Quem
quiser achar que foi uma força cósmica, que ache. Eu prefiro achar que é o
subconsciente que lembrou, lembrou e
achou um furo na racionalidade para brotar a ligação entre o (perdão
pela palavra) pensamento do promotor Deltan Dallagnol, aquele que disse
que a origem da corrupção no Brasil está
nos primeiros colonos portugueses, aqueles “degredados, criminosos” , enquanto
” quem foi para os Estados Unidos foram pessoas religiosas, cristãs, que
buscavam realizar seus sonhos” e a primeira parte de uma palestra de Darcy
Ribeiro que virou parte e título de um de seus livros, Sobre o Óbvio:
Nosso
tema é o óbvio. Acho mesmo que os cientistas trabalham é com o óbvio. O negócio
deles – nosso negócio – é lidar com o óbvio. Aparentemente, Deus é muito
treteiro, faz as coisas de forma tão recôndita e disfarçada que se precisa
desta categoria de gente – os cientistas – para ir tirando os véus,
desvendando, a fim de revelar a obviedade do óbvio. O ruim deste procedimento é
que parece um jogo sem fim. De fato, só conseguimos desmascarar uma obviedade
para descobrir outras, mais óbvias ainda.
Para
começar, antes de entrar na obviedade educacional – que é nosso tema – vejamos
algumas outras obviedades. É óbvio, por exemplo, que todo santo dia o sol
nasce, se levanta, dá sua volta pelo céu, e se põe. Sabemos hoje muito bem que
isto não é verdade. Mas foi preciso muita astúcia e gana para mostrar que a
aurora e o crepúsculo são tretas de Deus. Não é assim? Gerações de sábios
passaram por sacrifícios, recordados por todos, porque disseram que Deus estava
nos enganando com aquele espetáculo diário. Demonstrar que a coisa não era como
parecia, além de muito difícil, foi penoso, todos sabemos.
Outra
obviedade, tão óbvia quanto esta ou mais óbvia ainda, é que os pobres vivem dos
ricos. Está na cara? Sem os ricos o que é que seria dos pobres? Quem é que
poderia fazer uma caridade? Me dá um empreguinho aí! Seria impossível arranjar
qualquer ajuda. Me dá um dinheirinho aí! Sem rico o mundo estaria incompleto,
os pobres estariam perdidos. Mas vieram uns Barbados dizendo que não, e
atrapalharam tudo. Tiraram aquela obviedade e puseram outra oposta no lugar.
Aliás, uma obviedade subversiva.
Uma
terceira obviedade que vocês conhecem bem, por ser patente, é que os negros são
inferiores aos brancos. Basta olhar! Eles fazem um esforço danado para ganhar a
vida, mas não
ascendem
como a gente. Sua situação é de uma inferioridade social e cultural tão
visível, tão evidente, que é óbvia. Pois não é assim, dizem os cientistas. Não
é assim, não. É diferente!
Os
negros foram inferiorizados. Foram e continuam sendo postos nessa posição de
inferioridade por tais e quais razões históricas. Razões que nada têm a ver com
suas capacidades e aptidões inatas mas, sim, tendo que ver com certos
interesses muito concretos.
A
quarta obviedade, mais difícil de admitir – e eu falei das anteriores para
vocês se acostumarem com a idéia – a quarta obviedade, é a obviedade doída de
que nós, brasileiros, somos
um
povo de segunda classe, um povo inferior, chinfrim, vagabundo. Mas tá na cara!
Basta olhar! Somos 100 anos mais velhos que os estadunidenses, e estamos com
meio século de atraso com relação a eles. A ver ade, todos sabemos, é que a
colonização da América no Norte começou 100 anos depois da nossa, mas eles hoje
estão muito adiante. Nós, atrás, trotando na história, trotando na vida. Um
negócio horrível, não é? Durante anos, essa obviedade que foi e continua sendo
óbvia para muita gente nos amargurou. Mas não conseguíamos fugir dela, ainda
não.
A
própria ciência, por longo tempo, parecia existir somente para sustentar essa
obviedade. A antropologia, minha ciência, por exemplo, por demasiado tempo não
foi mais do que uma doutrina racista, sobre a superioridade do homem branco,
europeu e cristão, a destinação civilizatória que pesava sobre seus ombros como
um encargo histórico e sagrado. Nem foi menos do que um continuado esforço de
erudição para comprovar e demonstrar que a mistura racial, a mestiçagem,
conduzida a um produto híbrido inferior, produzindo uma espécie de gente-mula,
atrasada e incapaz de promover o progresso. Os antropólogos, coitados, por mais
de um século estiveram muito preocupados com isso, e nós, brasileiros, comemos
e bebemos essas tolices deles durante décadas, como a melhor ciência do mundo.
O
próprio Euclides da Cunha não podia dormir porque dizia que o Brasil ou
progredia ou desaparecia, mas perguntava: como progredir, com este povo de
segunda classe? Dom Pedro II, imperador dos mulatos brasileiros, sofria demais
nas conversas com seu amigo e afilhado Gobineau, embaixador da França no
Brasil, teórico europeu competentíssimo da inferioridade dos pretos e mestiços.
O
mais grave, porém, é que além de ser um povo mestiço – e, portanto, inferior e
inapto para o progresso – nós somos também um povo tropical. E tropical não dá!
Civilização nos trópicos, não dá! Tropical é demais. Mas isto não é tudo. Além
de mestiços e tropical, outra razão de nossa inferioridade evidente –
demonstrada pelo desempenho histórico medíocre dos brasileiros – além dessas
razões, havia a de sermos católicos, de um catolicismo barroco, não é? Um
negócio atrasado, extravagante, de rezar em latim e confessar em português.
Pois
além disso tudo a nos puxar para trás, havia outras forças, ainda piores, entre
elas, a nossa ancestralidade portuguesa. Estão vendo que falta de sorte? Em
lugar de avós ingleses, holandeses, gente boa, logo portugueses… Lusitanos!
Está na cara que este país não podia ir para frente, que este povo não prestava
mesmo, que esta nação estava mesmo condenada: mestiços, tropicais, católicos e
lusitanos é dose para elefante.
Deltan
Lallagnol jamais entenderia Darcy, tão cheio de convicções que acredita mesmo
no óbvio que Darcy ironiza e diz que somos um povo chinfrim, tataranetos de
ladrões, corruptos por natureza, ladrões por maldição.
http://www.tijolaco.com.br/blog/de-darcy-para-o-promotor-dos-degredados/
Nenhum comentário:
Postar um comentário