Ensinar
a história em um período que a disciplina foi abolida do currículo escolar.
Esse foi o desafio dos professores durante o regime militar (1964-1985) no
país. Além do fato de os professores passarem por ‘treinamento’ oferecido pelo
sistema, as matérias de História e Geografia foram substituídas pelo chamado
“Estudos Sociais”. Nessa disciplina o mesmo professor teria de ensinar as duas
matérias com livros didáticos que obrigatoriamente passavam pelo crivo da
censura. O resultado geralmente era um ensino superficial.
Para
tratar desse assunto, as professoras Maria Auxiliadora Schmidt, da Universidade
Federal do Paraná (UFPR), e Kátia Abud, da Universidade de São Paulo (USP),
lançaram na semana passada o livro “50 anos da ditadura militar – capítulos
sobre o ensino de história no Brasil”. A obra reúne documentos do período e
artigos de nove professores e pesquisadores.
Um
dos artigos de João Bertolini, por exemplo, conta a passeata em março de 1964 –
portanto antes do golpe militar – ocorrida em Curitiba contra o livro didático
História Nova do Brasil ,que foi considerado uma obra “subversiva”. Confira os
principais trechos da entrevista com Maria Auxiliadora Schmidt.
Como
era ministrado o ensino de História durante o regime militar?
Primeiro
que nós não éramos professores de História, mas sim de Estudos Sociais. Esse
modelo foi criado nos Estados Unidos pós-crise econômica de 1929. A educação
foi culpada pela crise nos Estados Unidos. Passou-se a focar mais nos
interesses de mercado, voltado para a sociedade industrial. Era um ensino menos
intelectualizado. Juntaram História e Geografia em uma única disciplina. No
Brasil, há um começo experimental dessa disciplina na década de 50, mas foi em
1971 que oficialmente abole-se de vez a História do currículo escolar.
Isso
valia para todas as turmas?
Do
1.º ao 4.º ano era a Integração Social, que misturava um pouco de tudo, de
História a noções de higiene. Da 5.ª à 8.ª série começava a ministrar os
Estudos Sociais. Fui professora dessa disciplina sem saber Geografia a fundo.
Acabava focando mais na História. Os livros didáticos eram divididos: metade
História e metade Geografia. Era um ensino raso. Os professores não tinham
domínio de todo o assunto. Sem falar que os livros tinham um carimbo de que era
autorizado pela censura. O material que usávamos em sala de aula tinha de
passar pelo crivo da ditadura.
Ou
seja, havia assuntos da história que não poderiam ser tratados?
Sim.
O golpe militar, por exemplo, só virou ‘golpe’ depois do regime militar. Antes,
tínhamos de tratar o assunto como uma revolução contra o comunismo. Isso durou
até 1984.
Não
tinha como os professores driblarem o sistema?
Sim,
a gente tentava. Isso era mais comum nas escolas públicas do que nas
particulares. Mas era complicado porque era algo proibido.
Pode
nos contar alguma dessas experiências?
Eu
tentava falar, por exemplo, dos problemas sociais que existiam no Brasil, o que
não era permitido durante a educação do regime militar. Eu falava que esses
problemas existiam em todo percurso histórico e que ainda hoje existem.
Comentava sobre a Revolução dos Cravos, em Portugal (ocorrida em 1974 que depôs
o regime ditatorial salazarista) e abordava que o que Portugal viveu era uma
ditadura.
Havia
repreensão?
Fui
reprimida até por pais dos alunos. As crianças ficavam impressionadas e os pais
iam reclamar e indagar o motivo de eu falar isso em sala de aula. Muita gente
da classe média era a favor do golpe.
Como
era a preparação dos professores durante o Regime Militar?
Os
professores eram treinados. Tinha uma palavra chave no período, que era
reciclagem. Ou seja, transformando algo velho em uma coisa nova. O governo
militar estruturou isso muito bem no Paraná. Os professores eram convocados
antes do começo das aulas, no início do ano, para serem ‘reciclados’ no Cetepar
(Centro de Treinamento do Magistério do Estado do Paraná), no Boqueirão, em
Curitiba. Assim, os professores eram adestrados.
Quanto
tempo era esse preparo oferecido pelo regime?
Cerca
de uma semana. O professor ia pela manhã e só era liberado no final da tarde.
Ficávamos o dia inteiro. Na escola, depois de fazer a ‘reciclagem’ íamos fazer
o planejamento das aulas.
E
como era estruturado o planejamento?
O
planejamento era baseado em objetivos e metas. Hoje há um debate para criar
metas.
Durante
todo o período do regime militar era proibido ensinar História?
Apenas
no 2.º grau (hoje Ensino Médio) é que havia a disciplina de História. Mas era
durante um ano e duas vezes por semana. E o 2.º grau, naquela época, era
escasso no ensino público. Estava concentrado na educação particular, onde a
elite é que frequentava.
Ao
proibir o ensino de História, o governo militar pretendia inibir as pessoas de
pensar?
A
principal função da História é formar consciência histórica das pessoas. Claro
que essa consciência também é influenciada na família, pela televisão, pela
mídia, pelas conversas com os amigos. Tudo isso ajuda a formar uma cultura
histórica. A escola tem a função e a responsabilidade de contribuir para a
formação de uma consciência histórica para que os alunos possam estabelecer
relações entre presente e passado, mas também perspectivar o futuro. A
consciência histórica é fundamental para as pessoas se desanuviarem de
preconceitos e estereótipos. Possibilita pensar de forma empática, se colocando
no lugar do outro.
Como
é o livro “50 anos da ditadura militar – capítulos sobre o ensino de História
no Brasil”?
O
livro pode ser dividido em duas vertentes. A primeira reúne capítulos escritos
por professores que viveram o período e pesquisam o assunto. São análises
históricas, com o componente de que as pessoas que as escreveram eram
professores de História. A outra reúne documentos publicados durante o Regime
Militar que se perderam com o tempo. Muitos jovens não têm acesso a esse
material, como um manifesto da Associação Nacional de História contra as
propostas de ensinar História naquela época. Resolvemos colocar esses anexos
como fontes históricas para o período presente.
–
Enviada
para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.
http://racismoambiental.net.br/2017/02/12/o-desafio-de-ensinar-historia-quando-a-historia-foi-extinta-nas-escolas-2/
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