Com
golpe ou sem golpe, um fato é certo: a crise do sistema penitenciário
brasileiro vem de longe e não pode ser debitada exclusivamente à conta desse
“governo” que se instalou no poder depois do afastamento maroto da Presidenta
legitimamente eleita, Dilma Vana Rousseff. Mas outro fato também é inegável: o
tal “governo” não tem minimamente condições de lidar com esse problema. A razão
é simples: a crise não se resolve “no pau”, como querem os brucutus sob o
comando de Alexandre Moraes, e nem com fiscalização dos administradores
penitenciários por juízes, com poderes pretensamente delegados pelo Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), como quer sua presidente, Ministra Carmen Lúcia.
Isso
é bem Brasil pós-golpe. Quando surge uma crise que causa comoção pública, a
solução proposta é simples: mais “pau”, seja na forma de violência bruta ou na
forma de mais poder de polícia. Políticas públicas, nem pensar!
Desqualificam-nas como “coisa de petista gastador e incompetente”. Também,
pudera! Os órgãos que poderiam formular essas políticas ou foram liquidados, ou
foram desempoderados, com a alocação dos seus recursos para outras áreas. Menos
Estado só pode levar à incapacidade da gestão pública para prevenir tragédias
como as que tiveram lugar no Amazonas e, agora, em Roraima.
Nesse
contexto, não pode deixar de ser lembrada a brilhante ideia do Sr. Alexandre
Moraes, de desviar os recursos do fundo penitenciário para o Plano Nacional de
Segurança Pública, desafiando decisão do Supremo Tribunal Federal de agosto de
2015, que determinou a aplicação urgente desses recursos, para pôr cobro ao
“estado de inconstitucionalidade” vigente nos presídios. Esse propósito foi,
por sinal, reforçado em 26 de abril de 2016, por meio de acordo de cooperação
técnica entre o CNJ e o Ministério da Justiça, assinado, respectivamente pelo
Presidente do CNJ de então, Ministro Ricardo Lewandowski, e o Ministro da
Justiça à época, que era este que ora lhes escreve. Nos termos do acordo, ainda
vigente, compete ao CNJ avalizar qualquer aplicação dos recursos do fundo
penitenciário, por via de nota técnica. Não há notícia de que o colegiado de
controle tenha se manifestado sobre o pretendido desvio de finalidade. Mas isso
é só um detalhe, como tudo no “governo” que se instalou no poder. E talvez a
atual Presidente do CNJ nem esteja a par desse detalhe!
Mas,
vamos lá. A reação governamental nestes dois episódios trágicos do descalabro
administrativo em nosso sistema penitenciário foi vergonhosa. O Sr. Alexandre
Moraes logo achou um meio de afastar de si o cálice de vinho tinto de sangue.
Culpou, primeiro, o governo do Amazonas pelo “acidente” (o Sr. Michel Temer
insistiu muito no uso dessa palavra) em Manaus e, depois, constatando que, ali,
o Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) é administrado pela obscura
empresa “Umanizzare”, preferiu colocar a tragédia na conta da iniciativa
privada. Claro que a “Umanizzare” reagiu prontamente, advertindo, em nota
pública, que a segurança do complexo não era sua atribuição contratual, que se
restringiria, grosso modo, ao “catering” diário. A segurança, disse a empresa,
era de competência do executivo estadual. O governador do Amazonas, por sua
vez, adotou discurso cínico. Como a sacudir os ombros, declarou que “não tinha
nenhum santo entre os presos mortos”.
No
caso de Roraima, o trato mais ou menos burocrático foi o mesmo. Curiosamente
não se ouviu um pio da Secretaria Especial de Direitos Humanos, tão cúpida em
defender o congelamento de recursos orçamentários para investimentos sociais
para os próximos vinte anos diante da Comissão Americana de Direitos Humanos.
