Encerrado
o ano judiciário é sugestiva para a realização de um balanço sobre os acertos e
desacertos das decisões da Suprema Corte brasileira, algo que ocorre com muita
frequência nos Estados Unidos, quando a revista Harvard Law Review faz
publicar, desde 1950, a série “Foreword”, geralmente com um autor convidado
escolhendo um tema de abordagem. Em termos de representatividade, é preciso
observar que o STF terminou o ano de 2015 com uma “flexibilização” da
inviolabilidade de domicílio, ao julgar o RE 603.616, quando disse que seria
possível a autoridade policial ingressar na residência das pessoas, durante o
dia, mesmo sem possuir mandado judicial, no que pode ser observado como uma
“emenda constitucional judicial”, norma aparentemente não escrita (invisível)
da Constituição Federal.
O
ano de 2016 terminou igualmente com uma decisão do mesmo quilate, quando a
Corte Suprema disse que a “presunção de inocência” se transforma em “presunção
de culpa”, assim como a “inviolabilidade de domicílio” foi transformada em
“não-inviolabilidade de domicílio”, em decisões que também podem ser
consideradas como “emendas constitucionais judiciais”, cuja discricionariedade
subjacente parece ser violadora do texto constitucional, na distinção que Eros
Grau realiza entre “juízo de legalidade” e “juízo de oportunidade”: “a
distinção entre ambos esses juízos encontra-se em que o juízo de oportunidade
comporta uma opção entre indiferentes jurídicos, procedida subjetivamente pelo
agente; o juízo de legalidade é atuação, embora desenvolvida no campo da
prudência, que o intérprete empreende atado, retido pelo texto normativo e
pelos fatos” (Grau, Eros. O Novo Velho Tema da Interpretação do Direito. Em:
Streck, Lenio et all. Ontem os Códigos! Hoje, As Constituições! Homenagem a
Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 28).
Este
artigo analisa o recente (e aparente) equívoco interpretativo do Supremo
Tribunal Federal com relação à “presunção de inocência”, previsto no artigo 5º,
inciso LVII, da Constituição Federal de 1988, que dispõe: “ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
O STF realizou alguns julgamentos, com marcos temporais distintos, sobre da
presunção de inocência, devendo ser destacado o momento de transição do regime
anterior para a Constituição Federal de 1988 como primeiro marco (I), o Habeas
Corpus 84.078, rel. Min. Eros Grau, em 2009 como segundo marco (II), e o Habeas
Corpus 126.292, e, as Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43 e 44,
respectivamente, em fevereiro e outubro de 2016, como terceiro marco (III).
Marco
Temporal Data Admissão da prisão após 2º grau
1º
- HC 55.118/MG 1977-1988 Sim
2º
- HC 84.078/MG 2009 Não
3º
- HC 126.292/SP 2016 Sim
Este
artigo procurará demonstrar que o Supremo Tribunal Federal realizou o que se
denomina “interpretação retrospectiva” (como será abordado), especificamente no
período de tempo compreendido entre o primeiro marco (1988-2009), quando a
alteração interpretativa realizada no segundo marco buscou privilegiar a
normatividade da Constituição, mas que de 2016 em diante, no terceiro marco, a
Corte voltou ao modelo de interpretação retrospectiva, aparentemente
violando-se a Constituição Federal de 1988.
A
Constituição ora vigente trouxe expressa vinculação do trânsito em julgado para
o início do cumprimento da pena (artigo 5º, LVII), muito embora a Suprema Corte
tenha adotado a partir de 1988, inicialmente, modelo interpretativo no qual um
dispositivo constitucional novo é interpretado à luz — e sob a perspectiva — do
ordenamento constitucional anterior, ou “interpretação retrospectiva”, como
prefere o professor e ministro Luís Roberto Barroso (Barroso, Luís Roberto.
Interpretação e Aplicação da Constituição. Rio de Janeiro: Saraiva, 4ª ed.,
2001, p. 71).
