Ao
dizer a jornalista Monica Bergamo que pretende levar chocolates para Lula na
prisão da Lava Jato, o novo prefeito de São Paulo, João Doria, produziu um
desastre político.
Demonstrou
um exibicionismo que repete o comportamento absurdo do Ministro da Justiça,
Alexandre Moraes, que antecipou a prisão de Antonio Palocci.
Também
apresentou um traço atrasado de formação política. Sua ironia risonha reproduz,
com três séculos de atraso, o barbarismo da população que no século XVIII
comparecia a cenas de execução e tortura de prisioneiros, em praça pública,
para pedir mais sangue ao carrasco. Em nossa época, esse comportamento integra
os mais condenáveis movimentos políticos, anteriores a aceitação da convenção
dos direitos humanos, base universal da resistência a todas as formas tirânicas
de governo.
No
Brasil, país onde a separação entre poderes é clausula pétrea da Constituição,
não cabe a um prefeito especular sobre decisões -- de gravidade reconhecida --
que estão nas mãos da Justiça, que deve examinar cada acusação e cada denúncia
com isenção e serenidade.
Pela
sua postura, Doria só contribuiu para jogar água no moinho de quem critica a
Lava Jato como uma operação seletiva, que não se empenha em apurar denuncias
contra colegas de seu partido, o PSDB, com o mesmo cuidado dispensado ao
Partido dos Trabalhadores.
É
curioso notar que o novo prefeito tenha se manifestado num momento em que a
Lava Jato encontra-se em situação particular. Reportagem de Bela Megale, na
Folha de S. Paulo, revela que a Polícia Federal está cogitando suspender as delações premiadas. O argumento
é que elas criam uma “sensação de unidade”
junto a população, na medida em que facilitam a soltura de criminosos
depois que os acordos são fechados.
A
diferença entre a Lava Jato e as demais investigações sobre corrupção política,
inclusive a AP 470, consiste na prisão preventiva, primeiro passo para as
delações premiadas.
É
ali, no silêncio terrível de uma cela, que a operação negocia uma garantia
constitucional – a liberdade, direito de toda pessoa que não tenha sido
condenada – em troca de informações. Foi dessa forma que nasceram as delações
premiadas, 66 até agora. O sujeito não aguenta a solidão, a incerteza sobre seu
futuro, pressão da família, a dor no olhar dos filhos, a vergonha evidente no
rosto de tantas pessoas queridas – e fala.
É
bizantino perguntar se estamos falando de tortura. Claro que é – como sabe toda
pessoa que conhece rudimentos de psicologia. Emoção machuca, e muito. O medo
produz marcas doloridas, traumas incuráveis – ainda que sejam invisíveis.
Na
época superada da evolução humana em que o castigo físico de crianças eram
tolerado e autorizado, castigadas e punidas com severidade, uma das
alternativas às punições tradicionais – as terríveis surras de cinto, as
chineladas – era o quarto escuro, trancado à chave. Que nome dar a isso?
Não
foi assim, conforme seu relato que, numa cela sem luz, que o senador Delcídio
do Amaral, começou a falar?
Cronologicamente,
essa preocupação com a "sensação de impunidade" surgiu depois que se
revelou que, na mesma representação da Polícia Federal que trouxe os diálogos e mensagens que levaram a Antônio
Palocci à carceragem da PF em Curitiba, onde é mantido na prisão por tempo
indeterminado, pode-se encontrar uma exaustiva quantidade de indícios
comprometedores sobre a cúpula do PSDB paulista, no período dos governos de
José Serra, adversário interno de João Dória, e Geraldo Alckmin, seu maior
aliado.
Mergulhados em tratativas da Odebrecht, uma
das principais responsáveis pelo metrô paulista, vários personagens chamam a
atenção pelos apelidos, pelo volume dos recursos recebidos, pelo desembaraço.
Da mesma forma que a Polícia Federal acredita ter identificado Palocci nos
indícios que apontam para um certo “Italiano”, temos ali, nas tratativas sobre
o PSDB, caminho que podem levar a um certo “Santo”, ao “Careca”, e outros
personagens tratados por apelidos, em negociações que envolvem, basicamente,
duas linhas do metrô de São Paulo. A conversa diz respeito a reajustes e
pagamentos clandestinos.
Pergunto: vamos saber quem são? O que
disseram? Um dia eles vão aparecer na
TV, algemados, mão nas costas, com aquele ar de quem não está entendendo mais
nada?
Vamos
saber quem reage com frieza, quem se apavora? Podemos sentir pena, raiva?
Seremos tentados, discretamente, a visitar as famílias?
Dificilmente.
Por que? Desde o mensalão PSDB-MG é errado imaginar um tratamento igual para
crimes semelhantes e até identicos. José Serra e Aécio Neves já foram citados
em delações premiadas da OAS e da Ocbrecht. "Citado não é
investigado," lembrou João Dória, na mesma entrevista. Tecnicamente, a
distinção é correta.
Mas o errado é não investigar.
Por minhas convicções democráticas, sou
contrário ao uso da prisão preventiva como método de investigação. Acho que ela
é um recurso extremo, que equivale a antecipar a pena antes da condenação,
implicando em tolher direitos fundamentais de toda pessoa. Não pode ser
instrumento para se forçar uma delação premiada, que só tem valor quando
voluntária e espontânea.
A “sensação de impunidade” vem daí, quando é
possível concluir que há um tratamento diferenciado entre suspeitos do mesmo
crime. Dias antes da prisão de Guido Mantega na porta de um hospital, a Justiça
se mostrava incapaz de entregar uma notificação a Pimenta da Veiga, ex-ministro
de FHC, pela falta de um endereço correto. Em 2003, Pimenta recebeu quatro
cheques de Marcos Valério em sua conta bancária e até agora a Justiça não lhe
deu uma sentença por isso.
Embora a repórter Julia Duailibi já tenha
exposto o espírito anti Lula e anti petista da equipe de delegados que dirige a
Lava Jato, numa agressividade que não permite dúvidas, estamos falando de algo
maior do que uma opinião política.
É
uma espécie de tabu, uma força invencível, um limite cultural, imposto e
internalizado na formação de todos os brasileiros por uma hierarquia social
sólida como poucas no mundo. Estamos falando de uma engrenagem em perpétuo
movimento para se reproduzir através de gerações e preservar privilégios e
vantagens acumuladas ao longo da história – como se viu no domingo, num
massacre de classe através de uma disputa eleitoral, no mais recente lance de
um esforço para recompor a velha ordem levemente arranhada na última década e
meia. O objetivo é mostrar que ninguém, em especial os mais pobres, aqeules que
têm menos direitos, pode esquecer quem é que manda de verdade, ao contrário do
que muitas pessoas puderam imaginar depois que um certo líder metalúrgico
entrou no Planalto pela porta da frente.
http://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/258685/O-chocolate-estragado-de-Jo%C3%A3o-Doria.htm
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