A
desastrada resposta de Michel Temer, do ministro da Justiça Alexandre Moraes e
demais integrantes do governo sobre as causas e responsabilidades que levaram
ao massacre de 56 presos do Anísio Jobim, em Manaus, é compreensível como um
teorema para estudantes do ensino médio.
É
vergonhoso tentar tirar o corpo fora e tentar colocar a culpa em empresas
privadas que administram o sistema carcerário amazonense. Deixando de lado as
suspeitas óbvias de superfaturamento e outras tragédias. Cabe perguntar quem decidiu
privatizar o confinamento de seres humanos, que passou a ser administrado pelos
princípios do custo mínimo e lucro máximo.
Ao
contrário do que disse Temer, não estamos falando de um acidente. Mas de uma
ditadura que permanece, que se reconstrói e atualiza.
O
início e o fim do processo que produziu as 56 mortes encontra-se num projeto de
organização do Estado que rejeita os
preceitos essenciais das democracias, que consistem na defesa da presunção da
inocência e o direito de defesa, a partir da noção revolucionária -- criada no
fim do século XVIII -- de que todos são iguais perante a lei, qualquer que seja
sua fortuna, a cor da pele, o gênero.
Essa
visão política, essência de um projeto de Estado de longa duração, que ataca o
regime democrático num ponto fundamental -- os direitos do indivíduo -- foi alimentada por campanhas permanentes
de combate aos direitos humanos, impedindo, no final da ditadura militar, a
indispensável construção de um Estado
Democrático de Direito acessível ao conjunto dos brasileiros. Como sabem
aqueles que não tiveram a memória apodrecida pelas mentiras de conveniência
criadas mais tarde, o combate à uma ditadura de ferro que durou 21 anos teve
início nas denúncias da tortura, das execuções covardes e demais formas de violência
política produzidas pelo condomínio militar-empresarial que financiou e
dirigiu, inicialmente com recursos privados e organismos paralelos ao Estado, o
país do pau de arara e da cadeira do
dragão. De 1985 para cá o Brasil país mudou, escreveu uma Constituição
relativamente avançada, fez sete eleições diretas para presidente e conquistou
avanços que nem é preciso lembrar aqui. Mas o projeto anti-cidadão,
anti-democracia, uma herança colonial que teve o apogeu em quatro séculos de
escravidão, nunca foi derrotado, nem vencido. Nunca se abandonou a visão de uma
sociedade com duas classes de cidadãos, que deveriam ser mantidos em condições
desiguais na renda, nos direitos, no acesso a Justiça.Para a elite que governa
as terras descobertas por Cabral há mais de 500 anos, a supremacia sobre uma
maioria de brasileiros é parte de sua identidade profunda e imutável.
Em
tempos recentes, esse combate prosseguiu na forma de uma conspiração.
Escondida, pois implicava da defesa de crimes, envergonhada, pois implicava em
abençoar a tortura e toda violência contra cidadãos indefesos, mas permanente.
Mesmo
no subterrâneo, a resistência à democracia nunca deixou de agir, procurar
alianças, reforçar apoio. Seu ponto culminante é visível todas as noites, nas
periferias de grandes cidades, onde um documento chamado "auto de
resistência" serve para legalizar execuções de jovens pobres,
especialmente negros, pelas balas da Polícia Militar.
Percorremos
um longo percurso para chegar a isso, meus amigos. Em 1979, a resistência
anti-democrática protegeu os torturadores numa Lei de Anistia que perdoava
previamente todos os seus crimes -- e, em decisões que chegaram a nossos dias,
contou até com a generosidade do STF para jamais olhar para o passado. Em 1982,
depois da primeira derrota em urnas do regime militar, abriu-se uma luta feroz
contra os programas de direitos humanos que, sob inspiração de dom Paulo
Evaristo Arns, começam a ser implementados por determinados governos estaduais.
Com auxílio do mau jornalismo policial do rádio e da TV, que glorificava a
violência contra cidadãos sem pretos, pobres e, especialmente, sem dinheiro
para pagar advogado, governadores de Estado foram encurralados no esforço para enquadrar as Polícias Militares,
enclaves autoritários que nunca deixaram de bater continência para a hierarquia
militar -- e seguem assim nos dias de hoje. Em 1989, os veteranos do DOI-CODI
se uniram para montar armadilhas secretas na eleição presidencial, a primeira
pelo voto direto desde 1960. Eles
ajudaram, na reta final, a arrancar um punhado de votos que poderiam ter
auxiliado Luiz Inácio Lula da Silva num segundo turno de virada contra Fernando
Collor, forjando uma falsa ligação do PT com o sequestro do empresário Abílio
Diniz. Em 1992, os primeiros traços da chamada Nova Direita, aquela que 24 anos
mais tarde -- espaço demográfico de uma geração -- tomou posse das ruínas
apocalípticas do golpe de 31 de agosto, fez uma
aparição inesquecível na invasão e massacre de 111 mortos no Carandiru.
Foi ali que o PMDB das lutas democráticas assinou sua traição histórica e
perdeu toda possibilidade de um projeto nacional, tornando-se abrigo de várias
quadrilhas internas, regionalizadas como bandos em competição.
Sentado
na cadeira de Secretário de Segurança Pública, para fazer os trabalhos de
rescaldo e limpeza daquele episódio deprimente da história de um país, um
professor de Direito Constitucional apresentou-se como um dos gestores das
contra-reformas do novo período
histórico. Ele mesmo, Michel Temer.
Em
26 de setembro de 2016, ocorreu um fato mais do que simbólico, uma coincidência
definitiva. Enquanto Temer completava o quarto mês no Planalto, o Tribunal de
Justiça de São Paulo anulou todas as provas que poderiam condenar todos os 74
integrantes da Polícia Militar acusados no massacre. Quem diria?
