Quem
não deve não teme. Não é, senhores procuradores e magistrados?
Esta
é a frase preferida de juízes e membros do ministério público, quando a defesa
se insurge contra provas extravagantes admitidas assimetricamente a favor da
acusação: quem não deve, não teme. Em seu nome se cometem as maiores
arbitrariedades, pois bem se sabe que em Pindorama basta estar no lugar errado,
na hora errada para ter razões de sobra para temer, devendo ou não.
Mas,
como diz o dito popular, pimenta no olho dos outros é refresco. Suas
Excelências estão em polvorosa porque a Câmara dos Deputados resolveu, na
última versão do texto do PL 4850/2016 (sobre as famigeradas 10 medidas do
MPF), incluir a previsão de crimes de abuso de autoridade por juízes e membros
do ministério público. Que tal acalmá-los, lembrando-lhes de seu bordão: quem
não deve, não teme?
A
revolta se valeu de argumentos toscos, como o de que o Congresso estaria a
desrespeitar a sociedade, que sufragou o projeto com iniciativa popular de mais
de 2 milhões de assinaturas. Ora, em primeiro lugar, o projeto é de iniciativa
popular só na forma, com coleta populista das assinaturas. Mas foi gestado sem
debate, em gabinetes do MPF, por um grupelho de obstinados com o tema do
"combate" à corrupção. Contou com intensa propaganda institucional,
com uso de recursos públicos. Está mais para iniciativa chapa-branca do que
para iniciativa popular. E, em segundo lugar, a indignação pressupõe
arrogantemente que o legislativo é obrigado a acolher a proposta no seu texto
original, sendo-lhe vedado promover emendas. Ora, iniciativa popular (se este fosse
o caso) não se confunde com o processo legislativo. Quem quer tolher o
Congresso Nacional no seu poder constitucional de discutir e emendar propostas
que lhe são submetidas nada entende da atividade legiferante e nenhum respeito
tem pela democracia representativa.
O
direito penal reflete a cultura predominante numa sociedade. E se iniciativa
houve de ameaçar com sanções penais juízes e promotores que saem da linha, é
porque havia demanda para tanto. Ninguém pode negar que as forças tarefas do
MPF e a justiça federal têm agido de forma pouco ortodoxa, ou, até, controversa
na coleta de provas e na negociação de delações premiadas. Têm conscientemente
vazado informações sobre os processos que destroem reputações enquanto ainda
predomina a presunção de inocência sobre investigados. Têm promovido buscas em
escritórios de advocacia sem a cautela de preservar sigilo profissional. Têm
interceptado conversas entre advogados e seus constituintes em inusitada marcha
contra a ampla defesa. Têm requerido ou deferido a condução coercitiva de
suspeitos sem qualquer intimação prévia para comparecer. Têm vazado
sistematicamente informações estratégicas auferidas no curso de inquéritos
policiais, tais como o teor de conversas telefônicas interceptadas.
E
o que esperam agora? Que a soberania popular venha a lhes passar a mão na
cabeça por essa investida continuada contra direitos fundamentais? Nao. Vão
colocar freios. De outro modo, caminharíamos para o descontrole estrutural do
estado brasileiro.
E
não adianta vir com a conversinha de que essas medidas não passam de retaliação
de corruptos. É muito fácil, como o MP sempre tem feito ultimamente, rotular os
adversários de bandidos ou corruptos. E deu no que deu: a polarização da
sociedade naqueles que se imaginam "do bem" e os que são propensos à
criminalidade, os que não passariam num teste de integridade que querem
obrigatório para servidores públicos.
É
verdade que há hoje expressiva bancada no congresso de canalhas que se elegeram
com o fundo multimilionário arrecadado por Eduardo Cunha para o efeito de
construir uma célula de "no mínimo 200 deputados" para chamar de
seus. Estes 200 se juntaram a outros desqualificados que montaram a sólida
maioria do golpe. Disso, claro, se aproveitou uma oposição que não sabe perder
eleições.
Mas
há, também, e não são poucos, os parlamentares dedicados à causa pública que
não são corruptos. E boa parte destes não tolera os abusos advindos de
operações em forças tarefas e um judiciário leniente com as extravagâncias dos
seus e daqueles que os cercam. Chegaram à conclusão legítima de que se cedeu
demais às chantagens populistas dessa aristocracia do serviço público.
