Seria
mesmo o Liberalismo o maior inimigo do Fascismo?
Em
tempos nos quais o cinismo impera ao ponto de qualquer procedimento de inversão
da realidade ser utilizado para justificar ações convenientes, vem sendo
bastante difundida uma máxima cuja acepção crava que “o maior inimigo do
fascismo é o liberalismo”. No entanto, é uma pena para os desonestos
intelectuais de plantão, que há sempre a possibilidade dos fatos serem trazidos
à tona para desmistificarem tais falácias.
O Fascismo teve o
Liberalismo como berço
Comecemos
pela história de Vilfredo Pareto, economista liberal e sociólogo italiano de
origem francesa. Nascido em Paris, em meados do século XIX, Pareto foi inimigo
mortal de todo e qualquer protótipo de socialismo, contrário a qualquer forma
de intervencionismo no mercado e defensor da dominação das elites, além de ter
sido um dos teóricos que produziram a ideologia precursora do fascismo. É
possível que sua convicção na superioridade de uma classe de elite tenha
contribuído para a elevação do Fascismo na Itália.
Pareto
argumentou que a democracia era uma ilusão (da mesma forma que ultraliberais e
neoliberais dizem hoje) e que uma classe dominante sempre irá subsistir
enriquecendo-se cada vez mais, ou seja, como todo liberal, acreditava que as
desigualdades sociais faziam parte de uma ordem natural. Para ele, a
questão-chave era como ativamente agiam os governantes. Por esta razão, ele
reivindicou uma redução drástica do Estado e conceituou o regime de Benito
Mussolini como uma transição para esse Estado mínimo, de modo a libertar as
forças econômicas.
“Nos
primeiros anos de seu governo, Mussolini literalmente executou a política
prescrita por Pareto, destruindo a liberdade política. Mas, ao mesmo tempo,
substituindo a gestão estatal pela gestão privada, diminuindo os impostos sobre
a propriedade, favorecendo o desenvolvimento industrial e impondo uma educação
religiosa nos dogmas.” (BORKENAU, Franz. Pareto . Nova Iorque: John Wiley &
Sons, 1936. P. 18.)
É
verdade que Pareto considerou o triunfo de Mussolini como uma confirmação de
algumas das suas ideias, especialmente pelo fato do líder da Itália Fascista
demonstrar a importância da força e compartilhar seu desprezo por um sistema
igualitário. Posteriormente, ele aceitou uma nomeação “real” para o senado
italiano de Mussolini e morreu menos de um ano após a instauração do novo
regime. Contudo, a importância dele para o fascismo foi equivalente a de Karl
Marx para o socialismo científico.
O Liberalismo como
agenda das políticas econômicas de Mussolini
De
1922 a 1925, o regime de Mussolini seguiu a política econômica do
laissez-faire, sob o comando de um ministro de finanças liberal, Alberto De
Stefani. O ministro reduziu impostos, regulações, restrições comerciais e
permitiu que empresas competissem umas com as outras.
“Depois
da nomeação de Mussolini como primeiro-ministro, os industriais sentiram-se
ainda mais recompensados com a designação de Alberto De Stefani, um
intransigente liberal, como ministro das Finanças – para alegria de Luigi
Einaudi ( membro do Partido Liberal Italiano). De Stefani reduziu impostos,
aboliu isenções fiscais que beneficiavam contribuintes de baixa renda,
facilitou as transações com ações e a evasão fiscal reintroduzindo o animado
(abolido por Giolitti), eliminou a regulamentação dos alugueis, privatizou os
seguros de vida (introduzidos por Giolitti) e transferiu a gestão do sistema de
telefonia para o setor privado.” (SASSOON, Donald. Mussolini e a ascensão do
Fascismo. Rio de Janeiro: Agir, 2009. P. 120)
Ademais,
a ascensão do Fascismo (tal como a do nazismo de Adolf Hitler na Alemanha) só
foi possível com a colaboração e o suporte financeiro de grandes corporações
ainda hoje poderosas: BMW, Fiat, IG Farben (Bayer), Volkswagen, Siemens, IBM,
Chase Bank, Allianz, entre outros grupos de mídia, que financiaram esses
regimes com o objetivo de frear o avanço do socialismo soviético na Europa.