Houve referências, pelo Ministério da Justiça, a recursos que seriam
transferidos para os estados, destinados à construção de novas penitenciárias,
como se isso resolvesse a situação de premência experimentada pelo sistema. A
governadora declarou que havia solicitado, em novembro passado, o apoio do
governo federal e o uso da Força Nacional em Roraima, em caráter de urgência,
para fazer face aos sérios riscos que vinha enfrentando na gestão do sistema
penitenciário local. O Sr. Alexandre Moraes, mais uma vez, tentou tirar o corpo
fora e afirmou que nada havia sido solicitado para o sistema penitenciário e,
sim, tão-somente, para a segurança pública. Que vexame! A governadora foi
obrigada a tornar pública sua missiva ao Sr. Alexandre Moraes, bem como sua
resposta negativa, dada por escrito (Aviso n.º 1636/2016-MJ). Mentira tem
pernas curtas e o nariz de Pinóquio cairia bem ao “ministro da [in]justiça”.
É
deplorável a atitude dos que insistem em ser nossos governantes, mesmo sem voto
e apoio da sociedade. E não causa menos náuseas o comentário cínico do
governador amazonense. Empurrar a responsabilidade para outros e sequer ser
capaz de um ato de humanidade para com os entes queridos dos cerca de noventa
brasileiros assassinados em Manaus e Roraima às vistas grossas do poder
constituído é de uma covardia sem igual. É verdadeira atitude de “hit and run”,
coisa de moleque que bate no carro alheio e sai fugindo. A opinião pública
espera até agora um gesto de humildade do “governo”, reconhecendo sua falta e
propondo a indenização dos familiares. Ou, será que vão deixar por isso mesmo,
que nem o moleque que bate no carro alheio? Será que os familiares vão ter de
invocar a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que nem no caso de Urso
Branco, de impacto bem menor? Deve ser lembrado ao “governo” – e a Sra. Flávia
Piovesan, que aceitou decorar a Secretaria Especial de Direitos Humanos, bem
como o embaixador de trinta e um anos de carreira, cheia de méritos próprios,
Silvio Albuquerque, sabem muito bem disso – que, já agora, não há sequer
necessidade de esgotamento dos recursos domésticos para provocar a Comissão em
Washington. A repetição de tais tragédias de mesmo formato e dinâmica configura
uma prática administrativa abusiva por parte do Brasil, que indica serem as
vias judiciais e administrativas internas ineficazes (art. 46 da Convenção
Americana de Direitos Humanos).
Aliás,
convém lembrar ao Sr. Alexandre Moraes que, do ponto de vista da
responsabilidade internacional do Estado brasileiro, é absolutamente
irrelevante se a violação a direitos consagrados consuetudinariamente ou em
tratados tenha partido do governo central ou de agentes de governos
periféricos, como estados e municípios. Para o efeito de responsabilização, o
Estado é um monólito e sua organização interna, unitária ou federativa, não
interessa ao direito internacional. Aqui a Convenção Americana contém até uma
cláusula expressa: o art. 28, em seu parágrafo (2), estabelece que “[n]o
tocante às disposições relativas às matérias que correspondem à competência das
entidades componentes da federação, o governo nacional deve tomar imediatamente
as medidas pertinentes, em conformidade com sua constituição e suas leis, a fim
de que as autoridades competentes das referidas entidades possam adotar as
disposições cabíveis para o cumprimento desta Convenção”. Em outras palavras:
vire-se o governo federal para fazer os estados cumprirem com as obrigações
internacionais assumidas pela diplomacia nacional! Transferir a culpa ao
governo estadual pode até aliviar a consciência do chefe do grupo que se
assenhorou do poder em Brasília, mas é tapar o sol com a peneira, pois nada
resolve, do ponto de vista jurídico.