Quando,
na reforma do judiciário, no curso na elaboração da EC 43/2004, se introduziu
no debate a criação dos conselhos nacionais de justiça e do ministério público,
parlamentares cogitaram de compô-los com representantes da sociedade civil e da
academia. O veto político da aristocracia judicial e parajudicial não tardou de
vir, com advertências de gente do excelso sodalício de que uma tal iniciativa
poderia se considerar maculada de inconstitucionalidade porque viciaria a
independência dos poderes. Nada mais hilário, a representação do povo, de quem
emana todo poder, ser causa de inconstitucionalidade!
O
resultado desse veto está aí: temos dois órgãos de controle "externo"
que pouco têm de externo. São parte da mesma visão endógena das respectivas
corporações. E punem ou poupam quando querem e lhes é politicamente
conveniente, com a agravante de que esse "politicamente", na maioria
dos casos, se resolve no apoio ou na rejeição das corporações a que pertencem.
Há pouquíssimo espaço, num colegiado desses, de se firmar uma maioria
contramajoritária a repudiar manobras corporativistas.
No
âmbito interno de cada instituição do poder judiciário e do ministério público
a situação é ainda pior, com o governo da casa eleito pelos pares. Membros do
Conselho Superior dos diversos ramos do ministério público se esmeram por serem
aplaudidos pelos colegas nas decisões que tomam. Vêem-se muito mais como
representantes de uma categoria do que como atores do governo da instituição.
Governo é controle. É capacidade de tomar decisões racionais. Com membros do
colegiado escolhidos pela simpatia à causa corporativa, não há governo, não há
controle e, evidentemente, não há accountability.
E
esse quadrou tornou-se completamente disfuncional com a pretensão de eleição
corporativa do Procurador-Geral da República, retirando do máximo mandatário do
País a prerrogativa de escolher o chefe do ministério público da união, cuja
atuação em assuntos extremamente graves para a vida da Nação, exige uma
legitimação ampla que não dos agentes ingressos em carreira por concurso
público. Essa eleição associativa tornou-se verdadeiro sequestro corporativo da
soberania popular e transformou o procurador-geral num ventríloquo de sua
corporação, com toda sua visão distorcida da realidade política.
No
judiciário há uma lógica um pouco diversa, já que a verticalidade da carreira é
mais acentuada, o que não impede, porém, juízes do rés do chão de se
manifestarem, em suas redes corporativas, de forma pouco polida sobre tudo e
sobre todos. O corporativismo é permeado por outros mecanismos, como a escala
de apoio necessária para a autoconcessão de vantagens. O espírito de corpo
legítima ações administrativas em causa própria, na maioria das vezes
sacramentadas pelo Conselho Nacional de Justiça.
O
que fica claro, para quem conhece a cozinha desses órgãos, é que todo e
qualquer controle sobre seus agentes é extremamente frágil, facilitando abusos
sempre que aplaudidos pela grande mídia comercial. Por terem telhado de vidro,
essas corporações de pelam de medo de serem flagradas com a mão na botija e por
isso usam a mídia como termômetro do que podem e não podem fazer.
Num
cenário desses, criar mecanismos que coíbam abuso de autoridade é mais do que
urgente. Se esses mecanismos devem ser penais, civis ou de responsabilização
política é uma questão a ser examinada com mais cuidado. O que é induvidoso,
contudo, é que os mecanismos disciplinares internos não se bastam. Nem bastam
os conselhos nacionais de justiça e do ministério público.
Importante
é lembrar, a propósito, que, numa república, ninguém pode se eximir de
controles. Nem Suas Excelências, os ministros do excelso sodalício. E se os
controles se revelam insuficientes, é preciso reforçá-los. Pugnar por medidas
contra abuso de autoridade é republicano, é democrático, por nivelar todos
agentes do estado no princípio da responsabilidade. Ver nessas medidas mera
retaliação de corruptos é apenas mais uma cortina de fumaça
populista-maniqueísta, de que, no Brasil, estamos fartos, pois levou a uma
perigosa clivagem político-social, capaz de nos jogar no precipício do caos
nacional.
http://jornalggn.com.br/noticia/e-hora-do-congresso-conter-os-abusos-da-lava-jato-por-eugenio-aragao
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