terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

PRESUNÇÃO DE CULPA APÓS O SEGUNDO GRAU É INCONSTITUCIONAL. Por Thiago Aguiar de Pádua

Encerrado o ano judiciário é sugestiva para a realização de um balanço sobre os acertos e desacertos das decisões da Suprema Corte brasileira, algo que ocorre com muita frequência nos Estados Unidos, quando a revista Harvard Law Review faz publicar, desde 1950, a série “Foreword”, geralmente com um autor convidado escolhendo um tema de abordagem. Em termos de representatividade, é preciso observar que o STF terminou o ano de 2015 com uma “flexibilização” da inviolabilidade de domicílio, ao julgar o RE 603.616, quando disse que seria possível a autoridade policial ingressar na residência das pessoas, durante o dia, mesmo sem possuir mandado judicial, no que pode ser observado como uma “emenda constitucional judicial”, norma aparentemente não escrita (invisível) da Constituição Federal.

O ano de 2016 terminou igualmente com uma decisão do mesmo quilate, quando a Corte Suprema disse que a “presunção de inocência” se transforma em “presunção de culpa”, assim como a “inviolabilidade de domicílio” foi transformada em “não-inviolabilidade de domicílio”, em decisões que também podem ser consideradas como “emendas constitucionais judiciais”, cuja discricionariedade subjacente parece ser violadora do texto constitucional, na distinção que Eros Grau realiza entre “juízo de legalidade” e “juízo de oportunidade”: “a distinção entre ambos esses juízos encontra-se em que o juízo de oportunidade comporta uma opção entre indiferentes jurídicos, procedida subjetivamente pelo agente; o juízo de legalidade é atuação, embora desenvolvida no campo da prudência, que o intérprete empreende atado, retido pelo texto normativo e pelos fatos” (Grau, Eros. O Novo Velho Tema da Interpretação do Direito. Em: Streck, Lenio et all. Ontem os Códigos! Hoje, As Constituições! Homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 28).

Este artigo analisa o recente (e aparente) equívoco interpretativo do Supremo Tribunal Federal com relação à “presunção de inocência”, previsto no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal de 1988, que dispõe: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. O STF realizou alguns julgamentos, com marcos temporais distintos, sobre da presunção de inocência, devendo ser destacado o momento de transição do regime anterior para a Constituição Federal de 1988 como primeiro marco (I), o Habeas Corpus 84.078, rel. Min. Eros Grau, em 2009 como segundo marco (II), e o Habeas Corpus 126.292, e, as Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43 e 44, respectivamente, em fevereiro e outubro de 2016, como terceiro marco (III).

Marco Temporal       Data   Admissão da prisão após 2º grau
1º - HC 55.118/MG  1977-1988    Sim
2º - HC 84.078/MG  2009   Não
3º - HC 126.292/SP            2016   Sim

Este artigo procurará demonstrar que o Supremo Tribunal Federal realizou o que se denomina “interpretação retrospectiva” (como será abordado), especificamente no período de tempo compreendido entre o primeiro marco (1988-2009), quando a alteração interpretativa realizada no segundo marco buscou privilegiar a normatividade da Constituição, mas que de 2016 em diante, no terceiro marco, a Corte voltou ao modelo de interpretação retrospectiva, aparentemente violando-se a Constituição Federal de 1988.

A Constituição ora vigente trouxe expressa vinculação do trânsito em julgado para o início do cumprimento da pena (artigo 5º, LVII), muito embora a Suprema Corte tenha adotado a partir de 1988, inicialmente, modelo interpretativo no qual um dispositivo constitucional novo é interpretado à luz — e sob a perspectiva — do ordenamento constitucional anterior, ou “interpretação retrospectiva”, como prefere o professor e ministro Luís Roberto Barroso (Barroso, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. Rio de Janeiro: Saraiva, 4ª ed., 2001, p. 71).

