Autora
de uma dissertação de mestrado foi sobre o imaginário do negro nos programas
policiais, a jornalista e pós-doutoranda da Universidade de São Paulo (USP)
Rosane Borges aborda nessa entrevista a relação entre mídia, racismo,
encarceramento em massa e guerra às drogas. “A gente vê um conluio do
judiciário e da imprensa em relação à criminalização da juventude negra”,
afirma Rosane, que é colunista da Carta Capital e da Boitempo, além de
integrante da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (COJIRA-SP) e
conselheira da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas.
A
partir de valores humanos e éticos, como você tem avaliado a cobertura da
grande mídia sobre a crise do sistema carcerário?
A
cobertura da mídia e da imprensa em particular sobre a crise do sistema
carcerário no Brasil é parcial, fragmentária e, diria mais, superficial. Ela
tende a uma lógica do senso comum e reduz a nossa crise carcerária a uma briga
entre facções. A gente que vem acompanhando, vê o que está por detrás dos
conflitos. Não estou dizendo que eles não existem. São guerras ferrenhas pelo
controle das fronteiras, pelo tráfico internacional, mas não se diz que essas
guerras são apenas a ponta de um iceberg de um sistema mais complexo, do qual o
Estado faz parte.
Enquanto
a mídia não aponta, não sinaliza para sua macroestrutura, seu aspecto sistêmico,
o que a gente tem enquanto notícias? Guerra entre facções, bandidos se matando,
uma carnificina entre monstros. Para início de conversa, se esses presos estão
sob a tutela do Estado, o Estado fracassa em permitir que essas guerras
aconteçam.
Então
eu diria que a cobertura da mídia no que diz respeito ao sistema carcerário é
uma cobertura que explora o fato pelo fato, e é um factual muito inconsistente,
muito ruim, que só responsabiliza os presos que ali estão. Barbarizam e
colocam, como eu costumo repetir, a fronteira entre nós e os outros.
É
possível afirmar que a cobertura da grande mídia sobre a crise do sistema
penitenciário está rodeada de preceitos racistas? Como?
É
sim possível dizer. Não há, a princípio, uma seleção entre corpos negros e
brancos. Mas essa separação ocorre na exata medida em que há uma escolha prévia
de quem é o sujeito, ou a sujeita merecedora de tratamento desumano nas
prisões.
De
certa forma, o preceito racista se torna evidente quando a gente não reage de
maneira visceral, mobilizadora, quando esses corpos presos são majoritariamente
de homens negros. O preceito racista se dá na medida em que a gente naturaliza
a racialização já dada. Então eu diria que é evidente que há uma aceitação, uma
não surpresa e uma não reação da população brasileira no que diz respeito ao
perfil de quem morre.
O
preceito racista é posto quando a gente naturaliza o drama racial que impera na
escolha dos corpos matáveis, dos corpos brutais, o que o [teórico camaronês]
Achille Mbembe chama da necropolítica. E quem morre nesse sistema? São homens
negros, os indesejáveis, os perigosos, os incorrigíveis, os que não tem nenhuma
política de inserção plena na sociedade brasileira.
O
sistema carcerário é absolutamente desumano e inconcebível. Eu costumo crer que
em um certo momento da história, nós, brasileiros, iremos olhar para trás e nos
envergonharmos das prisões que temos nos dias de hoje.
Minha
dissertação de mestrado foi sobre o imaginário do negro nos programas
policiais. Está claro que a busca pelo perigoso, seja nas delegacias, ou nas
ruas, se dê a partir de reuniões corpóreas. Tatuagem, cicatrizes nos rostos e
evidentemente um corpo negro. A busca do repórter durante as notícias pelo mais
perigoso “coincidentemente” combinava com um homem negro, com cicatriz, ou
tatuagem. A gente vê que existem pré-conceitos e uma cartilha que pré-define
quem é mais ou menos perigoso, e nessa cartilha o traço racial negro é
irrevogavelmente presente.
Como
os corpos negros têm sido representados pela mídia hegemônica? Como a disputa
por mercado entre as facções tem sido apresentada ao público?
Como
a gente bem sabe, a mídia em geral e a imprensa em particular costumam
trabalhar com um quadro comum de referências. A gente tem narrativas e sujeitos
que devem corresponder a esse código reconhecível do qual a imprensa se nutre.
Quando
se tem uma reportagem sobre ciência, sobre economia, a gente sempre vai ver
corpos brancos, das universidades públicas do país. Ora, esse cenário e a
escolha do sujeito, que normalmente são homens e brancos, não são a toa. Eles
visam corresponder de certa forma a um código para o qual a gente reconhece.
Digo
isso para falar que a representação de corpos negros, de meninos e meninas, mas
principalmente dos homens, está dentro de um código reconhecido. Qual é esse
quadro para a narrativa jornalística, para ela ter uma decodificação mais
expressiva? São corpos que de certa forma vão ser enquadrados dentro do desviante,
anormal, feio, errado, enfim, tudo que diz respeito a não normalidade. São
corpos negros, corpos trans, corpos periféricos, que vivem nas bordas, que
serão acionados para representar essa narrativa.
