Explicar
a política brasileira para o publico estrangeiro é tão difícil quanto traduzir
Guimarães Rosa. É difícil explicar mesmo aos brasileiros, porque as verdades
factuais mais singelas são diariamente soterradas sob toneladas de mentiras. Em
geral, o público, doméstico ou estrangeiro, atêm-se às generalidades. Mas a
verdade, assim como o diabo, mora nos detalhes, nas entrelinhas.
A
liderança do Partido dos Trabalhadores (PT), o partido que foi apeado do poder
pelo impeachment, divulgou um comunicado, assinado por sua liderança na Câmara,
que revela a esquizofrenia e caos que acometeu o sistema político brasileiro. O
texto denuncia o governo Temer, acusando-o de “patrocinar um conjunto de
manobras para literalmente bloquear Operação Lava-Jato, preservando assim o
PMDB e o PSDB das investigações da força-tarefa”.
O
título do artigo é: “Governo Temer quer acabar com Lava-Jato e entregar
riquezas nacionais aos estrangeiros”
Acontece
que a Lava Jato, que o lider do PT na Câmara agora defende com tanta garra das
“manobras” do governo, é a mesma que acusa Lula de ser o “comandante máximo”
dos esquemas de corrupção investigados pela operação.
O
próprio PT, através de seus principais dirigentes, quadros e militantes, vários
de seus parlamentares, além de seu presidente de honra, fundador, e candidato
definido para as próximas eleições presidenciais, o ex-presidente Lula, vem
denunciando a Lava Jato como uma operação desonesta, de natureza
político-partidária, que tem agora como objetivo principal tirar Lula do páreo
em 2018.
Como
explicar, portanto, que o mesmo partido que acusa o governo Temer de querer
“acabar” com a Lava Jato é também o partido mais prejudicado e mais perseguido
pela Lava Jato. Pesquisas de opinião recentes demonstram que, apesar da
operação ter atingido vários partidos, a grande maioria da população associa à
Lava Jato ao PT. E foi justamente a Lava Jato que produziu a atmosfera de
terror político e econômico, ao paralisar e destruir setores inteiros da
economia, que levou ao impeachment.
A
explicação é dura, mas simples: o PT se tornou como uma daquelas galinhas das
quais se corta a cabeça. Elas continuam correndo para cá e para lá,
desgovernadas, agitadas, sem saber, porém, para onde correr. E não é de hoje.
O
público estrangeiro precisa entender o seguinte. O problema do Brasil não é a
corrupção. A era petista foi um dos momentos com menos corrupção da nossa
história. O governo federal inaugurou instrumentos de transparência que nunca
existiram antes. Foram criadas agências de controle de gastos e combate a
desvios que também não existiam. E, sobretudo, as instituições encarregadas de
investigar a corrupção nunca tiveram tanta autonomia, recursos e apoio
político, como a Polícia Federal e o Ministério Público. Foi o PT que criou
toda a legislação anticorrupção que, em seguida, seria usada pelas instituições
para destruir o próprio PT.
As
estimativas de desvios feitas pela Lava Jato são inteiramente exageradas, com
objetivo de produzir factoides de grande impacto na mídia. Era preciso criar
uma narrativa, o de que a Lava Jato havia desbaratado a “maior corrupção da
história”. Mentira. Não foi maior nada. Esse ranking de “maior da história” é
absurdo, porque seria necessário que houvesse uma investigação similar em outro
momento, e não houve, e que os valores fossem atualizados pela inflação, pelo
tamanho do PIB, etc.
Em
palestra recente na universidade de Columbia, patrocinada pela fundação Lemann,
pertencente ao homem mais rico do Brasil, o juiz Sergio Moro admitiu que a Lava
Jato provocou instabilidade, mas que, no futuro, isso se reverteria para o bem
do Brasil, que se tornaria “mais competitivo”.
No
encontro de Davos, que reúne grandes empresários e chefes de Estado do mundo
inteiro, o presidente Michel Temer não estava lá. O principal representante do
Brasil foi o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que foi abraçado
pelo presidente do Paraguai (cujo governo nasceu também de um golpe), e deu uma
entrevista afirmando que a Lava Jato é “pró-mercado”.
O
desastroso efeito sistêmico provocado pela destruição das grandes empresas
brasileiras de construção civil era óbvio, mas a loucura política instalada
pelo impeachment cegou a todos. Os representantes da Lava Jato hoje procuram
justificar a sua irresponsabilidade com argumentos ideológicos: a Lava Jato é
pró-mercado e levará o Brasil a ser mais “competitivo”.