Quanto
ao cinismo do governador do Amazonas, sequer mereceria comentários. O Sr. José
Melo adotou a linguagem do esquadrão da morte. Para ele, bandido bom é bandido
morto. Um Estado que faz da execução sumária de indefesos sob sua custódia um
instrumento de política de contenção de crimes é mais criminoso do que aqueles
que pretende punir, pois covardemente usa seu monopólio de violência contra
quem não pode ladeá-lo. Não interessa se um cidadão cometeu crimes ou não: sua
dignidade não é menor por isso e, se ele estiver em mãos do Estado, este é
responsável por sua incolumidade. Ser ou não ser “santo” não é critério para
medir a proteção a todas e todos devida. E José Melo, cassado em janeiro de
2016 pelo TRE-AM por denúncia de compra de votos nas eleições de 2014 e mantido
temporariamente pelo mesmo tribunal dois meses depois, também não parece ter a
santidade exigida para jogar a primeira pedra nos presos assassinados sob a
custódia do Estado, por ele representado no Amazonas.
Incrível
é que, em pleno século XXI, depois de treze anos de democracia inclusiva,
coisas tão óbvias ainda tenham de ser ditas. Como regredimos! Como nos
embrutecemos! Não que motins graves não tenham acontecido antes e mesmo durante
os governos democráticos do passado. Mas a resposta foi outra. Ninguém tentou
se safar. A responsabilidade foi prontamente assumida. Na Corte Interamericana
se produziu um acordo que manteve a Penitenciária de Urso Branco sob observação
por alguns anos. O Brasil se tornou parte do Protocolo Opcional à Convenção
contra a Tortura, criou seu mecanismo doméstico de implementação e se submeteu
à Subcomissão de Prevenção da Tortura. Enfim, os governos democráticos tinham
consciência da dimensão do problema e se esforçaram no alinhamento com padrões
internacionais de garantia de direitos.
Agora
não. É um empurra-empurra de gentinha medrosa, comprovando a incapacidade desse
“governo” de lidar com crises. Deveriam reconhecer que destroçaram a máquina
administrativa que poderia dar respostas. Falam em construir mais prisões, o
que soa como discurso infantil. Prisões não se constroem de um dia para outro
e, portanto, não são uma resposta adequada à urgência vivida. Prisões são caras
para serem mantidas e o governo federal pode até repassar recursos aos estados
para a construção, mas se não os passar, também, para a gestão, é como se não
fizesse nada. Há, no país, prisões novinhas, prontas e vazias por falta de
dinheiro para colocá-las em funcionamento. O que se verifica é que, muito mais
importante que novas unidades, é vital saber gerenciar as existentes. Nesse
tocante estamos na Idade da Pedra.
Uma
penitenciária não pode ser um depósito de gente pobre, feia e esquecida; não
pode ser um tanque de decantação da merda social. O dever do Estado é prevenir
novos crimes e isso só é possível com tratamento adequado aos que estão sendo
investigados ou que foram condenados por ter sido demonstrada, “além de
qualquer dúvida razoável”, a prática de crimes. Por tratamento adequado deve-se
entender recuperar chances perdidas de reconhecer nesses indivíduos com dívidas
na justiça cidadãos dignos, ensinando-lhes um ofício, dando-lhes educação
mínima, oferecendo-lhes condições de curarem suas feridas na alma e, sobretudo,
dar-lhes, depois, uma nova chance. Sem políticas públicas de inclusão social
esses resultados nunca serão atingidos.
A
crise aguda do sistema penitenciário deveria ser uma oportunidade para
pensarmos sobre o modelo de sociedade que queremos. Facções, bandos e
quadrilhas são instrumentos de um mercado informal paralelo rentável de drogas,
manejados por aqueles que não têm chance no mercado formal e, por isso, ou se
envolvem no crime, ou mantêm-se na sua miséria de sempre, com parquíssimas e
penosas perspectivas de melhora. Claro que em todo grupo social existem,
também, os conformados com sua condição de miseráveis e, portanto, sem vontade
de resistir; mas existem, igualmente, os inconformados, cheios de justos
ressentimentos e dispostos a “chutar o pau da barraca”. Torná-los conformados
“na porrada” não resolve o problema de que padecem e sempre exporá a sociedade
a rompantes violentos de uns e outros, cada vez mais numerosos, que não aceitam
sua condição. Faremos como as avestruzes? Enterraremos nossas cabeças na terra
e ignoraremos esse “lixo humano”? Para não sermos incomodados, preferiremos nos
enclausurar entre muros altos e fios de alta tensão? O problema é que a maioria
dos brasileiros não pode se dar esse luxo, nem sequer imaginar circular com
seus cheirosos filhinhos em carros blindados ou helicópteros sobre os centros
urbanos. Precisamos que todos vivam em segurança e com qualidade, senão os
verdadeiramente encarcerados serão os que moram fora das penitenciárias e estas
serão administradas pelos que vivem dentro delas, correndo soltos e organizados
em facções, bandos e quadrilhas. Ninguém conseguirá mudar esse quadro se não
olhar de frente para ele.