E
isto porque, ao julgar o antigo Habeas Corpus 55.118/MG, de 16/6/1977, do qual
foi relator o ministro Cordeiro Guerra, o STF discutiu a tese que buscava saber
se com advento da Lei 5.941/73, o artigo 637 do CPP teria sofrido alguma
influência, a partir da alteração inserida no artigo 594 do CPP, o qual passou
a permitir que o réu apelasse em liberdade, desde que o condenado fosse
"primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença
condenatória, ou condenado por crime de que se livre solto", mas o
Tribunal, no particular, mencionou que:
“Subsiste
na nova lei o dever do réu apelante se apresentar à prisão, o que se excepciona
em sendo ele primário e de bons antecedentes, e o reconheça a sentença. Por
igual, tal benefício pode ser concedido em casos de renúncia. Fosse intenção do
legislador dar ao recurso extraordinário efeito suspensivo, o teria feito
expressamente. Se não o fez, há que executar-se a sentença condenatória. As
normas especiais, denegatórias de princípios gerais, a meu ver, não podem ser
aplicadas extensivamente, quando há norma expressa em contrário. Por esses
motivos, e porque intangido pela lei nova, o preceito do art. 637 do CPP,
indefiro o pedido.”
Observa-se
que as razões desta decisão, acompanhadas por outros julgados da Suprema Corte,
são anteriores à Constituição de 1988. Mencione-se os seguintes julgados sob a
égide do regime constitucional anterior à 1988: HC 57060/RJ, Rel. Ministro
Rafael Mayer, 26.06.1979; HC 62.334/MG, Rel. Ministro Oscar Correa, 07.12.1984;
HC 62.660/SP, Rel. Ministro Sydney Sanches, 12.04.1985; HC 66.045/MG, Rel.
Ministro Carlos Madeira, 10.06.1988.
Contudo,
após o advento do novo texto constitucional, em 5 outubro de 1988, a despeito
da nova redação do artigo 5º, LVII, o Supremo Tribunal Federal continuou
referendando a interpretação gestada no regime anterior, no sentido de que se o
artigo 637 do CPP não previa efeito suspensivo para o recurso extraordinário,
deveria o condenado iniciar o imediato cumprimento da pena após o julgamento em
2º grau.
É
possível perceber esta trilha a partir dos seguintes julgados, posteriores à
Constituição de 1988: HC 67.245/MG, Rel. Min. Aldir Passarinho, 28.03.1989; HC
68.449/DF, Rel. Min. Carlos Velloso, 26.02.1991; HC 72.171/SP, Rel. Min. Sydney
Sanches, 22.08.1995; HC 72.663/SP, Rel. Min. Sydney Sanches, 13.02.1996.
O
STF entendeu naquele momento de promulgação da CF/88, que a inovação do artigo
5º, LVII, da Constituição Federal era impeditiva apenas de que se lançasse o
nome do réu no rol dos culpados, o que viria a ser alterado apenas em 2009,
quando do julgamento do HC 84.078, cujo relator foi o ministro Eros Grau.
Tais
observações permitem perceber que uma guinada jurisprudencial como a que se
observou no julgamento do HC 126.292/SP, em fevereiro de 2016, em que figuraram
como seus principais fundamentos a ausência de efeito suspensivo no recurso
extraordinário (tal como era o imperativo do artigo 637 do CPP de 1941), nos
aproximou não apenas do superado modelo no qual, para apelar, o réu deveria se
recolher primeiramente à prisão, exceto se fosse réu primário e com bons
antecedentes (as exceções já em 1973), mas também nos conduz de volta para o
passado, para o modelo do regime anterior, numa interpretação retrospectiva.
O
que precisa ficar evidente, a propósito, é que falarmos simplesmente em
interpretação “retrospectiva” seria algo vazio se não destacarmos que isso
ocorre por meio de uma “emenda constitucional judicial”, espécie normativa que
pode estar prevista no artigo 59, inciso I-A, da Constituição Federal, de forma
invisível, oriunda de um subjetivo “juízo de oportunidade”, que representa uma
violação ao texto da Constituição.
Não
é por outro motivo que o ministro Cezar Peluso, quando presidia este Supremo
Tribunal Federal, apresentou em 2011 uma Proposta de Emenda à Constituição que
alterava o regime constitucional dos recursos especial e extraordinário, que
passavam a não obstar o trânsito em julgado, conforme a redação do art. 105-A,
então proposto:
“Art.
105-A A admissibilidade do recurso extraordinário e do recurso especial não
obsta o trânsito em julgado da decisão que os comporte. Parágrafo único. A
nenhum título será concedido efeito suspensivo aos recursos, podendo o Relator,
se for o caso, pedir preferência no julgamento.”