E isto porque, ao julgar o antigo Habeas Corpus 55.118/MG, de 16/6/1977, do qual foi relator o ministro Cordeiro Guerra, o STF discutiu a tese que buscava saber se com advento da Lei 5.941/73, o artigo 637 do CPP teria sofrido alguma influência, a partir da alteração inserida no artigo 594 do CPP, o qual passou a permitir que o réu apelasse em liberdade, desde que o condenado fosse "primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime de que se livre solto", mas o Tribunal, no particular, mencionou que:

“Subsiste na nova lei o dever do réu apelante se apresentar à prisão, o que se excepciona em sendo ele primário e de bons antecedentes, e o reconheça a sentença. Por igual, tal benefício pode ser concedido em casos de renúncia. Fosse intenção do legislador dar ao recurso extraordinário efeito suspensivo, o teria feito expressamente. Se não o fez, há que executar-se a sentença condenatória. As normas especiais, denegatórias de princípios gerais, a meu ver, não podem ser aplicadas extensivamente, quando há norma expressa em contrário. Por esses motivos, e porque intangido pela lei nova, o preceito do art. 637 do CPP, indefiro o pedido.”

Observa-se que as razões desta decisão, acompanhadas por outros julgados da Suprema Corte, são anteriores à Constituição de 1988. Mencione-se os seguintes julgados sob a égide do regime constitucional anterior à 1988: HC 57060/RJ, Rel. Ministro Rafael Mayer, 26.06.1979; HC 62.334/MG, Rel. Ministro Oscar Correa, 07.12.1984; HC 62.660/SP, Rel. Ministro Sydney Sanches, 12.04.1985; HC 66.045/MG, Rel. Ministro Carlos Madeira, 10.06.1988.

Contudo, após o advento do novo texto constitucional, em 5 outubro de 1988, a despeito da nova redação do artigo 5º, LVII, o Supremo Tribunal Federal continuou referendando a interpretação gestada no regime anterior, no sentido de que se o artigo 637 do CPP não previa efeito suspensivo para o recurso extraordinário, deveria o condenado iniciar o imediato cumprimento da pena após o julgamento em 2º grau.

É possível perceber esta trilha a partir dos seguintes julgados, posteriores à Constituição de 1988: HC 67.245/MG, Rel. Min. Aldir Passarinho, 28.03.1989; HC 68.449/DF, Rel. Min. Carlos Velloso, 26.02.1991; HC 72.171/SP, Rel. Min. Sydney Sanches, 22.08.1995; HC 72.663/SP, Rel. Min. Sydney Sanches, 13.02.1996.

O STF entendeu naquele momento de promulgação da CF/88, que a inovação do artigo 5º, LVII, da Constituição Federal era impeditiva apenas de que se lançasse o nome do réu no rol dos culpados, o que viria a ser alterado apenas em 2009, quando do julgamento do HC 84.078, cujo relator foi o ministro Eros Grau.

Tais observações permitem perceber que uma guinada jurisprudencial como a que se observou no julgamento do HC 126.292/SP, em fevereiro de 2016, em que figuraram como seus principais fundamentos a ausência de efeito suspensivo no recurso extraordinário (tal como era o imperativo do artigo 637 do CPP de 1941), nos aproximou não apenas do superado modelo no qual, para apelar, o réu deveria se recolher primeiramente à prisão, exceto se fosse réu primário e com bons antecedentes (as exceções já em 1973), mas também nos conduz de volta para o passado, para o modelo do regime anterior, numa interpretação retrospectiva.

O que precisa ficar evidente, a propósito, é que falarmos simplesmente em interpretação “retrospectiva” seria algo vazio se não destacarmos que isso ocorre por meio de uma “emenda constitucional judicial”, espécie normativa que pode estar prevista no artigo 59, inciso I-A, da Constituição Federal, de forma invisível, oriunda de um subjetivo “juízo de oportunidade”, que representa uma violação ao texto da Constituição.

Não é por outro motivo que o ministro Cezar Peluso, quando presidia este Supremo Tribunal Federal, apresentou em 2011 uma Proposta de Emenda à Constituição que alterava o regime constitucional dos recursos especial e extraordinário, que passavam a não obstar o trânsito em julgado, conforme a redação do art. 105-A, então proposto:

“Art. 105-A A admissibilidade do recurso extraordinário e do recurso especial não obsta o trânsito em julgado da decisão que os comporte. Parágrafo único. A nenhum título será concedido efeito suspensivo aos recursos, podendo o Relator, se for o caso, pedir preferência no julgamento.”

