"A
liberdade é o tema sobre o qual convergem feminismos muito diferentes entre si,
e é entendida como entendeu Simone de Beauvoir: não como soma de direitos ou de
oportunidades, mas como definição, de forma livre e originária, da sua
existência no mundo, sobre sua própria base".
O
comentário é de Claudia Mancina, professora da Universidade de Roma, em artigo
publicado por L'Osservatore Romano, 01-09-2016. A tradução é de Fernanda Pase
Casasola.
Eis o
artigo.
Ninguém
nasce mulher, torna-se mulher. Essa simples frase resume o conteúdo explosivo
da obra-prima de Simone de Beauvoir, lançada com grande escândalo em 1949 (e
que, em 1956, entrou para o Índice dos Livros Proibidos). Ser mulher não é um
fato natural, não se explica com a biologia nem com a psicanálise. É um aspecto
cultural, resultado da ação de processos de construção simbólica que estão na
origem da história humana. As mulheres que hoje adquiriram os direitos de uma
igualdade formal encontram-se, de acordo com a escritora francesa, diante da
imensa tarefa de descobrir quem são.
Na
verdade, nenhuma mulher pode pretender colocar-se além do seu próprio sexo: até
mesmo uma mulher privilegiada como ela, que não tenha experimentado diretamente
a discriminação. Isso, que nenhuma mulher pode escapar, é a questão do que
significa ser uma mulher. A identidade feminina é algo estranho, construída
pelo olhar do homem. A mulher não é ela mesma, mas o outro homem, o seu objeto.
A relação entre os dois sexos não é uma relação de reconhecimento mútuo, em que
as duas consciências se relativizam reciprocamente. Assim, a mulher nada mais é
do que o segundo sexo: entre os sexos existe uma hierarquia. O homem constrói
sua liberdade na relação com o outro, que é a mulher; a mulher não constrói a
sua liberdade, porque não coloca o homem como o seu outro e não consegue sair
de sua posição de objeto. Ela permanece aprisionada na biologia, presa da
espécie, e, portanto, presa das construções culturais da essência feminina.
Se
perguntarmos a nós mesmos, depois de mais de sessenta anos, qual é o legado da
filósofa do feminismo do século XX, não podemos deixar de observar a natureza
seminal do seu pensamento. A negação da base biológica do ser mulher, ainda que
renunciada de diferentes maneiras, é majoritária no feminismo, assim como a
definição das características atribuídas à mulher pelo pensamento masculino.
Por esse motivo, podemos ver em sua abordagem um excelente exemplo da
desconstrução da identidade. Mas a principal razão para o interesse do Segundo
Sexo hoje, reside no projeto filosófico de origem existencialista, e, portanto,
na centralização da questão da liberdade.
A
liberdade é o tema sobre o qual convergem feminismos muito diferentes entre si,
e é entendida como entendeu Simone de Beauvoir: não como soma de direitos ou de
oportunidades, mas como definição, de forma livre e originária, da sua
existência no mundo, sobre sua própria base. Na sua obra, essa intuição tem o
estilo da filosofia de Sartre. Essa abordagem está distante da mais recente
percepção da pesquisa feminista às questões dos cuidados e dos relacionamentos.
Mas a tensão ética com relação a reapropriação de um sentido universal do ser
mulher como ser humano que deve conquistar a sua posição independente no
mitsein, no estar junto, faz da filósofa uma inesquecível mãe do feminismo.
Revista
ihu on-line
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/559685-simone-de-beauvoir-mae-do-feminismo
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