O
espírito que presidiu a alteração de entendimento sobre a presunção de
inocência em 2016 pode ser resumido em quatro premissas relativamente simples,
observáveis a partir dos argumentos trazidos pelos votos vencedores: 1) os
recursos estariam sendo utilizados de maneira protelatória, causando
impunidade; 2) teria havido uma “mutação constitucional” no artigo 5º, inciso
LVII, da CF/88; 3) o percentual de provimento dos recursos de caráter
extraordinário seria tão baixo, que não representaria argumento relevante do
ponto de vista da presunção de inocência; e, 4) o Brasil estaria na contramão
da história, diferente do que se pratica em países “civilizados”. Funcionariam
como uma espécie de “exposição de motivos” do que denominamos de “emenda
constitucional judicial”, mas como as exposições de motivos normalmente fazem,
trazem implícita a conclusão a que já se quer chegar antes do argumento.
Como
observação crítica, inicia-se observando que a interpretação retrospectiva
realizada foi inconstitucional, pois representou um retorno ao regime
constitucional anterior, mas que a impunidade eventual decorrente do uso e
abuso protelatório de recursos sempre pode ser resolvida mediante atuação firme
dos Tribunais, com aplicação de multa e determinação do imediato trânsito em
julgado, algo que já vinha pontualmente ocorrendo, além de ser necessário
recordar Konrad Hesse, sobre os limites da mutação constitucional, para quem
uma teoria da mutação constitucional, antes de tudo, tem a “função de
desenvolver critérios aplicáveis à situação normal”, encontrando restrições
importantes que, exatamente por serem limitadoras, tonificam a força normativa
da Constituição.
Neste
sentido, observa Hesse, em casos bem determinados, pode ser que tal solução
seja inviável, pois quando for preciso preservar variadas funções da
Constituição que entrarem em conflito, se impõe a necessidade de encontrar “o
equilíbrio de máximo respeito”, promovendo aquela solução “que respeite ambas
as funções, no que isto for materialmente possível”. Tudo que for além de tais
possibilidades será não mais mutação constitucional, e sim o que Hesse denomina
de “quebra constitucional” ou “anulação da Constituição” (Hesse, Konrad.
Limites da Mutação Constitucional. Trad. Inocêncio Mártires Coelho. Em: Temas
Fundamentais do Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 171).
Até
por isso, o argumento do baixo percentual de provimento dos recursos de índole
extraordinária é uma espécie de eclipse argumentativo, pois parâmetros
percentuais são sempre moduláveis para se ajustarem a determinadas conclusões a
que se busca chegar, além de ser obrigatório recordar a famosa anedota, de que
as estatísticas são como os trajes de banho: mostram alguma coisa, mas cobrem o
essencial.
Além
do mais, o precisa ficar claro, numa alegação de comparação com outros modelos,
é que mesmo no caso norte americano, costumeiramente invocado, observa-se que
naquele país se utiliza o postulado consubstanciado na máxima “Innocent Until
Proven Guilty”, construída e reconstruída pela Suprema Corte Americana,
inicialmente a partir do caso Coffin vs. U.S (de 1894), no qual a Corte se
deparou com uma recusa ocorrida no âmbito do Tribunal do Júri de se instruir um
grupo de jurados sobre a advertência de que “O Direito presume que uma pessoa
acusada de um crime é inocente até que seja provado por evidências competentes
de que é culpada”, tendo havido confusão entre “prova”, “culpa”, “dúvida
razoável” e “presunção de inocência”, e a reconstrução da opinião da Corte,
através da redação a cargo do Justice Edward Douglas, é apontada como uma
mixagem equivocada de preceitos de tradições jurídicas distintas, como direito
romano, direito canônico, comentadores de estatutos jurídicos antigos, sem
vinculação ao commom law, e atreladas a um advogado (Leonard MacNally),
doutrinador ligado ao direito probatório (Pennington, Kenneth. Innocent Until
Proven Guilty: The origins of a legal maxim. The Jurist, n. 63, 2003).
Aplicar
tal “máxima”, desconsiderando seu contexto, equivale também, além de tudo, a
aplicar o direito canônico, o direito romano, comentadores de estatutos antigos
em detrimento do texto escrito da ora vigente Constituição Federal, em uma
“super-interpretação retrospectiva”, invertendo-se presunção de inocência,
vinculativa do início do cumprimento da pena ao transito em julgado,
transformando-a em presunção de culpa até prova em sentido contrário, caso seja
provido o recurso especial ou extraordinário. Inconstitucionalidade em
hipérbole.
Thiago
Aguiar de Pádua é advogado, doutorando, mestre e professor de Direito
(UniCEUB), além de pesquisador do grupo Cortes Constitucionais, Democracia e
Isomorfismo.
http://www.conjur.com.br/2017-fev-22/thiago-padua-presuncao-culpa-grau-inconstitucional?utm_source=dlvr.it&utm_medium=twitter
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