Em Empório do Direito
“Juiz garantista bom é
juiz garantista morto”
Por Marcos Peixoto
Quando
eu era criança, uma certa música (hoje provavelmente considerada – com alguma
razão – politicamente incorreta) ornava a abertura de determinada novela e
dizia que “dez entre dez brasileiros preferem feijão”. Nos dias (estranhos) que
correm, qualquer concessionária de (des)serviço público não se envergonharia de
estampar uma versão atualizada da canção em outra novela: “seis entre dez
brasileiros preferem… bandido morto”.
Não
há espaço aqui para tentar desvendar o ódio que emergiu nos últimos tempos na
sociedade brasileira – digo “emergiu” por entender que seria incorreto afirmar
que “nasceu”, pois que estava somente submerso, sendo destilado em pequenos
grupos envergonhados que a internet ajudou a tornar públicos e a disseminar ao
se aperceberem, seus integrantes, que estavam muito distantes de qualquer
isolamento ou estranhamento mas, isto sim, refletiam um sentimento comum a
muitos e muitas: o ódio e intolerância contra a diferença.
Esses
sentimentos se encontram estreitamente vinculados à ideia e construção da
figura do inimigo, profundamente analisada em matéria penal (prenhe em matéria
de “inimigos”) por figuras tão díspares e antitéticas como um Jakobs ou um
Zaffaroni.
O
inimigo, real (países em guerra possuem inimigos reais, ainda que alguns entrem
em guerra contra inimigos irreais mesmo que por motivos reais porém, quase
sempre, recônditos) ou fictício, é um fator facilitador no sentido de engendrar
seja uma falsa sensação de unanimidade em torno de um alvo a ser debelado, seja
um deslocamento de questões mais ingentes e danosas que o “inimigo” da vez
poderia um dia quiçá almejar ser – e, assim, a ideia de inimigo guarda estreita
convergência com a noção de ideologia; poderíamos mesmo ousar dizer que o
inimigo forjado será sempre ideológico.
Já
o ódio ao criminoso é um fator à parte, tamanha a sua complexidade – até porque
o criminoso é sempre o outro, o odiado, nunca aquele que o odeia enquanto baixa
filmes em sites de compartilhamento ilegais, ou ao mesmo tempo em que passa com
a muamba pela alfândega, ou antes/depois de pedir um precinho camarada e sem
nota fiscal ao dentista com quem comumente compartilha dos mesmos ódios.
Ainda
que o desvio seja algo intrinsecamente inerente ao ser humano (demasiado
humano) – não à toa praticamente nasce com o homem a noção de pecado e, junto,
os mandamentos, interditos, leis – o ódio ao desvio é facilmente alimentado
mesmo pelos que desviam em outros sentidos, pois o desvio do outro é sempre o
mais feio ou (a depender do interesse em jogo) o mais danoso, o mais perigoso,
o mais ilegal, o mais vergonhoso, o mais pecaminoso.
Daí
porque é muito fácil potencializar e direcionar estes ódios: como, muitas
vezes, aquele que odeia externa um ódio contra o que tem dentro de si mesmo, e
como o ódio encontra forte amparo na irracionalidade, não há grandes
dificuldades em nutri-lo e direcioná-lo, pois a massa está pronta, basta levar
ao forno, de preferência em temperatura elevada, e aguardar.
Porém,
o inimigo ideal é aquele despido de humanidade. O discurso de descolamento
entre o criminoso e o humano vem de longa data, e perpassa por frases ignóbeis
do tipo “direitos humanos para humanos direitos” até alcançar a famigerada
ideia do “bandido bom é bandido morto”, que alimenta desde o linchamento da
esquina até o estado inconstitucional de coisas alcançado pelo sistema
penitenciário, declarado pelo Supremo Tribunal Federal sem que daí tenha
advindo um mínimo de concretude – objeto de decisão liminar na ADPF 347 há mais
de ano, o sistema prisional somente faz ampliar e tornar-se mais e mais
desumano, à ponto de em novembro de 2016 o governo do Rio Grande do Sul ter
anunciado que passará a manter seres humanos presos em contêineres (prática que
já havia sido adotada em 2009 no Espírito Santo): afinal, quem se importa a não
ser (em mais uma frase cheia de ódio) “aquela gente dos direitos humanos”?
