Às
vezes, diz o brocado, é mais fácil pegar um mentiroso que um coxo. Nos últimos
dois anos, os conservadores brasileiros surfaram na onda do sentimento
anti-establishment que percorre o planeta. Deram-lhe conteúdo reacionário. Em
maio, derrubaram um governo que ensaiava reformas sociais tímidas porém
inéditas – acusando-o de responsável por práticas de corrupção que marcam a
história do país há séculos. Promoveram uma série inédita de ataques aos
direitos sociais, aos serviços públicos e às liberdades democráticas. Governam
como saqueadores, loteando o Estado e desmantelando as políticas públicas.
Agora,
quando começa a ficar claro que o resultado é o aprofundamento da crise, do
desemprego e do empobrecimento, jogam a cartada do punitivismo. Convocam a
população às ruas para pressionar por “dez medidas” que, se aprovadas, nos
aproximarão ainda mais de um Estado Policial. Investem contra o Congresso
Nacional. Ao fazê-lo, no mesmo momento em que o Palácio do Planalto tenta
aprovar a “Reforma” da Previdência, arriscam-se a um enorme passo em falso,
capaz de comprometer o conjunto de sua estratégia.
É
que a manobra revela o caráter farsesco de seu “ataque” ao establishment. O
sistema político brasileiro está, de fato, minado pela corrupção. As delações
dos executivos da Odebrecht sugerem que só esta empresa – uma das dezenas que
praticam permanentemente lobby no Congresso – financiava e cobrava favores de
cerca de metade (300) dos 594 deputados e senadores senadores. Mas como
“denunciar” os corruptos e defender, ao mesmo tempo, que eles continuem
governando e investindo contra os direitos da maioria?
É
exatamente este o movimento em curso. Ontem, os noticiários da TV Globo e Globo
News exortavam a população a ir às ruas contra parlamentares desonestos. A
partir de hoje, as duas emissoras pedirão que estes mesmíssimos senhores
invistam contra direitos históricos do povo. Hipocrisia idêntica é praticada
pelos blogs (Spotnik e O Antagonista, por exemplo) ligados a movimentos como o
MBL e Vem pra Rua. O pacote de maldades é vasto. Não se trata de uma reforma,
mas de um autêntico desmonte da Previdência – talvez o único esboço de Estado
de Bem-Estar Social que as maiorias conseguiram arrancar das elites, num dos
países mais desiguais do mundo.
O
tempo mínimo necessário para obter aposentadoria aumentará – em alguns casos,
em até dez anos. A regra valerá inclusive para os que já ingressaram no mundo
do trabalho, numa clara violação do princípio do direito adquirido. O próprio
valor do benefício cairá em relação aos valores já minguados de hoje — exceto
para os que acumulem, no momento da retirada, cinquenta anos de contribuições.
As aposentadorias rurais e dos idosos deixarão de acompanhar o salário-minimo,
o que as tornará irrisórias em pouco tempo. As pensões por morte serão
achatadas. A lista completa teria 17 itens, todos retrógrados e impopulares.
Não
se trata de propostas de difícil compreensão, como no caso da PEC 241/55. Serão
sentidas por milhões. Têm sentido oposto ao defendido por Dilma e Temer, em
2014. Sequer foram cogitadas por Aécio Neves, o segundo colocado nas eleições.
Como impô-las? Comprando maioria num Congresso “de corruptos”?
Recorre-se
nesse ponto à arma onipresente da ideologia. A contrarreforma não seria opção
política, mas fatalidade técnica. O atual sistema teria se tornado inviável,
por acumular déficits constantes e crescentes. O “ajuste” visaria, na verdade,
evitar sua quebra certa. Estas fórmulas serão repetidas mil vezes, nos próximos
dias, talvez para testar de novo a hipótese de Goebbels, sobre os meios para
transformar mentiras em verdades…
*****
Outras Palavras lança
hoje um novo site, dedicado à defesa da Seguridade Social. Chama-se
Previdência
– Mitos e Verdades.
Pode ser encontrado em www.outraspalavras.net/previdencia Seus objetivos
políticos são claros: contribuir para desmascarar a “reforma” do governo e, num
sentido mais amplo, a farsa em que se apoia a atual ofensiva conservadora. Seus
métodos são os que procuramos praticar em toda nossa atividade jornalística.
Investigação e análises profundas. Recusa à superficialidade e ao panfleto.
Confiança na autonomia e espírito crítico dos leitores.
Para
fazê-lo, mobilizamos três jornalistas tarimbados e sagazes – Glauco Faria,
Patrícia Cornils e Nicolau Soares – e uma designer e editora de vídeos criativa
– Gabriela Leite. Em defesa da Previdência e Seguridade Pública, eles
examinarão o sistema atual e suas características. Mostrarão que, ao contrário
do que alegam os conservadores, é preciso ampliar (e não reduzir) os
benefícios, para construir uma sociedade um pouco menos injusta. Argumentarão
que, para isso, as reformas necessárias são de sentido oposto às propostas pelo
governo. Tributar os mais ricos, sempre poupados por nosso sistema tributário.
Eliminar isenções (por exemplo, as que beneficiam o agronegócio). Rever
privilégios: é aceitável reduzir a aposentadoria dos trabalhadores rurais e dos
idosos e manter as pensões de marajás dos deputados e juízes?
Criado
a partir de um projeto de Outras Palavras, o novo site já tem um primeiro
apoiador: a Central dos Trabalhadores Brasileiros, (CTB). Seu aporte material
permitiu formar a equipe e lançar a inicitavia A cláusula de independência
editorial é pétrea. Eventuais erros e insuficiências em nosso trabalho são de
responsabilidade exclusiva de Outras Palavras. Para uma batalha tão dura,
queremos ampliar o leque de apoiadores. Além de outras centrais sindicais, ele
pode incluir organizações e pessoas empenhados em lutar pelos direitos sociais
e em reverter a maré conservadora que entristece o Brasil. Como é também marca
registrada de nosso trabalho, a prestação de contas será pública.
Uma
era – a Modernidade – está morrendo. As velhas relações sociais, econômicas e
políticas tornam-se rapidamente obsoletas. O novo pode ser muito melhor ou
pior, frisa Immanuel Wallerstein, mas não há volta atrás. Em meio à tempestade,
chegaremos a um porto seguro? Não podemos saber de antemão, seguiremos
navegando.
http://outraspalavras.net/brasil/na-reforma-da-previdencia-uma-farsa-desmascarada/
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