Além
da destruição da economia, o efeito mais curioso da Lava Jato foi ter levado ao
poder a nata da escória da política brasileira, incluindo aí um monte de
investigados pela própria operação.
Aliás,
isso explicaria a esquizofrenia da liderança do PT na Câmara. Setores do
partido acreditam – com uma ingenuidade inacreditável – que a operação agora
poderia atingir o PSDB e o núcleo duro do governo. O governo Temer,
aproveitando o oportuníssimo acidente que vitimou o ministro Teori Zavascki,
nomeou para o seu lugar o seu ministro da Justiça, Alexandre de Moraes. A
nomeação deverá ser facilmente confirmada por um Senado repleto de investigados
pela própria Lava Jato. O próprio novo ministro do STF também é investigado
pela Lava Jato.
Mas
aí está outra confusão provocada pela transformação do debate político nacional
num boletim da Lava Jato. Hoje, as pessoas falam em “delatados”,
“investigados”, como se isso fosse uma figura penal associada à condenação.
As
“delações” da Lava Jato são um capítulo à parte da política brasileira. Desde
2014, estabeleceu-se uma cumplicidade criminosa entre a Lava Jato e a grande
imprensa, e pedaços de delações, antes mesmo de serem homologadas, em alguns
casos antes mesmo de existirem (surgiam notícias sobre delações que ainda iriam
acontecer), eram divulgados seletivamente à mídia. E tudo isso cumpria uma
agenda estritamente política, voltada a fortalecer o discurso pró-impeachment e
adensar as manifestações de protesto.
A
quantidade de ilegalidades cometidas pela Lava Jato é inesgotável. Para
começar, as prisões preventivas foram transformadas em instrumentos de tortura.
O sujeito apenas poderia ter esperança de responder o processo em casa se
aceitasse delatar, e a delação tinha de ser aquela desejada pela Lava Jato.
Alguns importantes empresários da indústria da construção civil, responsáveis
pelas principais obras de infra-estrutura do país, foram mantidos presos por
mais de um ano, porque se recusaram a entregar no jogo de delação imposto pela
Lava Jato. No caso da Odebrecht, a ira da Lava Jato pelo fato de seu
presidente, Marcelo Odebrecht, ter se recusado a delatar Lula foi tão grande,
que a empresa, a maior empresa de engenharia da América Latina, foi
literalmente pulverizada. Os operadores da Lava Jato, não satisfeitos em
destruir os negócios da Odebrecht no Brasil, viajaram aos Estados Unidos para
entregar informações sensíveis da empresa (fizeram o mesmo com a Petrobrás) às
autoridades do Departamento de Justiça daquele país. O resultado é que a
Odebrecht está sendo expulsa de todos os países em que possuía negócios.
A
resposta da Odebrecht à violência de que foi vítima foi divulgar uma
mega-delação, na qual derruba a narrativa central da operação, que punha Lula
no centro decisório do esquema. A Odebrecht acusa os principais dirigentes do
partido agora no governo, incluindo Michel Temer, além de próceres do PSDB, de
receberem propina.
A
resposta do destino à intenção da Odebrecht foi a morte de Teori Zavascki, e a
entrada de Alexandre de Moraes, no STF, como revisor da Lava Jato…
Eike
Batista, magnata falido, e Sergio Cabral, ex-governador do estado do Rio,
também foram presos pela Lava Jato, num grande espetáculo midiático, e agora
estão à espera de poderem fazer delação premiada. Não será nenhuma surpresa se
corroborarem a tese preferida dos procuradores, ou seja, se apontarem o dedo
para Lula.
O
problema é que a Lava Jato não encontrou nenhuma prova contra Lula, que sempre
manteve uma vida muito simples, morando no mesmo apartamento, numa cidade
operária, há mais de trinta anos. Sem provas, a Lava Jato tentou, durante todo
esse tempo, com ajuda de uma mídia histérica, acusar Lula de ser dono de um
apartamento no Guarujá. Mas não tem provas disso. Lula explicou que cogitou,
sim, em adquirir o apartamento, mas que decidiu não fazê-lo. É um apartamento
simples, num prédio simples, numa área já desvalorizada de uma cidade
considerada já fora de moda pela elite paulista. A imprensa explorou o fato de
ser um “triplex”, sem jamais especificar que se trata do menor triplex de
todos, com menos de cem metros quadrados, como se fossem três apartamentos
minúsculos empilhados. A outra acusação a Lula é de que seria dono de um sítio
em Atibaia, que ele frequentava. Também não há provas. O sítio pertence a um
antigo amigo de Lula.