“Os
industriais ainda não confiavam em Mussolini, pois sabiam que fora socialista e
ainda usava uma retórica socialista. Mussolini deu-se conta disto, tratando, em
1921, de adaptar sua linguagem para o liberalismo econômico e abandonar os
princípios de intervencionismo estatal até então apregoados por ele. Em 1922,
para todos os efeitos, aderira plenamente ao liberalismo econômico, sendo
elogiado por um intransigente liberal em matéria econômica como Luigi Einaudi,
que no dia 7 de junho de 1922 acusou o prefeito de Bolonha de bolchevismo por
tentar conter a violência fascista.”
(…)
“Antes
de 1922, os industriais ignoravam o fascismo ou se mostravam indiferentes. Ao
longo de 1922, mantiveram-se basicamente calados sobre o advento do fascismo.
Era quase como se tivessem medo de tomar partido ou não conseguissem reunir
coragem para apoiar abertamente o fascismo. À medida que os fascistas se
fortaleciam, os industriais passaram a simpatizar com eles, como tantos outros
que até recentemente defendiam a importância da democracia. No momento em que
Mussolini foi designado primeiro-ministro, a maioria dos capitalistas passou a
apoia-lo praticamente sem reservas. No dia 29 de outubro de 1922, a
Confindustria [p. 119] aprovou de maneira entusiasmada o novo governo (antes
mesmo que Mussolini aceitasse formalmente a nomeação).”
(…)
“Isso
não quer dizer que os industriais (ou, antes, sua associação, a Confindustria)
tivessem se tornado pró-fascistas. Se dependesse de sua preferência, o novo
governo seria chefiado por um liberal. Quer dizer apenas que eles também
estavam convencidos da generalizada convicção de que não só não deviam ser tomadas
iniciativas contra os fascistas, como era necessário entrar em acordo com eles,
pois haviam se tornado a principal força anti-socialista do país.”
(SASSOON,
Donald. Mussolini e a ascensão do Fascismo. Rio de Janeiro: Agir, 2009. P. 115,
116, 118 e 119)
No
dia 20 de setembro de 1922, em discurso pronunciado na cidade de Udine,
Mussolini uma vez declarou:
“Queremos
retirar do Estado todos os seus poderes econômicos. Basta de ferroviários
estatais, carteiros estatais, seguradores estatais. Basta deste Estado mantido
à custa dos contribuintes e pondo em risco as exauridas finanças do Estado
italiano”.
No
filme Fascismo Inc., o cineasta Chatzistefanou esmiúça a também estreita
colaboração de industriais e banqueiros com os nazistas para perseguir e destruir
o sindicalismo e os socialistas, a quem chamavam de “terroristas”. Detalhe:
Hitler extinguiu o Partido Comunista alemão um dia depois de tomar posse.
Teóricos neoliberais
justificaram e legitimaram o Nazifascismo
O
apoio ao fascismo não se limitava aos liberais do início do século XX. Os
liberais neoclássicos que, deram origem à corrente ideológica que se tornou
hegemônica hoje, o neoliberalismo, também defendiam o fascismo e sua variante
nazista, como projetos políticos necessários para manter a ordem capitalista.
É
o que podemos conferir nesta declaração de Friedrich Hayek, membro da Escola
Austríaca, sobre a sua impressão do
nazismo:
“É
importante recordar que, muito antes de 1933, a Alemanha alcançara um estágio
em que não lhe restava senão ser governada de forma ditatorial. Ninguém
duvidava então de que a democracia entrara em colapso, ao menos por certo
tempo, e de que democratas sinceros como Brüning eram tão incapazes de governar
democraticamente como o eram Schleicher ou von Papen. Hitler não precisou
destruir a democracia; limitou-se a tirar proveito da sua decadência e no
momento crítico conseguiu o apoio de muitos que, embora o detestassem,
consideravam-no o único homem bastante forte para pôr as coisas em marcha.”
(HAYEK,
Friedrich. O caminho da servidão. 5. ed. Rio de Janeiro: Instituto Liberal,
1990. P. 90)
A
complacência de teóricos liberais neoclássicos a respeito do Fascismo prossegue
com Ludwig von Mises. Outro ícone da Escola Austríaca, Mises atuou como conselheiro
econômico do governo fascista de Engelbert Dollfuss na Áustria. Em seu livro
“Liberalismo — Segundo a tradição clássica”, ele reitera que o Fascismo foi um
movimento político que teve como um de seus principais objetivos o combate ao
bolchevismo.
