quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

REFORMA DA PREVIDÊNCIA É CONFISCO E PODE EMPURRAR À PREVIDÊNCIA PRIVADA. Por Leonardo Sakamoto

''Considerando que a contribuição previdenciária do trabalhador foi desviada da sua exclusiva finalidade constitucional para pagar juros de dívida e outras despesas estranhas, trata-se de um confisco. Por conseguinte, essa proposta de emenda constitucional [da reforma da Previdência Social] é flagrantemente inconstitucional, pois afronta o artigo 150, inciso IV, da Constituição Federal, que veda a utilização de tributo com efeito de confisco.'' Essa é a análise de Marcelo Bueno Pallone, juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 15a Região. Com formação em direito e em administração de empresas, ele tem participado da discussão pública sobre a reforma, trazendo uma análise que contesta a visão geral sobre as causas e consequências da reforma.

''A partir do momento que se apropria da contribuição da sociedade, instituída com a exclusiva finalidade de custear a seguridade social, para outros fins, obrigando com isso o trabalhador a ter que contribuir durante 49 anos de sua vida laboral ativa sem receber a devida e justa contrapartida, estamos diante de inegável exorbitância do poder de tributar do Estado'', afirma.

''Não basta a singela alegação de que, nos últimos anos a expectativa de vida aumentou e, com ela, o déficit previdenciário, sem uma demonstração inequívoca de que isso ocorreu ao longo das muitas décadas de contribuições. Não basta, tampouco, a simples, discutível e, a nosso ver, falaciosa pregação ao trabalhador no sentido de que, se não aceitar trabalhar até os 65 anos e contribuir durante 49, estará condenando as futuras gerações a não se aposentarem.''

Segundo Pallone, corre-se o risco de o tiro sair pela culatra: ''Nada improvável que o cidadão tenha a falsa e perigosa impressão de ser melhor trabalhar na informalidade do que contribuir à Previdência Social''. Para ele, a reforma pode levar ao cidadão a procurar planos de Previdência Privada, saindo do sistema público.

Marcelo Pallone concedeu uma entrevista a este blog:

Blog – O governo federal enviou uma proposta de reforma da Previdência para o Congresso Nacional. Nela, o tempo de contribuição para que o trabalhador tenha direito à aposentadoria integral será de 49 anos. Essa quantidade de anos é realmente necessária?
Marcelo Pallone – Não. Há muitos dados mal explicados ou pouco debatidos na tese propalada por muitos de que o sistema previdenciário no Brasil é deficitário e tal déficit se agrava à medida que aumenta a expectativa de vida do cidadão. É verdade que o aumento da longevidade tem por resultado o maior consumo dos recursos arrecadados pela previdência para pagar os benefícios. As pessoas, vivendo mais tempo na condição de aposentadas, certamente demandarão mais recursos e, não havendo equilíbrio financeiro e atuarial, em dado momento tais recursos podem não ser suficientes.

Mas esse dogma pregado por muitos como verdade absoluta é bastante contestável. Para se ter uma ideia, em uma conta rasa, um trabalhador que durante 35 anos contribuiu à previdência com recolhimento de 30% sobre um salário mínimo, que é a contribuição média do regime geral (10% descontados do seu salário somados a outros 20% que são recolhidos pelo seu empregador), se em vez disso guardasse essa contribuição em uma aplicação com rendimento líquido médio mensal, já descontada a inflação, de 0,5% (como a poupança), teria amealhado ao fim desse período o equivalente a 429 vezes o valor do salário mínimo.

Mantendo esse montante na mesma aplicação, teria uma renda mensal equivalente a 2,14 salários mínimos, ou seja, poderia se manter sem nada mais contribuir (ou trabalhar), não por 10 ou 20 anos, mas indefinidamente, auferindo o mesmo salário pelo qual sempre contribuiu e ainda sobraria outro 1,14 salário mínimo para custear o mesmo ganho a outro trabalhador que nunca contribuiu, com alguma sobra. Tudo isso sem nada retirar do montante de 429 salários mínimos que acumulou. Se considerarmos tal contribuição durante os 49 anos dessa proposta, o montante acumulado seria 1.072 salários mínimos, proporcionando um rendimento mensal de 5,36 salários mínimos.

Trata-se obviamente, repita-se, de uma conta grossa, que não leva em consideração muitas variáveis que poderiam ocorrer, como aposentadorias e pensões precoces por morte ou invalidez, mas a sobra de fundos é tão grande que desafia pelo menos uma análise e resposta mais detalhada dos que defendem a ideia absoluta de déficit previdenciário.

Mas o governo federal utiliza todo o recurso arrecadado em nome da Previdência para essa finalidade?
Essa é uma das várias questões obscuras que devem ser debatidas e esclarecidas pelos que defendem a existência de déficit previdenciário e querem obrigar o trabalhador a contribuir por 49 anos. A resposta à pergunta é não. O governo federal desvia para pagamento de outras variadas despesas, mormente juros, amortizações e outros encargos da dívida pública, recursos arrecadados pela seguridade social, que deveriam ser destinados unicamente a financiar a saúde, a Previdência e a assistência social, por força dos artigos 194 e 195 da Constituição Federal. Faz isso, mas não informa à sociedade quanto desvia, não só da Previdência, mas de toda a seguridade social para outros fins, pois não cumpre o artigo 165, parágrafo 5º, inciso III, que exige a elaboração de um orçamento exclusivo e específico da seguridade social. Em vez disso, o governo aglutina num só demonstrativo os dois orçamentos, Fiscal e o da Seguridade, de modo que são misturadas ambas as receitas e despesas, incluindo-se aí juros e encargos da dívida pública.