A
Lava Jato acusa Lula de receber esse apartamento (que não é dele) e o sítio
(que também não é dele) como propina pelos esquemas de corrupção na Petrobrás.
Lula seria, neste caso, o corrupto mais modesto do mundo, ao pedir tão pouco
por um esquema que, segundo a Lava Jato, movimentou bilhões de reais.
Enquanto
a imprensa brasileira só fala de Lava Jato, e os partidos, à esquerda e a
direita, tentam empurrar, um para o outro, a pecha de querer “acabar com a Lava
Jato”, o regime político instalado pelo governo Temer deu uma guinada
fortíssima à direita, congelou gastos em saúde e educação por vinte anos,
destruindo ou reduzindo drasticamente qualquer tipo de política pública voltada
para o desenvolvimento, tecnologia, moradia popular, programas sociais. Está
cancelando projetos voltados para a indústria nacional. Afastou-se dos Brics.
Praticamente cortou relações com países mais pobres, em especial na África, com
os quais o Brasil tinha iniciado relações comerciais extremamente vantajosas
para os exportadores brasileiros, em especial de produtos manufaturados. Os
bancos públicos nacionais, principais responsáveis pelo Brasil ter resistido
incólume à crise financeira que arrastou o mundo a partir de 2008, estão sendo
reduzidos ou mesmo desmontados. A TV pública foi reduzida a escombros, e o
pouco que resta dela perdeu qualquer resquício de autonomia e se tornou mera
repetidora de notícias de interesse do governo.
O
Brasil que surge da Lava Jato e do impeachment não é, definitivamente, um país
mais “competitivo”, como quer Sergio Moro, nem “pró-mercado”, como pretende
Rodrigo Janot. É uma economia arruinada, sem perspectivas, com instituições
caóticas, agindo por contra própria. O judiciário passou a cassar resultados
eleitorais sem nenhum pudor. Vereadores, deputados e senadores são presos sem
que saibam de que são acusados, muito antes que possam se defender. Hoje eu
fico sabendo, por exemplo, que o governador do Rio, Luiz Fernando Pezão, teve
seu mandato cassado. O Rio de Janeiro, que já estava sem liderança desde que
Pezão licenciou-se para tratar de um câncer, agora fica ainda mais desamparado,
à mercê das artimanhas do governo federal, que tenta chantagear o estado para
impor por aqui a privatização da Cedae (estatal de água).
Também
hoje, um juiz baixou uma liminar que derruba a nomeação de Moreira Franco para
um novo ministério criado só para ele pelo governo, com objetivo de lhe dar
foro privilegiado e fazê-lo escapar das garras de Sergio Moro.
Ora,
independente do caráter de Temer ou de Moreira Franco, o judiciário brasileiro
está fora de controle. Fizeram a mesma coisa com Lula, impedindo-o de ser
ministro.
Talvez
Sergio Moro esteja certo: o Brasil ficará mais competitivo no futuro, mas será
porque terá de impor freios democráticos a juízes, procuradores e delegados. O
Brasil precisa de autoridade, mas de uma autoridade chancelada
democraticamente, através de eleições livres, justas, periódicas e
competitivas. Este país de delatores, procuradores e juízes justiceiros não
permitirá que a economia respire e está, de antemão, condenado ao fracasso.
O
Rio foi uma das principais vítimas da Lava Jato. Antes dela, tínhamos uma
próspera indústria de navegação, uma pujante indústria de petróleo e gás. Os
portos foram renovados, com instalação de novas indústrias do setor químico e
siderúrgico em áreas próximas aos terminais de embarque, e construía-se, em
Itaboraí, a Comperj, a maior refinaria da América Latina. Tudo isso foi
bruscamente paralisado, abandonado ou destruído. A receita fiscal,
naturalmente, desabou, e o estado hoje está literalmente quebrado.
A
Petrobrás, sob a gestão de Pedro Parente, indicado pelo governo Temer, iniciou
uma campanha brutal de desnacionalização, inclusive discriminando empresas
brasileiras, o que imagino será bem difícil para um estrangeiro acreditar,
porque, de fato, não parece racional. Para a retomada das obras da Comperj, por
exemplo, a Petrobrás não permitiu a inclusão de nenhuma empresa nacional.
Arpeggio – coluna
política (quase) diária, por Miguel do Rosário
http://www.ocafezinho.com/2017/02/08/o-que-restara-do-brasil-apos-lava-jato/
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