A
Intentona Comunista eclodira em novembro de 1935. Não tardou e Olga Benário,
revolucionária alemã, esposa de Luís Carlos Prestes, foi identificada pela Polícia
do Rio de Janeiro como estrangeira perigosa para a ordem nacional. Eram anos de
chumbo, e o art. 113, §15 da Constituição de 1934 declarava:
“Art. 113.[…]
§15. A União poderá expulsar do território
nacional os estrangeiros perigosos à ordem pública ou nocivos aos interesses do
país”.
A
expulsão é um procedimento administrativo, com intenso color político. Visa a
forçar a saída do território nacional de alguém que se torne uma persona non
grata. Não se confunde com a extradição, que é um ato de cooperação
internacional em matéria penal, que pressupõe a prática de um crime noutra
jurisdição. Atualmente, o art. 65 da Lei 6.815/1980 regula a expulsão. Regra
semelhante foi usada contra Olga:
Art. 65. É passível de expulsão o
estrangeiro que, de qualquer forma, atentar contra a segurança nacional, a
ordem política ou social, a tranqüilidade ou moralidade pública e a economia
popular, ou cujo procedimento o torne nocivo à conveniência e aos interesses
nacionais.
Presa
no início de 1936, no governo Vargas, e submetida a inquérito de expulsão, a
sorte de Olga era incerta. Seu advogado Heitor Lima impetrou em seu favor o
habeas corpus 26.155/DF. A autoridade coatora era o ministro da Justiça.
A
petição foi apreciada pelo STF na sessão de 17 de junho de 1936. Pretendia-se
evitar a expulsão (e não a extradição) da paciente, que era presa política e
estava grávida. Esperava Anita Leocádia, filha de Prestes.
Infelizmente,
numa página inglória da história do STF, o pedido não foi conhecido pela Corte,
sob a alegação de que o artigo 2º do Decreto n. 702, de 21 de Março de 1936 –
baixado por Vargas – suspendera a garantia constitucional do habeas corpus
prevista no art. 113, §23 da Constituição de 1934, em razão da “commoção
intestina grave articulada em diversos pontos do paiz desde novembro de 1935,
com a finalidade de subverter as instituições politicas e sociaes.”
O
artigo 161 da Constituição de 1934 permitia a decretação do estado de guerra, o
que implicava a suspensão das garantias constitucionais que pudessem
“prejudicar direta ou indiretamente a segurança nacional”.
Aqui
a íntegra do HC de Olga Benário. Leia a petição inicial. É uma belíssima peça
escrita pelo advogado Heitor Lima, que, em 1922, fora responsável por
peticionar noutro habeas corpus histórico: o HC 8801/DF, referente à Revolta
dos 18 do Forte de Copacabana, que ocorreu em 5 de julho de de 1922. Tal
rebelião foi o primeiro dos movimentos do Tenentismo, ao qual se seguiriam a
Revolução Paulista de 1924, a Comuna de Manaus de 1924 e a Coluna Prestes de
1925.
O
êxito de Heitor Lima em relação aos tenentes de 1922 estimulou Prestes a
entregar-lhe o caso de Olga Benário. No HC, Lima pleiteava que Olga (ou Maria
Prestes) fosse julgada no Brasil. Sua tese era engenhosa. Fundava-se em dois
argumentos persuasivos. Eis o primeiro: a preferência da jurisdição brasileira
para julgamento de crimes cometidos no Brasil:
“Não
há dúvida, assim, de que Maria Prestes, acusada de participação em graves
delitos contra a ordem política e social, está devendo contas a justiça
punitiva. Não pode, pois, ser expulsa. Primeiro irá a julgamento; se o remate
do processo for a condenação, cumprirá a pena. Depois, se o Executivo apurar
que ela, sem praticar novos crimes, terá constituído em elemento nocivo á
segurança nacional, expulsa-la-á para sempre. A paciente impetra habeas-corpus,
não para ser posta em liberdade; não para neutralizar o constrangimento de
qualquer processo; não para fugir ao julgamento dos seus atos pelo judiciário:
mas, ao contrário, impetra habeas-corpus para não ser posta em liberdade; para
continuar sujeita ao constrangimento do processo que contra ela se prepara na
polícia; para ser submetida a julgamento perante os tribunais brasileiros. Em
suma: o habeas-corpus é impetrado a fim de que a paciente não seja expulsa”
(LIMA, Heitor. Petição inicial do HC 26.155/DF, STF, 1936).