Estudos de renomados economistas e teses acadêmicas demonstram que durante muitos anos receitas exclusivas da seguridade social, que resultariam em superávits se aplicadas fossem unicamente no financiamento da saúde, Previdência e assistência social, foram destinados ao pagamento de outras despesas fiscais, juros da dívida inclusive.

Pelo o que está dizendo, isso não seria considerado um confisco?
Considerando que a contribuição previdenciária do trabalhador foi desviada da sua exclusiva finalidade constitucional para pagar juros de dívida e outras despesas estranhas, a resposta é sim. Trata-se de um confisco. Por conseguinte, ao nosso modesto juízo, essa proposta de emenda constitucional [da reforma da Previdência] é flagrantemente inconstitucional, pois afronta o artigo 150 da Constituição Federal, que veda a utilização de tributo com efeito de confisco.

O sistema previdenciário brasileiro não funciona como uma previdência privada, em que uma pessoa economiza para a sua própria aposentadoria, mas todos da ativa contribuem para manter todos os inativos. O governo diz que esse sistema vem apresentando déficits. A culpa é do sistema?
É verdade que no sistema previdenciário brasileiro todos da ativa contribuem para manter os inativos. Chamam-no de regime ou sistema de repartição simples. O raciocínio que já foi apresentado, no qual se alcançariam 429 salários ao cabo de 35 anos de contribuição, funcionaria com exatidão se cada segurado contribuísse para si próprio apenas, o chamado sistema de capitalização, sem custear outros que contribuem menos, como trabalhadores rurais, aposentadorias e pensões precoces.

De todo modo, o governo federal não apresenta com a necessária transparência quanto se acumulou de superávit ao longo das décadas e quanto se desviou da seguridade para outros fins. A seguridade social não teve início na presente década. O sistema universal de cobertura atual remonta a Constituição de 1988 e a Previdência pública existe pelo menos desde a década de 60. Ao longo de muitos anos a seguridade social apresentou consideráveis superávits e este saldo, que ninguém informa com transparência, só poderia ser utilizado para custear a seguridade. É assim que asseveram não só os já citados artigos 194 e 195, mas igualmente o artigo 201 da Constituição Federal, quando exige a organização da Previdência sob critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial.

Não abordamos sequer outras fontes de financiamento da seguridade, como as receitas do Cofins, CSSL, CPMF em algumas épocas, concurso de loterias. Somadas tais receitas, que igualmente devem custear exclusivamente a seguridade, certamente o sistema, do modo como funciona hoje, é superavitário e, repetimos, muitos estudos demonstram isso.

Considerando que a idade mínima de aposentadoria para os homens será de 65 anos, a pessoa terá que trabalhar – ininterruptamente – dos 16 aos 65 para garantir aposentadoria integral. O que isso vai significar para categorias de trabalhadores de atividades em que os corpos se degradam em uma velocidade mais rápida que o resto da população, como cortadores de cana e operários da construção civil?
Estamos sem dúvida diante de uma das mais perversas consequências dessa reforma previdenciária proposta. Trabalhadores em atividades braçais ou que exigem grande esforço físico como os citados na pergunta certamente têm expectativa de vida muito menor do que a média da população e, na maioria dos casos, começam muito jovens a vida laboral. Logo, trabalharão e contribuirão por mais tempo e alguns deles sequer viverão tempo suficiente para usufruir a aposentadoria para a qual tanto contribuíram.

No máximo deixarão para seus cônjuges sobreviventes o direito à pensão por morte, que mesmo assim não será integral. Nesses casos o efeito de verdadeiro confisco da contribuição previdenciária se mostra ainda mais nítido e evidente.

Então, o que o governo federal está ignorando nessa discussão?
A nosso sentir ignora vários dispositivos e princípios pétreos da Constituição Federal, como a dignidade da pessoa humana, que está no artigo 1º; a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza, da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, presente no artigo 2º. Ignora ainda, direta e frontalmente, a vedação contida no artigo 150, de utilizar tributo com efeito de confisco, pois a partir do momento que se apropria da contribuição da sociedade, instituída com a exclusiva finalidade de custear a seguridade social, para outros fins, obrigando com isso o trabalhador a ter que contribuir durante 49 anos de sua vida laboral ativa sem receber a devida e justa contrapartida, estamos diante de inegável exorbitância do poder de tributar do Estado.

Não basta, portanto, a singela alegação de que, nos últimos anos a expectativa de vida aumentou e, com ela, o déficit previdenciário, sem uma demonstração inequívoca de que isso ocorreu ao longo das muitas décadas de contribuições. Não basta, tampouco, a simples, discutível e, a nosso ver, falaciosa pregação ao trabalhador no sentido de que, se não aceitar trabalhar até os 65 anos e contribuir durante 49, estará condenando as futuras gerações a não se aposentarem. Pelo menos, não é leal essa pregação sem esclarecer ao trabalhador que se em vez de contribuir à previdência oficial, guardar esse dinheiro em uma caderneta de poupança, terá ao final, não de 49 anos, mas dos atuais 35 uma quantia que certamente proverá com sobras a sua velhice, independentemente de quantos anos viver.

Corre-se o risco, com isso, de “o tiro sair pela culatra”, como diz a sabedoria popular, porquanto nada improvável que o cidadão tenha a falsa e perigosa impressão de ser melhor trabalhar na informalidade do que contribuir à Previdência Social. Ainda, quiçá, pretenda-se com essa proposta de reforma impelir o cidadão a procurar planos de Previdência privada e a total falta de transparência e amplo debate sobre o tema leva-nos a acreditar ser esta última hipótese a real intenção dos que apregoam o caos previdenciário.


http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2016/12/08/reforma-da-previdencia-e-confisco-e-pode-empurrar-a-previdencia-privada/

Nenhum comentário: