Na
América Latina, a luta por direitos básicos para melhorar a vida das pessoas
ainda é uma constante. Enquanto isso, no Norte abastado, aumenta o consumo de
artigos luxuosos e o extrativismo predatório, “aquele que acontece nos EUA ou
na Europa por fracking ou pela construção de trens de alta velocidade”, acentua
Katu Arkonada, membro da Secretaria Executiva da Rede de Intelectuais em Defesa
da Humanidade, que vive e trabalha nessa realidade.
Arkonada
observa que “a prosperidade dos preços elevados do petróleo foi a mesma para
todos os países da América Latina e do Caribe. Mas esta prosperidade não
beneficiou igualmente os setores populares, as maiorias sociais, de todos os
países ricos em recursos estratégicos”. Considerada o pulmão do planeta, a
Amazônia “não é de responsabilidade exclusiva do Equador”, mas um compromisso
para todas as nações. “O que é de responsabilidade do Equador como país e como
um governo é continuar as políticas de redistribuição da riqueza para tirar da
pobreza milhões de pessoas”.
Katu
Arkonada é basco e vive hoje na Bolívia, depois de ter morado durante meses em
Belém do Pará, na Amazônia brasileira, trabalhando na coordenação do Fórum
Social Mundial. Colaborou com a Coordenadoria Andina de Organizações Indígenas
– Caoi na construção da Cúpula Continental dos Povos e Nacionalidades
Indígenas, realizada em Puno, Lago Titicaca, no Peru. Foi assessor do
Vice-Ministério de Planejamento Estratégico do Estado da Bolívia na construção
de indicadores de Bem Viver para os projetos de desenvolvimento.
A
entrevista foi publicada na revista IHU On-Line, no. 495, sob o título "A
incompatível relação entre extrativismo mineral e justiça social".
Confira a
entrevista.
IHU
On-Line - Em 2014, Eduardo Gudynas [1] disse em uma entrevista: “Chegamos a uma
situação em que os países latino-americanos não sabem fazer outra coisa que não
seja o extrativismo”. Você está de acordo com esta afirmação? Ainda estamos
longe de construir um modelo pós-extrativista?
Katu
Arkonada - Em primeiro lugar, devo dizer que mantenho uma postura crítica sobre
as posições do progressismo ambientalista que representam Eduardo Gudynas e
outros. Posições que normalmente vêm da academia ou ONGs financiadas a partir
dos Estados Unidos e da Europa, e não tanto dos movimentos sociais e lutas
reais.
Dito
isto, a maior parte dos países latino-americanos, entre os quais podemos
incluir os do núcleo duro boliviano, tais como a Bolívia, a Venezuela ou o
Equador, passaram de uma situação na qual seus recursos naturais estavam nas
mãos das transnacionais, à situação de, em primeiro lugar, nacionalizar estes
recursos estratégicos, para em uma segunda fase avançar industrializando-os e
gerar um valor agregado a estes recursos. Ou seja, a lacuna que ocorre na
disputa sobre o excedente é enorme, porque agora estes recursos naturais
permitem uma redistribuição da riqueza que o modelo neoliberal não permitia.
Mas
esse excedente está permitindo não apenas redistribuir a riqueza e
industrializar os recursos naturais, mas também abrir a possibilidade de investir
em tecnologia ou outras fontes de energia, como as energias renováveis, que,
embora certamente não permitam pensar em uma maneira de sair do modelo
extrativista, permitem pelo menos pensar horizontes de transição. O que, no
caso da Bolívia, não só acaba por reforçar o modelo econômico da economia
plural, onde a economia do Estado é importante, mas também a comunitária.
IHU
On-Line - Você acredita que é possível reverter 500 anos de colonialismo e
extrativismo na América Latina? Existe alguma alternativa a este modelo?
O
extrativismo é uma condição imposta pelo capital em escala global, para um Sul
encarregado de fornecer matérias-primas para um Norte
Katu
Arkonada - Precisamente a crítica feita a partir do progressismo ambiental
evidencia como o modelo econômico extrativista e primariamente exportador na
América Latina foi construído, que parte da divisão internacional do trabalho e
da construção do capitalismo global, que outorgou tarefas específicas a cada
Estado-nação durante a imposição do capitalismo e da modernidade.
O
extrativismo é uma condição imposta pelo capital em escala global, para um Sul
encarregado de fornecer matérias-primas para um Norte que, graças à exploração
desse Sul, de seus povos e de sua natureza, pôde gerar suas revoluções
industriais e “desenvolver-se”.
Sair
deste modelo extrativista sem que se faça uma "desconexão" do sistema
capitalista, sem os recursos econômicos e a tecnologia que o Norte possui e não
quer transferir, é muito difícil, e muito mais para um período tão curto em
termos históricos, como os 10 anos do processo de câmbio boliviano.
Em
relação às alternativas, o problema do progressismo ambiental é exatamente este,
que se faça um diagnóstico que pode ser exposto, mas são incapazes de, a partir
de suas salas de aula e de seus centros de estudo, propor alternativas viáveis,
realizáveis e consistentes com a justiça social que permita tirar milhões de
pessoas da pobreza.
IHU
On-Line - Você acha que houve avanços no período de governos progressistas na
América Latina no que diz respeito ao extrativismo predatório?
Katu
Arkonada - Em primeiro lugar devemos definir o que é o extrativismo predatório.
O extrativismo predatório é aquele que acontece nos EUA ou na Europa por
fracking ou pela construção de trens de alta velocidade. Esse é o progresso do
"primeiro mundo". Na América Latina estamos falando de um
desenvolvimento para melhorar as condições de vida das pessoas.
