O
processo de desmonte do Estado brasileiro e de privatização de suas atividades
comporta várias possibilidades de periodização e de tipificação. Na verdade a
estratégia privatizante tem sua origem na consolidação da hegemonia neoliberal,
alicerçada nos preceitos do Consenso de Washington. Assim, o discurso em defesa
da desregulamentação generalizada da economia e a favor de um Estado mínimo é
muito mais abrangente do que a simples venda de empresas de propriedade do
governo.
O
primeiro grande ciclo de transferência dos ativos geridos pela administração
pública federal para o capital privado ocorreu ainda na época da ditadura,
quando o governo do General Figueiredo (1979-1984) criou a Secretaria Especial
de Controle das Empresas Estatais (SEST) e a União começou a se desfazer de
algumas de suas empresas. Durante os governos Sarney, Collor e Itamar
(1985-1993) também houve algumas estatais que foram vendidas. Mas o ciclo mais
importante ocorreu sob os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (FHC),
quando os setores estratégicos mais relevantes saíram das mãos do Estado e
foram generosamente transferidos para o capital financeiro nacional e
internacional.
Sob
o invólucro mais amplo do termo privatização repousa um conjunto amplo e
diverso de formas de atribuição ao setor privado de instituições e funções
originalmente de competência do setor público. A primeira e mais evidente
parcela desse movimento refere-se à venda de empresas estatais ao capital
privado. Nesse caso enquadram-se tanto as chamadas empresas de economia mista
(participação majoritária do setor público), sejam as empresas públicas (onde a
totalidade do capital pertence ao Estado).
Privatização para todos
os gostos.
Um
segundo conjunto de iniciativas privatizantes refere-se aos avanços nos
processos de licitação e concessão de atividades e serviços de natureza pública
nos mais variados ramos do extenso setor da infraestrutura. Nesse caso, não se
trata necessariamente de transferência de ativos públicos, mas da oferta da
exploração ao capital de serviços públicos por prazos que podem chegar a 3
décadas. São atividades relacionadas a portos, aeroportos, ferrovias,
hidrovias, rodovias, geração e transmissão de energia, telecomunicações,
saneamento básico, entre tantas outras.
Além
disso, existe outro tipo de serviço público que também passou a ser objeto de
mercantilização. Refiro-me aqui às prestações mais vinculadas à natureza social
das atividades, tais como saúde, educação, previdência, assistência e
segurança. Os dois primeiros casos foram os que apresentaram maior crescimento
até o presente momento. Assistimos à implementação de uma verdadeira estratégia
de sucateamento e de estrangulamento de áreas essenciais de serviços públicos
da saúde e da educação.
Assim
foi feito com o lento processo de assassinato do SUS, modelo considerado como
referência para os países que buscam uma alternativa de construção de um
sistema de saúde pública de qualidade. O
movimento combina o favorecimento da mercantilização da saúde, com o estímulo à
entrada do capital privado na área. Isso se viabiliza por meio dos planos de saúde
e das empresas privadas detentoras de hospitais, laboratórios, equipamentos e
similares.
Os
setores de classe média foram estimulados ideológica e economicamente a
migrarem para a saúde mercantilizada. Esse movimento articula a campanha de
descrédito do setor público e a generosidade da dedução de imposto de renda dos
gastos realizados com a saúde. Por outro lado, ganha força na sociedade a
concepção de que o essencial seriam medicamentos, exames e procedimentos, com o
consequente afastamento da medicina preventiva e de acompanhamento nas etapas
anteriores ao surgimento da própria doença.
Processo
semelhante acontece na área da educação. Desde a década de 1970, o sistema
privado foi sendo estimulado no ensino fundamental e médio, ao tempo em que a
rede pública sofreu um sucateamento progressivo, por meio de corte de verbas e
redução salarial dos professores. Em seguida, movimento muito parecido ocorreu
no ensino universitário. A ampliação do acesso deu-se fundamentalmente por meio
do crescimento das facilidades e bondades para o capital privado. No entanto,
ao contrário do que ocorre com o ensino de base, ainda se mantém um grau de
excelência nas instituições universitárias federais e estaduais. Mais uma vez a
classe média formadora de opinião foi seduzida por meio das facilidades de
isenção das despesas. Com o apoio nada isento dos grandes meios de comunicação,
consolidou-se a falsa ideia de que ensino público é de sinônimo de educação de
péssima qualidade.
Agora,
a bola da vez é a previdência social. Na verdade, esse setor é o que oferece
maiores oportunidades de negócios para o capital financeiro. Desde sempre houve
reiteradas tentativas de avançar sobre esse potencial de acumulação bilionária
de recursos. Mas o Regime Geral de Previdência Social (RGPS) sempre foi mantido
como modelo estratégico e de natureza pública. O financismo crescia pelas
bordas, com o estímulo à chamada “previdência complementar” - os fundos de
pensão (de empresas estatais e privadas) e os fundos de previdência aberta de
adesão individual. Como existe um teto máximo para os benefícios da previdência
social, as pessoas que pretendem se aposentar com renda maior buscam esse tipo
de complementação.