O
segundo argumento de Heitor Lima era igualmente tentador e estava no art. 4º do
Código Civil de 1916, combinando-se com o princípio da pessoalidade da pena.
Segundo o art. 4º do CC, que vigeu de 1916 a 2002, a personalidade civil do
homem começa do nascimento com vida; “mas a lei põe a salvo desde a concepção
os direitos do nascituro”:
Se
a lei considera na gestante duas pessoas distintas, a mãe e o nascituro; se a
Constituição estatui que nenhuma pena passará da pessoa o delinqüente […] – se
a expulsão é uma pena; se tal pena alcançará em seus efeitos o filho da
expulsanda, embora ainda não nascido: segue-se que o decreto de expulsão, além
de ferir o preceito constitucional protetor da maternidade, ofende ainda o
principio da personalidade da pena. […] Maria Prestes sustenta que o seu filho
é brasileiro, foi concebido no Brasil, quer nascer e viver no Brasil. Como
brasileiro, tem o direito de não ser expulso do Brasil“. (LIMA, Heitor. Petição
inicial do HC 26.155/DF, STF, 1936).
O
STF – então chamado de Corte Suprema dos Estados Unidos do Brasil –
acovardou-se. Primeiro, o presidente do tribunal, ministro Edmundo Pereira
Lins, mandou que se pagassem as custas do processo. Despachou de próprio punho:
“Pague o selo devido e volte, querendo”.Hermes Lima reagiu, com ira e altivez,
num magnífico aditamento:
“Se
a justiça masculina, mesmo quando exercida por uma consciência do mais fino
quilate, como o insigne presidente da Corte Suprema, tolhe a defesa a uma
encarcerada sem recursos, não há de a história da civilização brasileira
recolher em seus anais judiciários o registro desta nódoa: a condenação de uma
mulher, sem que a seu favor se elevasse a voz de um homem no Palácio da Lei. O
impetrante satisfará as despesas do processo. Rio de Janeiro, 4 de junho de
1936. Heitor Lima”. (LIMA, Heitor. Petição inicial do HC 26.155/DF, STF, 1936).
O
habeas corpus foi sorteado ao relator, ministro Bento de Faria. Despachado o
HC, as informações da autoridade coatora foram prestadas em 15 de junho de 1936
por Vicente Rao, então ministro da Justiça:
Em
resposta ao ofício de nº 218, de 10 de junho corrente, tenho a honra de passar
às mãos de V. Excia., cópia das informações prestadas pela Polícia do Distrito
Federal, relativas a Maria Prestes, em favor de quem foi solicitado hábeas
corpus. A paciente é de nacionalidade estrangeira e acha-se à disposição deste
Ministério, para ser expulsa do território nacional, por elemento perigoso à
ordem pública e nocivo aos interesses do país (Constituição, art. 113, n. 15),
o que ainda se justifica, no momento presente, em face do decreto nº 702, de 21
de março do corrente ano, que instituiu o estado de guerra e suspendeu a
garantia do hábeas corpus, por necessidade de segurança nacional, como no caso
ocorre. Reitero a V. Excia. Os meus protestos de alta estima e consideração”.
(RAO, Vicente. Informações no HC 26.155/DF, STF, 1936).
