jornais irão estampar a
manchete esperada? Os lobos terão sua cota de carne humana fresca, como sempre
tiveram? Para apimentar, uma notícia sobre alguma conjugalidade traída virá de
brinde?
Quando
ele se adianta, que abalos provoca? Quando aquele que dá a última palavra manda
os escrúpulos às favas, como tanto já se mandou nesse imenso e continental
hospício, profere a primeira, o que ocorrerá? Que teoria da conspiração se
alimentará? Foi um recado para alguém, tão importante que fez o Ministro dar a
primeira palavra? Tão bacana que mereceu ser avisado antes. Alguém dormiu
tranquilo, outros vararam a noite, incrédulos diante da punição que sofreram.
Publicado no
Justificando.
http://www.brasil247.com/pt/247/brasilia247/285657
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