''Considerando
que a contribuição previdenciária do trabalhador foi desviada da sua exclusiva
finalidade constitucional para pagar juros de dívida e outras despesas
estranhas, trata-se de um confisco. Por conseguinte, essa proposta de emenda
constitucional [da reforma da Previdência Social] é flagrantemente
inconstitucional, pois afronta o artigo 150, inciso IV, da Constituição
Federal, que veda a utilização de tributo com efeito de confisco.'' Essa é a
análise de Marcelo Bueno Pallone, juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 15a
Região. Com formação em direito e em administração de empresas, ele tem
participado da discussão pública sobre a reforma, trazendo uma análise que
contesta a visão geral sobre as causas e consequências da reforma.
''A
partir do momento que se apropria da contribuição da sociedade, instituída com
a exclusiva finalidade de custear a seguridade social, para outros fins,
obrigando com isso o trabalhador a ter que contribuir durante 49 anos de sua
vida laboral ativa sem receber a devida e justa contrapartida, estamos diante
de inegável exorbitância do poder de tributar do Estado'', afirma.
''Não
basta a singela alegação de que, nos últimos anos a expectativa de vida
aumentou e, com ela, o déficit previdenciário, sem uma demonstração inequívoca
de que isso ocorreu ao longo das muitas décadas de contribuições. Não basta,
tampouco, a simples, discutível e, a nosso ver, falaciosa pregação ao
trabalhador no sentido de que, se não aceitar trabalhar até os 65 anos e
contribuir durante 49, estará condenando as futuras gerações a não se
aposentarem.''
Segundo
Pallone, corre-se o risco de o tiro sair pela culatra: ''Nada improvável que o
cidadão tenha a falsa e perigosa impressão de ser melhor trabalhar na
informalidade do que contribuir à Previdência Social''. Para ele, a reforma
pode levar ao cidadão a procurar planos de Previdência Privada, saindo do
sistema público.
Marcelo Pallone
concedeu uma entrevista a este blog:
Blog
– O governo federal enviou uma proposta de reforma da Previdência para o
Congresso Nacional. Nela, o tempo de contribuição para que o trabalhador tenha
direito à aposentadoria integral será de 49 anos. Essa quantidade de anos é
realmente necessária?
Marcelo
Pallone – Não. Há muitos dados mal explicados ou pouco debatidos na tese
propalada por muitos de que o sistema previdenciário no Brasil é deficitário e
tal déficit se agrava à medida que aumenta a expectativa de vida do cidadão. É
verdade que o aumento da longevidade tem por resultado o maior consumo dos
recursos arrecadados pela previdência para pagar os benefícios. As pessoas,
vivendo mais tempo na condição de aposentadas, certamente demandarão mais
recursos e, não havendo equilíbrio financeiro e atuarial, em dado momento tais
recursos podem não ser suficientes.
Mas
esse dogma pregado por muitos como verdade absoluta é bastante contestável.
Para se ter uma ideia, em uma conta rasa, um trabalhador que durante 35 anos
contribuiu à previdência com recolhimento de 30% sobre um salário mínimo, que é
a contribuição média do regime geral (10% descontados do seu salário somados a
outros 20% que são recolhidos pelo seu empregador), se em vez disso guardasse
essa contribuição em uma aplicação com rendimento líquido médio mensal, já
descontada a inflação, de 0,5% (como a poupança), teria amealhado ao fim desse
período o equivalente a 429 vezes o valor do salário mínimo.
Mantendo
esse montante na mesma aplicação, teria uma renda mensal equivalente a 2,14
salários mínimos, ou seja, poderia se manter sem nada mais contribuir (ou
trabalhar), não por 10 ou 20 anos, mas indefinidamente, auferindo o mesmo
salário pelo qual sempre contribuiu e ainda sobraria outro 1,14 salário mínimo
para custear o mesmo ganho a outro trabalhador que nunca contribuiu, com alguma
sobra. Tudo isso sem nada retirar do montante de 429 salários mínimos que
acumulou. Se considerarmos tal contribuição durante os 49 anos dessa proposta,
o montante acumulado seria 1.072 salários mínimos, proporcionando um rendimento
mensal de 5,36 salários mínimos.