O
fundo penitenciário tem recursos para iniciar a virada. Mas não confundamos
política penitenciária com política de segurança pública, porque aquela é muito
mais ampla do que esta. Precisamos de gestores penitenciários, de arquitetura
penitenciária que tornem realidade o que se impõe na Lei de Execuções Penais,
uma das mais progressistas no direito comparado, mas relegada à condição de ser
“só lei”. Isso não se faz com juízes do CNJ criando mais uma instância de
controle dos administradores, até porque inexiste norma que permita ao
colegiado intromissão na atividade do Poder Executivo ou intervenção da
jurisdição dos juízes das Varas de Execuções Penais. Não podemos usar a crise
para dela “tirar uma casquinha” com palpites soltos e improvisados, a
empoderarem mais ainda esse ou aquele ator do serviço público.
A
casta judicial e a do ministério público são os maiores responsáveis, com seu
cego punitivismo, pela tragédia que já há muito se anunciava: como as prisões
não lhes dizem respeito, seguem entupindo-as com o “lixo humano” até o sistema
enfartar. A saída da crise pressupõe, pois, mudança de atitude dos órgãos
empenhados na persecução e jurisdição penais, carentes de uma política criminal
que os faça priorizar alguns ilícitos sobre outros e não fingir que obedecem
cegamente ao princípio da obrigatoriedade da ação penal, sem distinção.
Precisam ter consciência de que não é mais possível tolerar seu descaso diante
da proporção de 80% dos presos sem condenação, no aguardo da justiça andar.
Para dar conta de sua carga, não devem se refugiar na desculpa de que estão
sobrecarregados. Juízes e membros do ministério público, no Brasil, mui bem
remunerados, não têm horário de expediente controlado e nem sempre se ocupam
oito horas diárias com seus processos. Que se mude seu método de remuneração e
se pague por metas de produtividade, para vermos se os processos não andariam
mais rápidos! Não se duvide de que isso seria capaz de mudar a cultura de
trabalho e adequaria os agentes a orientações de instâncias superiores, até
como meio de cultivar a economia processual. Deixariam de ser luminares, para
efetivamente serem parte de uma engrenagem articulada que oferecesse aos
cidadãos segurança jurídica.
Salta,
porém, aos olhos que isso tudo só um governo legitimado pelo voto pode fazer,
pois o grupo que se assenhorou do poder não tem tutano nem estofo para
desafiar, com autoridade, o ambiente de sinecura no judiciário. Até porque
muitos deles não são melhores do que os assassinados, esperando, contudo, à
diferença deles, em liberdade e aboletados em cargos públicos de alto escalão,
que a justiça, em seu passo de cágado, os chame para pagar por seus pecados.
Ficarão, até serem removidos de sua situação de ilegitimidade, a arrumar
desculpas para seu fracasso, usando a pura negação da responsabilidade, a
sugestão aleatória de medidas decorativas, o preconceito social contra os
encarcerados ou o cinismo bandido de quem acha que os mortos não são santos.
* Subprocurador-Geral da
República e Professor Adjunto da Universidade de Brasília, foi Ministro de
Estado da Justiça no governo legítimo de Dilma Vana Rousseff.
http://www.brasil247.com/pt/colunistas/eugenioaragao/274043/Por-que-o-%E2%80%9Cgoverno%E2%80%9D-Temer-n%C3%A3o-tem-tutano-para-a-crise-penitenci%C3%A1ria.htm
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