O espírito que presidiu a alteração de entendimento sobre a presunção de inocência em 2016 pode ser resumido em quatro premissas relativamente simples, observáveis a partir dos argumentos trazidos pelos votos vencedores: 1) os recursos estariam sendo utilizados de maneira protelatória, causando impunidade; 2) teria havido uma “mutação constitucional” no artigo 5º, inciso LVII, da CF/88; 3) o percentual de provimento dos recursos de caráter extraordinário seria tão baixo, que não representaria argumento relevante do ponto de vista da presunção de inocência; e, 4) o Brasil estaria na contramão da história, diferente do que se pratica em países “civilizados”. Funcionariam como uma espécie de “exposição de motivos” do que denominamos de “emenda constitucional judicial”, mas como as exposições de motivos normalmente fazem, trazem implícita a conclusão a que já se quer chegar antes do argumento.

Como observação crítica, inicia-se observando que a interpretação retrospectiva realizada foi inconstitucional, pois representou um retorno ao regime constitucional anterior, mas que a impunidade eventual decorrente do uso e abuso protelatório de recursos sempre pode ser resolvida mediante atuação firme dos Tribunais, com aplicação de multa e determinação do imediato trânsito em julgado, algo que já vinha pontualmente ocorrendo, além de ser necessário recordar Konrad Hesse, sobre os limites da mutação constitucional, para quem uma teoria da mutação constitucional, antes de tudo, tem a “função de desenvolver critérios aplicáveis à situação normal”, encontrando restrições importantes que, exatamente por serem limitadoras, tonificam a força normativa da Constituição.

Neste sentido, observa Hesse, em casos bem determinados, pode ser que tal solução seja inviável, pois quando for preciso preservar variadas funções da Constituição que entrarem em conflito, se impõe a necessidade de encontrar “o equilíbrio de máximo respeito”, promovendo aquela solução “que respeite ambas as funções, no que isto for materialmente possível”. Tudo que for além de tais possibilidades será não mais mutação constitucional, e sim o que Hesse denomina de “quebra constitucional” ou “anulação da Constituição” (Hesse, Konrad. Limites da Mutação Constitucional. Trad. Inocêncio Mártires Coelho. Em: Temas Fundamentais do Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 171).

Até por isso, o argumento do baixo percentual de provimento dos recursos de índole extraordinária é uma espécie de eclipse argumentativo, pois parâmetros percentuais são sempre moduláveis para se ajustarem a determinadas conclusões a que se busca chegar, além de ser obrigatório recordar a famosa anedota, de que as estatísticas são como os trajes de banho: mostram alguma coisa, mas cobrem o essencial.

Além do mais, o precisa ficar claro, numa alegação de comparação com outros modelos, é que mesmo no caso norte americano, costumeiramente invocado, observa-se que naquele país se utiliza o postulado consubstanciado na máxima “Innocent Until Proven Guilty”, construída e reconstruída pela Suprema Corte Americana, inicialmente a partir do caso Coffin vs. U.S (de 1894), no qual a Corte se deparou com uma recusa ocorrida no âmbito do Tribunal do Júri de se instruir um grupo de jurados sobre a advertência de que “O Direito presume que uma pessoa acusada de um crime é inocente até que seja provado por evidências competentes de que é culpada”, tendo havido confusão entre “prova”, “culpa”, “dúvida razoável” e “presunção de inocência”, e a reconstrução da opinião da Corte, através da redação a cargo do Justice Edward Douglas, é apontada como uma mixagem equivocada de preceitos de tradições jurídicas distintas, como direito romano, direito canônico, comentadores de estatutos jurídicos antigos, sem vinculação ao commom law, e atreladas a um advogado (Leonard MacNally), doutrinador ligado ao direito probatório (Pennington, Kenneth. Innocent Until Proven Guilty: The origins of a legal maxim. The Jurist, n. 63, 2003).

Aplicar tal “máxima”, desconsiderando seu contexto, equivale também, além de tudo, a aplicar o direito canônico, o direito romano, comentadores de estatutos antigos em detrimento do texto escrito da ora vigente Constituição Federal, em uma “super-interpretação retrospectiva”, invertendo-se presunção de inocência, vinculativa do início do cumprimento da pena ao transito em julgado, transformando-a em presunção de culpa até prova em sentido contrário, caso seja provido o recurso especial ou extraordinário. Inconstitucionalidade em hipérbole.

Thiago Aguiar de Pádua é advogado, doutorando, mestre e professor de Direito (UniCEUB), além de pesquisador do grupo Cortes Constitucionais, Democracia e Isomorfismo.

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