Trata-se
obviamente, repita-se, de uma conta grossa, que não leva em consideração muitas
variáveis que poderiam ocorrer, como aposentadorias e pensões precoces por
morte ou invalidez, mas a sobra de fundos é tão grande que desafia pelo menos
uma análise e resposta mais detalhada dos que defendem a ideia absoluta de
déficit previdenciário.
Mas
o governo federal utiliza todo o recurso arrecadado em nome da Previdência para
essa finalidade?
Essa
é uma das várias questões obscuras que devem ser debatidas e esclarecidas pelos
que defendem a existência de déficit previdenciário e querem obrigar o
trabalhador a contribuir por 49 anos. A resposta à pergunta é não. O governo
federal desvia para pagamento de outras variadas despesas, mormente juros,
amortizações e outros encargos da dívida pública, recursos arrecadados pela
seguridade social, que deveriam ser destinados unicamente a financiar a saúde,
a Previdência e a assistência social, por força dos artigos 194 e 195 da
Constituição Federal. Faz isso, mas não informa à sociedade quanto desvia, não
só da Previdência, mas de toda a seguridade social para outros fins, pois não
cumpre o artigo 165, parágrafo 5º, inciso III, que exige a elaboração de um
orçamento exclusivo e específico da seguridade social. Em vez disso, o governo
aglutina num só demonstrativo os dois orçamentos, Fiscal e o da Seguridade, de
modo que são misturadas ambas as receitas e despesas, incluindo-se aí juros e
encargos da dívida pública.
Estudos
de renomados economistas e teses acadêmicas demonstram que durante muitos anos
receitas exclusivas da seguridade social, que resultariam em superávits se
aplicadas fossem unicamente no financiamento da saúde, Previdência e
assistência social, foram destinados ao pagamento de outras despesas fiscais,
juros da dívida inclusive.
Pelo
o que está dizendo, isso não seria considerado um confisco?
Considerando
que a contribuição previdenciária do trabalhador foi desviada da sua exclusiva
finalidade constitucional para pagar juros de dívida e outras despesas
estranhas, a resposta é sim. Trata-se de um confisco. Por conseguinte, ao nosso
modesto juízo, essa proposta de emenda constitucional [da reforma da
Previdência] é flagrantemente inconstitucional, pois afronta o artigo 150 da
Constituição Federal, que veda a utilização de tributo com efeito de confisco.
O
sistema previdenciário brasileiro não funciona como uma previdência privada, em
que uma pessoa economiza para a sua própria aposentadoria, mas todos da ativa
contribuem para manter todos os inativos. O governo diz que esse sistema vem
apresentando déficits. A culpa é do sistema?
É
verdade que no sistema previdenciário brasileiro todos da ativa contribuem para
manter os inativos. Chamam-no de regime ou sistema de repartição simples. O
raciocínio que já foi apresentado, no qual se alcançariam 429 salários ao cabo
de 35 anos de contribuição, funcionaria com exatidão se cada segurado
contribuísse para si próprio apenas, o chamado sistema de capitalização, sem
custear outros que contribuem menos, como trabalhadores rurais, aposentadorias
e pensões precoces.
De
todo modo, o governo federal não apresenta com a necessária transparência
quanto se acumulou de superávit ao longo das décadas e quanto se desviou da
seguridade para outros fins. A seguridade social não teve início na presente
década. O sistema universal de cobertura atual remonta a Constituição de 1988 e
a Previdência pública existe pelo menos desde a década de 60. Ao longo de
muitos anos a seguridade social apresentou consideráveis superávits e este
saldo, que ninguém informa com transparência, só poderia ser utilizado para custear
a seguridade. É assim que asseveram não só os já citados artigos 194 e 195, mas
igualmente o artigo 201 da Constituição Federal, quando exige a organização da
Previdência sob critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial.