Não
há notícia nos autos do HC sobre o teor do parecer do Procurador-Geral da
República Gabriel de Rezende Passos, que fora nomeado em maio de 1936 por
Getúlio Vargas, mas não é difícil imaginar qual teria sido. Bento de Faria e a
maioria dos ministros do STF não conheceram o habeas. Mesmo os ministros Carlos
Maximiliano – que assumira vaga na Corte em abril de 1936 após ter deixado o
cargo de PGR –, Carvalho Mourão e o mestre Eduardo Espínola, que conheceram o
pedido do HC 26.155, o indeferiram pelo mérito. Transcrevo o sucinto
acórdão,que, como Heitor Lima vaticinou, consiste numa nódoa perene na história
judiciária brasileira:
Vistos,
relatados e discutidos estes autos de habeas corpus impetrado pelo Dr. Heitor
Lima em favor de Maria Prestes, que ora se encontra recolhida à Casa de
Detenção, afim de ser expulsa do território nacional, como perigosa à ordem
pública e nociva aos interesses do país. A Corte Suprema, indeferindo não
somente a requisição dos autos do respectivo processo administrativo, como
também o comparecimento da paciente e bem assim a perícia médica afim de
constatar o seu alegado estado de gravidez, e Atendendo a que a mesma paciente
é estrangeira e a sua permanência no país compromete a segurança nacional,
conforme se depreende das informações prestadas pelo Exmo. Sr. Ministro da
Justiça: Atendendo a que, em casos tais não há como invocar a garantia
constitucional do habeas corpus, à vista do disposto no art. 2 do decreto n.
702, de 21 de março deste ano: Acordam por maioria, não tomar conhecimento do
pedido. Custas pelo impetrante. Corte Suprema, 17 de junho de 1936. – E. Lins,
presidente. – Bento de Faria, relator.” (STF, Pleno, HC 26.155, rel. Bento de
Faria, j. em 17/06/1936).
Foi
há 77 anos. Hoje, no site do STF, consta que o ministro Edmundo Lins fora homem
de “notável saber e grande cultura, honrou a magistratura e, nos cargos que
exerceu, legou às futuras gerações os exemplos mais dignificantes de civismo,
patriotismo e grandeza moral” (sic). Quanto ao relator Bento de Faria, que
sucedeu Lins na presidência da Corte, diz o site do Supremo: “As notáveis
obras, repletas de ensinamentos, que publicou denotam sua alta cultura jurídica
e são consideradas por todos os jurisconsultos fontes primorosas da ciência do
Direito” (sic). Quão generoso é o biógrafo desses homens.
O
ministro Oliver Wendell Holmes Jr., da Suprema Corte dos Estados Unidos, teria
algo a dizer aos seus colegas brasileiros que julgaram o HC de Olga Benário em
1936. Holmes morreu em 1935, mas em 1904, em Northern Securities Co. v. United
States, o justice norte-americano escreveu que casos difíceis levam a decisões
ou a soluções ruins: “Great cases like hard cases make bad law. For great cases
are called great, not by reason of their real importance in shaping the law of
the future, but because of some accident of immediate overwhelming interest
which appeals to the feelings and distorts the judgment. These imediate
interests exercise a kind of hydrualic pressure which makes what previously was
clear seem doubtful, and before which even well settled principles of law will
bend” (HOLMES, Oliver Wendell, Washington, 1904).\
O
HC de Olga Benário nem era um hard case; era uma causa simples, embora
arriscada. Ruim era a lei de 1936, que suspendera a garantia do habeas corpus.
A dificuldade estava em escolher um lado: o dos perseguidos ou o dos
“interesses maiores” do Estado.
Em
1936, ainda não havia sido introduzido no direito internacional o princípio
non-refoulement(do francês refouler), que impede a devoulação, a expulsão ou a
deportação de refugiados para territórios em que sofram risco de perseguição.
Instituído pelo art. 33 da Convenção de 1951 sobre o Estatuto dos Refugiados
(Decreto 50.215/1961) e também considerado no artigo 3º da Convenção contra a
Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Crueis ou Degradantes (1984) (Decreto
40/1991), este princípio está hoje previsto no artigo 7º, §1º, da Lei n.