Mas
o objetivo principal da turma das finanças sempre foi o de abocanhar o espaço
ainda preservado dos benefícios administrados pelo INSS. Em 2016 o volume de
recursos gerenciados pelo Instituto foi R$ 516 bilhões, o equivalente a 8% do
PIB. Vejam bem que não é pouca coisa! Uma poderosa fonte luminosa de
lucratividade segura a ser transferida para o capital especulativo. Afinal
trata-se de um cadastro superior a 12 milhões de beneficiários, com um
potencial extraordinário de crescimento no médio e no longo prazo.
Bombardeio e implosão.
Assim,
a estratégia atual combina os elementos criminosos de bombardeio e implosão. O
nosso sistema de previdência social tem sofrido, de forma sistemática, ataques
que comprometem a sua própria sobrevivência. Assim foi nas reformas
constitucionais feitas sob FHC em 1998 e depois sob Lula em 2003. As sucessivas
alterações nas regras do RGPS acentuam a perda de credibilidade do mesmo, uma
vez que foram todas alterações introduzidas com o foco na redução de direitos
dos participantes - sejam eles aposentados ou trabalhadores ainda ativa.
O
bombardeio orquestrado com total apoio dos meios de comunicação trata
exclusivamente de reforçar o suposto “rombo previdenciário” de cada conjuntura.
Com isso, generaliza-se a impressão da “pós verdade” relativa a uma tão alardeada,
quanto falsa, inviabilidade estrutural do atual sistema no longo prazo. A
novidade veio com a incorporação explícita de tal narrativa por parte dos
integrantes do governo. Logo após a consumação do golpeachment, veio a nomeação
do banqueiro Henrique Meirelles para o comando da equipe econômica. Uma de suas
primeiras medidas foi solicitar a Temer que promovesse a transferência da
Secretaria da Previdência Social para o Ministério da Fazenda. Bingo!
A
partir de então entra em campo a equipe encarregada pela implosão. Assim,
diariamente vemos membros do governo com a missão de promover a ampliação e o
aprofundamento do quadro do catastrofismo a respeito do futuro próximo da
previdência social. A intenção é radicalizar no discurso do medo e da hecatombe,
para conseguir apoio entre os parlamentares para a aprovação da reforma e
alterar o clima geral de oposição da população às mudanças.
No
entanto, o próprio Secretário de Previdência Social foi obrigado a reconhecer
que a reforma não promoverá nenhuma redução no suposto desequilíbrio do RGPS em
2017 ou 2018. Muito pelo contrário! Assim como ocorreu em 1998 e 2003, o que
estamos assistindo nos postos do INSS é uma corrida pela antecipação das
aposentadorias. Procedimento, aliás, bastante compreensível. As pessoas estão
com receio de perder direitos e tentam obter os benefícios antes do que estavam
planejando até então.
Previdência não é
problema. É solução!
Um
dos efeitos dessa corrida é o aumento do volume de despesas previdenciárias em
2017 e 2018. E aí o círculo do discurso catastrofista se fecha. A recessão e o
desemprego continuam e as receitas do regime permanecem em queda. “Não falei
que o sistema era inviável?”, dirão alguns dos arautos do desastre anunciado.
Mas o ponto central nesse debate é que o aumento das despesas com previdência
não é um problema. Pelo contrário, a ampliação do número de beneficiários do
INSS é um sinal positivo de que a sociedade brasileira está mais solidária e
inclusiva.
Se
é verdade que estamos passando por mudanças importantes em nossa composição
demográfica e no mercado de trabalho, o fato é que as consequências de tais
transformações serão sentidas no médio e longo prazos. Devemos discutir e
pensar alternativas de forma coletiva e solidária, envolvendo o conjunto dos
atores sociais. Isso significa contar com um amplo e demorado processo de
concertação social e nunca com esse afogadilho do “prá anteontem”
A
resposta que o movimento popular e democrático deve oferecer reside na busca de
novas fontes de receita para oferecer sustentabilidade a esse modelo. Já passou
da hora para que as camadas do topo da pirâmide passem a dar sua parcela de
contribuição para o nosso sistema tributário. As alternativas são muitas: i)
fim da desoneração da contribuição patronal para a previdência; ii) fim das
isenções sobre lucros e dividendos; iii) instituição do já previsto Imposto
sobre Grandes Fortunas; cobrança efetiva da dívida previdenciária das grandes
empresas; iv) retomada da estratégia de crescimento da economia, com a aumento
do nível de emprego e da massa salarial; entre tantas outras
http://jornalggn.com.br/noticia/previdencia-bombardeio-e-implosao-por-paulo-kliass
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