O
professor Antonio Flavio Pierucci (1945-2012) disse. Em 1987, Pierucci publicou um artigo chamado "As bases da
Nova Direita". A partir de pesquisas junto a eleitores de São Paulo, ele
detectou o surgimento de uma direita civil -- engajada, militante, organizada
-- em torno da eleição de Jânio Quadros para a prefeitura, em 1985, e na
campanha de Paulo Maluf, em 1986. Com argúcia, Pierucci andou por bairros que, três décadas mais
tarde, iriam fornecer os grandes batalhões que foram a avenida Paulista carregar
bonecos infláveis de Lula e Dilma.
"Quer
vê-los tendo arrepios é pronunciar as palavras direitos humanos," escreveu
o professor, que registrava o nascimento da noção dos direitos humanos --
ligado inicialmente as denúncias de tortura contra presos políticos -- como uma
"inversão de valores", como coisa de "bandidos," em
prejuízo do "cidadão que trabalha." Ouvindo uma advogada que residia
na Mooca, três décadas atrás, ele captou uma visão que ajuda a entender uma
ideologia em construção:
"O bandido hoje em dia é endeusado, embora seja
assassino, estuprador, seja o diabo. Ele precisa tomar o banhozinho de sol, a
comida não está boa? precisa de champagne francês, precisa de mulher, essas
coisas todas no presídio. Quer dizer:
efetivamente ele não está sendo punido; está vivendo às nossas custas."
Publicado
pela revista Novos Estudos, do Centro Brasileiro de Análise de Planejamento
(Cebrap), o artigo de Pierucci reconhece outro ponto importante, que irá se
repetir nas agruras existenciais que marcam a difícil sobrevivência do governo
federal do Secretário de Segurança pós-Carandiru. Estamos falando da
dificuldade -- intransponível, dizem as pesquisas de opinião -- da equipe de
Henrique Meirelles para reunir apoio da população para um programa de reversão
de direitos sociais, desmanche do Estado e reforma da Previdência, bandeiras
que também circulavam naquele período de saída da ditadura. Já naquela época
verificava-se aquilo que foi confirmado em 2002, 2006, 2010 e 2014. Era
possível, para os candidatos conservadores, mobilizar seu eleitorado contra o
imaginário "champagne francês" dos bandidos. Mas era difícil
convencer a base popular onde estão os votos, mesmo a mais reacionária, a condenar os direitos sociais, os
investimentos na escola e na saúde. Ela exigia isso, cobrava com veemência --
como fez anos mais tarde, nos protestos de junho de 2013. Com todas as
distâncias determinadas pela conjuntura, operava-se, ao longo de nossa história
política, a arquitetura ideológica que chegaria a 2016, depois de passar pela
AP 470 e pela Lava Jato -- a criminalização do adversário político como
instrumento para ganhar votos e consumar ações políticas. O exercício parece
maquiavelismo calculado mas é mais do que isso. O ponto de partida foi a
criminalização de uma ideia -- os direitos do homem, instituídos pela Revolução
Francesa.
Reconhecendo
a incapacidade de vencer pelas ideias políticas que levam ao Estado
mínimo, rejeitadas por suas próprias
bases, Pierucci escreve que "a intolerância moral é o último trunfo"
que resta ao conservadorismo numa sociedade periférica em que o liberalismo
econômico não tem audiência de massa, não mobiliza o voto, não é bom de
palanque." O fim dessa história nós sabemos.
O
Carandiru e o massacre do Anísio Jobim estão no miolo do processo. Os programas
de encarceramento de massa que elevaram
a população carcerária em mais de 600% são as pérolas que se atiram aos porcos.
Num país de renda média inferior, onde o custo de manutenção de cada preso no
Anísio Jobim pode chegar a 5 000 reais
por mês -- corrupção e privatização à parte, muito superior a renda média do
brasileiro -- os presídios reservam a cada ser humano um ambiente
necessariamente indecente e sórdido. Bobagem falar em super-lotação, pois é um
projeto que decididamente não cabe no PIB brasileiro. Desconsiderando um
arrocho geral no padrão de vida da população, não haveria outro meio para
fechar a conta.
Nem
haveria motivo real, pois o encarceramento recorde é produto de penas agravadas
contra atos ilícitos que nem de longe representam um perigo real a sociedade.
Entre
o Carandiru e Anísio Jobim, há uma diferença de função e protagonismo. Naquele
ambiente em que a condição humana é submetida a um de seus testes mais
dramáticos -- o encarceramento -- o Estado bateu em retirada e lava as mãos. A
ausência de todo sentimento de empatia pelo sofrimento de quem é colocado à
margem do Direito leva em breve ao esquecimento.
Acrescentando
o caráter precário das investigações policiais e das decisões judiciais, as
prisões provisórias -- sem julgamento definitivo -- atingem 40% dos
prisioneiros, servindo como um atalho para esconder a incompetência da
apuração, a inoperância da Justiça, o caráter seletivo das sentenças e das
atenções de quem tem o poder de mando, como lembra o helicóptero com 400 quilos
de cocaína do senador aliado de Aécio Neves. Escondem, acima de tudo, a
realidade de que a liberdade deixou de ser um direito conquistado ao nascimento
para se transformar em privilégio.
Sentenças
cada vez duras servem ajudam a encobrir falta de respostas aos problemas reais
e consolidam o Estado Policial.
Alguma
dúvida?
http://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/273662/A-conspira%C3%A7%C3%A3o-contra-os-direitos-humanos.htm
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