9.474/1997: “§1º – Em hipótese alguma será efetuada sua deportação para
fronteira de território em que sua vida ou liberdade esteja ameaçada, em
virtude de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política.”.
Consumada
a decisão da Suprema Corte brasileira, Olga deixou o Brasil em setembro de
1936, a bordo do cargueiro La Coruña rumo a Hamburgo. Transportada como coisa.
Já perdera sua condição de pessoa. Ela e seu nascituro haviam sido expulsos
para a Alemanha, onde o regime de Hitler e sua Gestapo os aguardavam. Olga foi
enviada para a prisão de Barnimstraße em Berlim, onde, em novembro de 1936,
nasceu sua filha Anita Leocádia.
Em
carta que endereçou a Prestes em 9 de outubro de 1937, Olga relatou o drama de
sua prisão preventiva sem acusação:
“[…]
Carlos, faltam apenas alguns dias para completar um ano que me trouxeram do
navio em Hamburgo para Berlim e depois para a prisão de mulheres. Devo
confessar-te que, devido a minha situação particular, eu esperava logo obter
novamente a liberdade. Mas agora já passou um ano e, ainda que não esteja
condenada à punição alguma por nenhum tribunal, o termo ‘detenção preventiva’ é
suficiente para estar detida. Começo agora a me habituar à idéia de uma
detenção mais longa. Melhores dias virão […]”.
Estes
melhores dias não vieram. Logo Olga seria transferida para o campo de
concentração de Ravensbrück e de lá para o Centro de Eutanásia de Bernnurg,
onde morreu numa câmara de gás em 23 de abril de 1942. A condenação de Olga à
morte fora decretada em 1936, quando o STF não conheceu o HC 26.155, relatado
por Bento de Faria. Desta história de lutas, dramas e violações, restou sua
filha Anita Leocádia Benário Prestes:
Da
nossa vida em comum nasceu um pequeno ser e agora esse ser se encontra seguro
nos braços de nossa querida Mãe. Que a Anita Leocádia seja a representante de
nosso amor e de nossa solicitude junto à nossa Mãe! Escreveste em várias cartas
que não podes visualizar mais a minha imagem sem uma criancinha nos braços. É
preciso agora que mudes esta visão. Mas, embora tenha eu os braços vazios como
antes, não sou mais a mesma. É somente quando durmo ou quando sonho que Anita
está diante de mim, que sou só um pouquinho feliz… (Carta de Olga Benário a
Luís Carlos Prestes, escrita em Berlim, em 12 de fevereiro de 1938).
Em
sua última e pungente carta, datada de abril de 1942, Olga se despediu de
Prestes e de sua filha: “Lutei pelo justo, pelo bom e pelo melhor do mundo.
Prometo-te agora, ao despedir-me, que até o último instante não terão porque se
envergonhar de mim. Quero que me entendam bem; preparar-me para a morte não
significa que me renda, mas sim saber fazer-lhe frente quando ela chegue. Mas,
no entanto, podem ainda acontecer tantas coisas… Até o último momento
manter-me-ei firme e com vontade de viver. Agora vou dormir para ser mais forte
amanhã. Beijo-os pela última vez”.
Anita
foi resgatada na Alemanha pela avó. Saiu viva de uma prisão nazista e tornou-se
historiadora e professora doutora pela UFRJ. Anita do Rio de Janeiro, filha de
Prestes e Olga.Esta, sim, poderosa.
[Para
saber mais sobre esta página sombria de nosso legado judiciário, recomendo “A
História do Direito entre Foices, Martelos e Togas” (2008), de Arnaldo Sampaio
de Moraes Godoy, e obviamente “Olga”, de Fernando Morais]
http://jornalggn.com.br/noticia/o-stf-e-a-expulsao-de-olga-benario-por-vladimir-aras
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