Vejamos
um exemplo controverso, o da construção da estrada através do TIPNIS
(Território Indígena e Parque Nacional Isiboro-Secure). Neste conflito,
ampliado precisamente pelo progressismo ambiental e pelos meios de comunicação
da oposição, estamos falando da construção de uma estrada que vai unir dois dos
nove estados da Bolívia, dois estados que até hoje, depois de 500 anos de
capitalismo e "desenvolvimento", não têm sequer uma ligação
rodoviária, pelos problemas econômicos, mas também de saúde e educação, que
isso gera para milhares de famílias.
IHU
On-Line - No que se refere ao extrativismo, existem diferenças entre os
governos que chamamos de progressistas e os governos mais associados à direita?
Katu
Arkonada - A prosperidade dos preços elevados do petróleo foi a mesma para
todos os países da América Latina e do Caribe. Mas esta prosperidade não
beneficiou igualmente os setores populares, as maiorias sociais, de todos os
países ricos em recursos estratégicos.
Enquanto
na Bolívia a pobreza extrema, que em 2005 era de 38% da população no final do
neoliberalismo, foi reduzida para menos da metade em 10 anos, e existe a
previsão de chegar a 0 em 2025, no México, fronteira sul dos Estados Unidos e
paradigma do modelo neoliberal predatório, a pobreza aumenta a cada ano e já
está acima de 50%.
Ou
seja, é uma posição político-ideológica na qual você como governo distribui o
excedente, se você o entrega às transnacionais ou o utiliza em investimento
social. Em todo caso, é um desafio para toda a América Latina passar a depender
menos de fontes de energia não renováveis e apostar no uso de energias
renováveis, seja ela solar, eólica ou hidrelétrica.
IHU
On-Line - O Equador começou em setembro a explorar petróleo no Yasuní. Por que
a iniciativa Yasuní-ITT fracassou e que conclusões podemos tirar a partir deste
fracasso para que outros projetos ambientais não tenham o mesmo destino?
Katu
Arkonada - A iniciativa Yasuní nos mostra nitidamente a hipocrisia do que é
chamado de "comunidade internacional", que atribui ao Sul a função de
protetor florestal. A Amazônia é o pulmão do planeta, e não é de
responsabilidade exclusiva do Equador protegê-lo, mas de todo o mundo. O que é
de responsabilidade do Equador como país e como um governo é continuar as
políticas de redistribuição da riqueza para tirar da pobreza milhões de
pessoas. Neste caso, a hipocrisia está em se pedir ao Equador que não explore o
petróleo sob o Yasuní, enquanto o Norte permanece em um turbilhão de
"desenvolvimento" e de consumismo capitalista que está destruindo a
Mãe Terra, ao mesmo tempo em que destrói nossas sociedades, através do aumento
da pobreza e da desigualdade. Não é possível mais enxergar a velha Europa em
crise, onde há cada vez mais pobres à medida que aumenta o consumo de bens de
luxo.
IHU
On-Line - Por que não há na América Latina partidos ambientalistas fortes? Você
acha que esta seria uma solução para a questão ambiental?
A
questão ambiental não é uma questão que pode ser separada da justiça. A justiça
ambiental faz parte da justiça social pela qual lutamos
Katu
Arkonada - A questão ambiental não é uma questão que pode ser separada da
justiça. A justiça ambiental faz parte da justiça social pela qual lutamos. A
defesa da Mãe Terra é parte do programa político de toda a esquerda
latino-americana, enquanto há partidos ecologistas, como podemos ver na Europa,
que são conservadores em muitas posições políticas e ideológicas.
Em
todo caso, se olharmos para a América Latina como um continente, ou no caso
específico da Bolívia, não é seu modelo econômico, pensado para um país de 11
milhões de pessoas, o que está destruindo o planeta. O planeta foi destruído
pelo Norte capitalista no seu desenvolvimento por 300 anos, e por isso é
injusta a crítica dos processos que levam de 10 a 15 anos, pedindo-lhes que
deem um salto tecnológico-industrial que para outros Estados-nação levou
séculos.
De
qualquer forma, temos um debate em curso ao qual nenhuma solução é dada a
partir das críticas ao extrativismo, um debate global. A contradição entre o
direito ao desenvolvimento e tirar o seu povo da pobreza, e os direitos da Mãe
Terra, é o principal problema a nível global se pensarmos nos 2,6 bilhões de
pessoas que vivem entre a China e a Índia, muitas delas em extrema pobreza. É
uma situação que, para ser resolvida, e estamos falando de coisas concretas e
básicas, como de todos terem direito à eletricidade, necessita uma enorme
quantidade de recursos naturais, recursos que o planeta já não pode regenerar e
irão se esgotar, mais cedo ou mais tarde. Este é um dos principais debates, se
não o principal, que a esquerda do século XXI terá de enfrentar.
Nota:
[1] Eduardo Gudynas:
intelectual uruguaio que está intimamente ligado a questões de conservação
ambiental e modelo de produção intelectual ecológica. Sua visão é muito crítica
ao que chama de "modelo extrativista", que, em suas palavras, coloca
o planeta à beira da exaustão de recursos. (Nota da IHU On-Line)
Por: João
Flores da Cunha | Tradução: Evlyn Louise Zilch | Edição: Márcia Junges | 22
Fevereiro 2017
http://www.ihu.unisinos.br/561193-defender-a-mae-terra-um-programa-politico-de-toda-esquerda-latino-americana-entrevista-especial-com-katu-arkonada
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