“As
ações dos fascistas e de outros partidos que lhe correspondiam eram reações
emocionais, evocadas pela indignação com as ações perpetradas pelos
bolcheviques e comunistas. Ao passar o primeiro acesso de ódio, a política por
eles adotada toma um curso mais moderado e, provavelmente, será ainda mais
moderado com o passar do tempo.
Tal
moderação resulta do fato de que os pontos de vista tradicionais do liberalismo
continuam a exercer influência inconsciente sobre os fascistas.”
(…)
“Ora,
não se pode negar que o único modo pelo qual alguém possa oferecer resistência
efetiva contra assaltos violentos seja por meio da violência. Contra as armas
dos bolcheviques, devem-se utilizar, em represália, as mesmas armas, e seria um
erro mostrar fraqueza ante os assassinos. Jamais um liberal colocou isto em
questão.”
(VON
MISES, Ludwig. Liberalismo – Segundo a Tradição Clássica / Ludwig von Mises. —
São Paulo : Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010. P. 75 e 76)
Nesta
obra, Mises também não hesitou em legitimar, elogiar e, até mesmo, enaltecer o
Fascismo.
“Não
se pode negar que o fascismo e movimentos semelhantes, visando ao
estabelecimento de ditaduras, estejam cheios das melhores intenções e que sua
intervenção, até o momento, salvou a civilização europeia. O mérito que, por
isso, o fascismo obteve para si estará inscrito na história. Porém, embora sua
política tenha propiciado salvação momentânea, não é do tipo que possa prometer
sucesso continuado. O fascismo constitui um expediente de emergência.”
A origem totalitária do
Neoliberalismo
O
conluio entre liberais e fascistas no combate ao socialismo não para por aí.
Antes do general de extrema-direita Augusto Pinochet liderar o golpe militar
chileno que destituiu, violentamente do poder, o presidente socialista Salvador
Allende – com aprovação da burguesia e apoio financeiro dos Estados Unidos -,
surgiu em alguns setores ligados à política externa dos EUA e da Grã-Bretanha
um movimento cuja intenção era encaixar os governos desenvolvimentistas do
Terceiro Mundo na lógica binária da Guerra Fria. Para os falcões que enxergavam
o mundo apenas de forma bipolar, o nacionalismo seria o primeiro passo rumo ao
totalitarismo comunista. Portanto, erradicar o desenvolvimentismo no Cone Sul,
que era onde ele havia fincado raízes mais profundamente, tornara-se uma meta.
Agências como a Administração para a Cooperação Internacional dos Estados
Unidos (mais tarde USAID) estavam engajadas em combater o desenvolvimentismo e
o marxismo no plano intelectual, bem como suas influências sobre a economia
latino-americana.
No
que tange ao Chile, o plano consistia em o Imperialismo Ianque financiar
estudantes chilenos para aprender economia na mais reconhecidamente
anti-comunista escola do mundo – a Universidade de Chicago – de forma a
combater ideologicamente as ideias de economistas “vermelhos”
latino-americanos, tais como Raúl Prebisch. Naquela universidade, predominava o
pensamento do economista Milton Friedman, um dos expoentes da Escola
Monetarista e ferrenho defensor da liberdade irrestrita de mercado e do
laissez-faire. Os Chicago Boys se tornaram verdadeiros embaixadores de ideias
econômicas que na América Latina ficaram conhecidas como “neoliberalismo”.
Muitos deles aderiram ao movimento fascista chileno Pátria e Liberdade. Às
vésperas do golpe, elaboraram um programa econômico que nortearia as ações da
junta militar. Tal programa, um calhamaço de quinhentas páginas, ficou
conhecido como “O Tijolo”. Dos dez autores de “O Tijolo”, oito eram Chicago
Boys. O teor desse documento era muito similar ao livro de Friedman
“Capitalismo e Liberdade” e propunha, dentre outras coisas, privatizações,
desregulamentação e cortes nos gastos sociais, a clássica tríade do livre
mercado.