Então
eu diria que, em linhas gerais, os corpos negros são de extremo. E que extremo
é esse? Extremo da marginalidade, da pobreza, do bolsa família, ou no outro
extremo, do divertimento, da fidelidade, do esporte, do samba. Nós não estamos
na linha dos meios, estamos na linha dos extremos. O que seria isso? Seria a
vida como ela nas suas múltiplas possibilidades de existência: o médico,
economista, profissional liberal, assistente de tecnologia. O que a gente
percebe é que essa representação dos extremos tende a esse imaginário prévio
sobre nós. Ora, no que diz respeito a uma narrativa da criminalidade, causaria
muito espanto se, do ponto de vista de um discurso jornalístico, a gente
apresentasse corpos loiros de olhos azuis.
Por
que o mendigo de Curitiba causou muita comoção? Porque era um homem branco, de
olhos azuis, considerado bonito, considerado mendigo. Ou seja, era o corpo
errado no lugar errado. Se fosse o corpo negro, não teríamos dúvida, ele não
causaria comoção nacional.
Imagem
e imaginário têm a ver com a política real. Enquanto a gente tiver ligando uma
coisa a outra, o preconceito vai ser uma profecia autorrealizada no Brasil.
Nós, negros, com uma tendência a sermos mais perigosos, uma ameaça à sociedade,
somos a maioria nos presídios. Você percebe como o preconceito confirma um dado
da realidade, confirma a partir de um dado que é irrisório, ou da suposta
narratividade? Os nossos corpos não são propensos a marginalidade ou a pobreza,
eles só o são porque há um regime racista que nos coloca nessa prisão de
imagens. E o problema carcerário no Brasil responde de maneira muito potente e
educativa a essa lógica. Ele confirma um preconceito que, repito, tem a função
perversa de ter a força de uma profecia.
A
política de drogas adotada pelo Brasil em 2005 permite que o agente policial
possa definir quem é usuário e quem é traficante. Em muitos casos, essa escolha
subjetiva tem sido fundamentada em preceitos racistas. Como a mídia alimenta
essa criminalização da juventude negra?
A
gente vê um conluio do judiciário e da imprensa em relação à criminalização da
juventude negra. Eu acompanhei um projeto que observava como o juiz sentenciava
jovens negros e pobres e brancos de classe média. Eles geralmente diziam ao
jovem branco de classe média: “Você não fica constrangido, não tem vergonha do
seu pai pagar uma escola cara e você se envolver em crime, tráfico e drogas?”.
Ele era muito condescendente com esse jovem. Se condenasse, era uma pena muito
pequena. Já com o jovem negro, que já é talhado para ser bandido e
marginalizado, as penas eram duras e o discurso era outro. O que eu quero dizer
ao chegar com esse exemplo é que, do ponto de vista de quem é quem na lógica
social, a gente tem um peso narrativo para o jovem negro.
O
departamento de psicologia da USP fez uma pesquisa há alguns anos que
demonstrava como nós, brasileiros e brasileiras, temos muito mais medo de ser
vistas ou flagradas por um jovem negro na rua à noite. Isso significa que a
gente antecipadamente já imagina quem é o marginal no nosso país. Ora, esse
desenho de certa forma orienta a narrativa da imprensa, da mídia e da
publicidade.
Recentemente
uma campanha do governo federal expôs que “o melhor aluno pode matar” e esse
aluno era o jovem negro. Como essa representação recai no dia a dia dos jovens
negros? Recai de maneira negativa porque esse imaginário é perseguido pela
polícia.
Um
policial que tem o poder de decidir quem é usuário e traficante decide a partir
de uma cultura racista, a partir de práticas preconceituosas, em que o
fundamento racial é constante. Então é muito mais fácil para esse policial
asseverar de antemão que um jovem negro é traficante e não apenas usuário. Ele
cai dentro do quadro comum de referências. Não haverá questionamentos, porque
isso corresponde a esse imaginário nosso, que vem desde o pós escravidão. Como
surge a polícia no Brasil? Ela surge do capitão do mato, ela surge de uma
posição que acompanha até hoje nossa polícia. Ela só se sustenta porque ela
entrega corpos suspeitos, e essa tradição que herda do capitão do mato se
renova na nossa sociedade contemporânea, pelo racismo, pela discriminação e pelo
preconceito.
Então
a mídia de certa forma e imprensa em particular lidam com esse imaginário. Ela
não inova em termos do quadro comum de referências. Ela reforça porque adota e
absorve esse imaginário e ,mais do que isso, ela é uma executora desse quadro comum
de referência. Ela opera no piloto automático, desses ideais culturais, desses
referenciais e de certa forma contribui diretamente para que o poder do racismo
opere sobre o destino, sobre as decisões que envolvam a juventude negra no
brasil, principalmente no tópico da violência e da criminalidade.
http://racismoambiental.net.br/2017/02/15/policial-decide-quem-e-usuario-e-traficante-a-partir-de-cultura-racista/
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