A
morte da ex-primeira-dama Marisa Letícia Lula da Silva, no último dia 3 de
fevereiro, não apaga duas violações que atingiram sua dignidade e suas
garantias fundamentais.
A
primeira decorre de decisão proferida em 16 de março do ano passado, quando
juízo da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba autorizou o levantamento do
sigilo de uma conversa telefônica privada que ela manteve com um de seus filhos
— sem qualquer relação com a investigação em curso.
A
outra violação ocorreu quando ela sofreu AVC (Acidente Vascular Cerebral), em
24 de janeiro deste ano. Médicos envolvidos em seu tratamento decidiram tornar
público um exame em grupo de WhatsApp, no qual outro integrante apregoava
sugestões para acelerar a morte da paciente.
Impressiona
o fato de que, embora os dois eventos mostrem injustificáveis violações às
garantias fundamentais de Marisa, apenas o segundo tenha sido alvo de
providências com o objetivo de responsabilizar os envolvidos.
De
fato, após episódio, o Hospital Sírio-Libanês, onde ocorreu o vazamento
indevido (ou parte dele), tomou as providências que entendeu cabíveis em
relação a uma médica que estaria envolvida nos fatos.
O
Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) abriu sindicâncias para
apurar e punir os médicos implicados. O resultado da apuração deverá, ainda,
ser encaminhado ao Ministério Público e à polícia, na hipótese de o conselho
constatar que a conduta também pode, em tese, configurar crime.
Já
o agente público envolvido na divulgação de conversa telefônica de Marisa não
foi alvo sequer de uma investigação.
Com
efeito, a corregedoria do Tribunal Regional Federal da 4ª Região arquivou
representação contra o magistrado que autorizou a divulgação do material
privado. A decisão foi confirmada, por 13 votos contra 1, no órgão máximo
daquela corte.
Na
fundamentação de sua decisão, a corte afirmou que a operação "lava
jato" não estaria sujeita às "regras gerais", ou seja, à lei, o
que formaliza o próprio estado de exceção.
Na
mesma linha, o Conselho Nacional de Justiça não abriu qualquer sindicância para
apurar a conduta do magistrado que autorizou a divulgação da conversa
telefônica privada, a despeito de haver recebido inúmeras representações.
A
Procuradoria-Geral da República, por seu turno, recebeu em 16/6/2016
representação também subscrita por Marisa pedindo providências para apurar
eventual crime de abuso de autoridade (Lei 4.898/65), além daquele previsto no
artigo 10 da Lei 9.296/96 — que define como crime, em tese, o levantamento do
sigilo de material proveniente de interceptação telefônica.
Mas
o órgão máximo do Ministério Público da União igualmente não tomou qualquer
providência, conforme documentado em ata notarial que goza de fé pública.
Resta
pendente apenas o julgamento de uma queixa-crime subsidiária pelo TRF-4, diante
da citada inércia do Ministério Público Federal.
Na
hipótese de ser rejeitada, a despeito dos relevantes fundamentos que a
sustentam, a afronta ao ordenamento e à dignidade de Marisa ficará sem qualquer
consequência jurídica. Nem mesmo a suspeição do juiz responsável pelas
violações apontadas foi reconhecida.
Marisa
não teve a oportunidade de ver o resultado de qualquer providência tomada em
relação às violações que lhe foram impostas, além de haver sido submetida, sem
qualquer evidência mínima, à condição de ré pelo mesmo órgão judiciário
responsável por sua exposição indevida.
Sua
memória impõe uma reflexão sobre este momento e um julgamento histórico capaz
de rever todas essas incongruências e o desrespeito à lei e ao Estado de
Direito.
Cristiano Zanin Martins
é advogado e sócio da Teixeira, Martins e Advogados.
* Artigo originalmente
publicado no jornal Folha de S.Paulo desta quarta-feira (22/2).
Revista
Consultor Jurídico
http://www.conjur.com.br/2017-fev-22/cristiano-zanin-martins-luta-historica-reparacao-postuma
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