Em
princípio, as ideias dos Chicago Boys não encontraram campo fértil no Chile,
como atestou a vitória da coalizão Unidade Popular em 1970. Só depois do golpe
de Estado foi possível pôr em prática suas ideias. Orlando Letelier certa vez
afirmou que “os ‘Garotos de Chicago’, como são conhecidos no Chile, convenceram
os generais de que estavam preparados para suprir a brutalidade dos militares
com os ativos intelectuais que possuíam”.
De
fato, no 11 de setembro de 1973, a caserna deu as mãos à austeridade econômica
para dar origem a uma das mais violentas ditaduras da história, que também
contou com a assessoria e apoio aberto de Friedrich Hayek, cujo maior exemplo
de sua aprovação ao governo de Pinochet pode ser extraído da vergonhosa
entrevista que concedeu ao jornal chileno EL Mercúrio em abril de 1981. Depois
de apoiar o nefasto regime totalitário, justifica: “Uma sociedade livre requer
certas morais que em última instância se reduzem à manutenção das vidas; não à
manutenção de todas as vidas, porque poderia ser necessário sacrificar vidas
individuais para preservar um número maior de vidas. Portanto, as únicas normas
morais são as que levam ao ‘cálculo de vidas’: a propriedade e o contrato”.
Naquele momento, em que o Hayek dava tranquilamente sua entrevista, muitas vidas
estavam sendo sacrificadas nos porões da ditadura fascista do general Pinochet.
Assim,
ao contrário do que muitos pensam, a primeira experiência neoliberal não se deu
na Inglaterra de Thatcher ou nos Estados Unidos de Reagan. Nasceu, isso sim,
gêmea de um sangrento regime militar. Em 1977, de quebra, Pinochet ainda
entregou o Ministério das Finanças ao chicago boy Sérgio de Castro.
Considerações finais
A
essa altura do texto já fica fácil compreender por que:
–
o primeiro bloco de privatizações aconteceu na primeira nação fascista que o
mundo conheceu, a Itália, nos anos 1920s (a publicação inglesa The Economist
cunhou o termo “privatização” para denominar a política econômica fascista);
–
o segundo bloco de privatizações em massa (que inclusive superou a italiana
fascista) ocorreu na segunda, Alemanha nazista, nos anos 1930s; e
–
após nascerem em berço fascista durante os anos que antecederam a 2ª Guerra
Mundial, as privatizações voltaram a aparecer nos anos 1970s, no governo
fascista do ditador chileno Augusto Pinochet.
Entretanto,
não pretendemos aqui colocar um sinal de igualdade entre Liberalismo e
Fascismo. Porém, de fato, o liberalismo não se constituiu em um entrave ao
fascismo nascente. Pelo contrário, ele, inclusive, forneceu as justificativas
ideológicas para sua expansão europeia – e mais tarde a sul-americana.
A
História comprova-nos que Fascismo e Liberalismo podem atuar em consonância.
Ora, se eles não são iguais, tampouco existe entre eles uma muralha
intransponível. Isso se explica, fundamentalmente, nas alianças feitas entre
essas ideologias sempre quando lhes foi conveniente, sobretudo – como é,
inclusive, admitido por teóricos liberais – no propósito do combate a seus
maiores inimigos comuns: os sociais-democratas, socialistas, comunistas,
bolcheviques, marxistas… Isto é, todos aqueles que tinham uma visão crítica do
capitalismo, seja propondo sua superação por meios revolucionários ou mesmo
propondo políticas reformistas.
Luan Toja
Fontes:
• UFCG – Bio de Vilfredo
Pareto
• Wikipédia – Vilfredo
Pareto
• UFSC – AUTORITARISMO E
CHOQUE
• Jacobin – Capitalism
and Nazism
• USP – A formulação do
pensamento neoliberal na América Latina em perspectiva comparada: o pensamento
econômico de Eugênio Gudin (Brasil), Martinez de Hoz (Argentina) e Sergio de
Castro (Chile) (PDF)
• Cambridge Journal of
Economics – The first privatisation: selling SOEs and privatising public
monopolies in Fascist Italy (1922–1925)
• Livro: Pareto e il
fascismo (Autor: Giovanni Barbieri)
http://voyager1.net/historia/pare-de-achar-que-liberalismo-e-fascismo-sao-opostos/
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