Desumanizado
o criminoso fica “mais fácil” (para alguns…) espancar até a morte o jovem que
furtou um cordão, amarrar a um poste e espancar o assaltante, apedrejar a
mulher confundida com alguém que abusou de uma criança, afinal, o que veem os
imoladores não é um ser igual, um ser humano, mas alguém que por ser desigual
(desumano, ou talvez melhor: inumano) é “matável” sem que exista qualquer sinal
de identificação ou compaixão – este mesmo raciocínio explica as touradas,
“vaquejadas” e “farras do boi”, em que o animal é maltratado e levado à
exaustão e morte sem qualquer sinal de piedade dos participantes, afinal… é um
animal, não é humano… (aliás, não fica tão longe disto tudo o ato de atear fogo
a moradores de rua).
Nesta
crescente desumanização e ampliação do ódio ao desviante, nutridos em grande
parte por uma mídia irresponsável e profundamente danosa ao desenvolver do
processo civilizatório em nosso país – que espera e pretende exatamente que os
pobres se odeiem entre si para que não tenham tempo de odiar àqueles que
realmente os espoliam – não demorou muito a se identificar à causa e aos
defensores dos direitos humanos como empecilhos ao “melhor para a sociedade”
(na visão daqueles).
“Aquela
gente dos direitos humanos” passou então a ser vista como defensora de
bandidos, i.e., de gente que merece morrer e de preferência da pior morte,
logo, pessoas que precisam também ser eliminadas de suas funções ou no mínimo
neutralizadas em suas ações – e isto perpassa desde o extermínio de lideranças
indígenas, passando pelo assassínio de religiosos vinculados a causas
humanistas, até ao homicídio e criminalização de líderes de movimentos sociais.
Surfando
nesta onda, profissionais jurídicos que vislumbram a ampliação massiva do
encarceramento como “um bem para a sociedade” (e é patético quando cegos acham
que enxergam…) deram, então, início a uma guerra silenciosa de combatentes
únicos dentro do sistema de justiça criminal, que poderia ser resumida com o
título deste despretensioso artigo: “juiz garantista bom é juiz garantista
morto” (não “morto” em sentido estrito… ao menos por ora…).
Em
todo o país, do Rio Grande ao Amazonas, juízes identificados como defensores de
direitos e garantias fundamentais (“aquela gente”) passaram a ser perseguidos,
em alguns casos dentro de seus próprios Tribunais (por parte de algumas
Câmaras, Corregedorias ou Presidências), mas na imensa maioria das vezes por
membros do Ministério Público estadual ou federal que, mal acostumados com o
trabalho ao lado de juízes que pensam idêntico não toleram aqueles que pensam
diverso.
Teve
início, então, uma verdadeira caça às bruxas, que se encontra em pleno
andamento e não demonstra mínimo sinal de exaustão ou quiçá esvaziamento – pelo
contrário! Não obstante a meridiana clareza do artigo 41 da Lei Orgânica da
Magistratura Nacional, Procedimentos Administrativos Disciplinares passaram a
ser usados em profusão, sob os mais variados pretextos, contra “aquela gente”
que ousa pensar fora da caixa e decidir em desconformidade com o ideário
punitivista ora predominante, isto tendo em mira a menina dos olhos de todo
esse processo em específico, qual seja, alcançar, como penalidades, remoções
compulsórias destes magistrados de Varas Criminais, de Infância Infracional, de
Execução Penal ou Infracional para outras, bem distantes de onde possam causar
qualquer “dano à sociedade”(sic) e obstar o processo de ampliação do
hiperencarceramento a qualquer custo (ainda que da ordem constitucional – eu ia
dizendo vigente, mas nem sem mais… –, como pretendem, por exemplo, várias das
absurdas dez medidas propostas pelo Ministério Público Federal).
Até
o momento o bom senso tem prevalecido na maioria dos casos (infelizmente não em
todos!), mas é importante que “aquela gente” – lideranças da sociedade civil,
membros da academia, defensores de direitos humanos, advogados, defensores
públicos, promotores, procuradores e magistrados democráticos – esteja atenta
ao que está a ocorrer na surdina, atenta à essa guerra silenciosa que vem sendo
travada dentro do sistema de justiça criminal com ataques vindos de um lado só,
sob pena de, em nada sendo feito, muito em breve ser mais fácil encontrar
juízes garantistas em Varas de Família, Cíveis ou aposentados, que em Varas
Criminais ou Infracionais.
http://www.ocafezinho.com/2016/11/17/analise-crise-que-assola-o-estado-democratico-de-direito/
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