Não
abordamos sequer outras fontes de financiamento da seguridade, como as receitas
do Cofins, CSSL, CPMF em algumas épocas, concurso de loterias. Somadas tais
receitas, que igualmente devem custear exclusivamente a seguridade, certamente
o sistema, do modo como funciona hoje, é superavitário e, repetimos, muitos
estudos demonstram isso.
Considerando
que a idade mínima de aposentadoria para os homens será de 65 anos, a pessoa
terá que trabalhar – ininterruptamente – dos 16 aos 65 para garantir
aposentadoria integral. O que isso vai significar para categorias de
trabalhadores de atividades em que os corpos se degradam em uma velocidade mais
rápida que o resto da população, como cortadores de cana e operários da
construção civil?
Estamos
sem dúvida diante de uma das mais perversas consequências dessa reforma
previdenciária proposta. Trabalhadores em atividades braçais ou que exigem
grande esforço físico como os citados na pergunta certamente têm expectativa de
vida muito menor do que a média da população e, na maioria dos casos, começam
muito jovens a vida laboral. Logo, trabalharão e contribuirão por mais tempo e
alguns deles sequer viverão tempo suficiente para usufruir a aposentadoria para
a qual tanto contribuíram.
No
máximo deixarão para seus cônjuges sobreviventes o direito à pensão por morte,
que mesmo assim não será integral. Nesses casos o efeito de verdadeiro confisco
da contribuição previdenciária se mostra ainda mais nítido e evidente.
Então,
o que o governo federal está ignorando nessa discussão?
A
nosso sentir ignora vários dispositivos e princípios pétreos da Constituição
Federal, como a dignidade da pessoa humana, que está no artigo 1º; a construção
de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza, da
marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, presente no
artigo 2º. Ignora ainda, direta e frontalmente, a vedação contida no artigo
150, de utilizar tributo com efeito de confisco, pois a partir do momento que
se apropria da contribuição da sociedade, instituída com a exclusiva finalidade
de custear a seguridade social, para outros fins, obrigando com isso o
trabalhador a ter que contribuir durante 49 anos de sua vida laboral ativa sem
receber a devida e justa contrapartida, estamos diante de inegável exorbitância
do poder de tributar do Estado.
Não
basta, portanto, a singela alegação de que, nos últimos anos a expectativa de
vida aumentou e, com ela, o déficit previdenciário, sem uma demonstração
inequívoca de que isso ocorreu ao longo das muitas décadas de contribuições.
Não basta, tampouco, a simples, discutível e, a nosso ver, falaciosa pregação
ao trabalhador no sentido de que, se não aceitar trabalhar até os 65 anos e
contribuir durante 49, estará condenando as futuras gerações a não se
aposentarem. Pelo menos, não é leal essa pregação sem esclarecer ao trabalhador
que se em vez de contribuir à previdência oficial, guardar esse dinheiro em uma
caderneta de poupança, terá ao final, não de 49 anos, mas dos atuais 35 uma
quantia que certamente proverá com sobras a sua velhice, independentemente de
quantos anos viver.
Corre-se
o risco, com isso, de “o tiro sair pela culatra”, como diz a sabedoria popular,
porquanto nada improvável que o cidadão tenha a falsa e perigosa impressão de
ser melhor trabalhar na informalidade do que contribuir à Previdência Social.
Ainda, quiçá, pretenda-se com essa proposta de reforma impelir o cidadão a
procurar planos de Previdência privada e a total falta de transparência e amplo
debate sobre o tema leva-nos a acreditar ser esta última hipótese a real
intenção dos que apregoam o caos previdenciário.
http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2016/12/08/reforma-da-previdencia-e-confisco-e-pode-empurrar-a-previdencia-privada/
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