‘Quando
você tira o presidente eleito pelo povo, o que foi que você fez? Mexeu no
fundamento da ordem democrática inteira’, diz Jessé.
A
semente do impeachment foi a onda de manifestações em junho de 2013, segundo o
sociólogo Jessé de Souza [1]. “Se montou uma base de classe média, dizendo que
era o povo”, observa, lembrando que “as classes que ascenderam não saíram à
rua”. E diz que, com o impeachment, cria-se uma “pseudodemocracia”, que tem a
aparência de uma democracia, mas a que falta seu principal fundamento: a
soberania popular.
A
entrevista é publicada por The Intercept, 01-09-2016.
Polêmico,
classifica a ex-presidente Dilma Rousseff e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da
Silva de “politicamente ingênuos”, por não garantirem pluralidade nos discursos
da grande mídia, principalmente nas redes de televisão aberta. E diz que as
grandes empresas de televisão fazem papel de partido político no Brasil.
Ele,
que já presidiu o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), critica a
postura “economicista” da esquerda e, principalmente, da ex-presidente Dilma
Rousseff, ao achar que um programa econômico mudaria a sociedade como um todo.
Diz que “é falso” achar que a inflação afeta o voto do cidadão. E chama de
“fofoca” o fato de que parte da elite se manteve em apoio à presidente
afastada.
Eis a
entrevista.
O
que de fato muda na realidade brasileira com a decisão pelo afastamento da
ex-presidente?
Muda
muita coisa. Quem montou a coisa não tem a menor ideia do que fez,
efetivamente. Este impeachment sem nenhuma legitimidade, como ficou óbvio nos
debates e tudo, implica que você retirou o fundamento da vida política. É isso
que não se percebe.
O
acordo político está montado na soberania popular. E, no fundo, o único cargo
eletivo no Brasil que tem verdadeira ligação com a soberania popular é o
executivo. Porque as outras eleições são muito fragmentadas, localizadas.
Quando
você tira o presidente eleito pelo povo, o que foi que você fez? Mexeu no
fundamento da ordem democrática inteira.
Se
não for ligado à soberania popular, tem que estar ligado à força. Percebe?
Então, o país inteiro está entrando no pântano.
Como
assim entrando no pântano?
Essa
falta de legitimidade vai produzir cada vez mais fricção, atrito. Entrou-se
agora num mundo desconhecido.
Tem
uma geração de pessoas que imaginavam que estavam construindo uma democracia.
Quando você solapa a soberania popular, no fundo se cria uma pseudo democracia.
Ela vai ter os atos exteriores de uma democracia, mas vai estar faltando aquilo
que é o principal.
O
que houve com o impeachment foi uma usurpação, porque ficou óbvio que foi um
pretexto e não tem nenhuma legitimidade. Não houve crime, a presidenta não é
corrupta, ela pode ser tudo, mas ela não é corrupta. As pessoas sabem. E o
crime de responsabilidade tem a ver com isso.
Mas
as acusações contra ela não foram de corrupção. A questão girou em torno da
mudança nos gastos sem consulta ao legislativo.
Exatamente,
mas isto antes estava ligado à noção de crime de responsabilidade. Aí foi se
mostrando cada vez menos convincente. O fato é: como todos os administradores
em todos os níveis realizaram coisas semelhantes, é um completo absurdo que só
ela seja acusada e ninguém mais.
Fala-se
que este caso abre precedente para que outros políticos, não só presidentes,
mas governadores e prefeitos sejam retirados de seus cargos pelos mesmos
motivos. O senhor acredita que isto seja possível?
Obviamente.
Mas, quando se diz esse tipo de coisa, nunca se toca no principal, que é a
questão da soberania popular. Quando você corrompe a nação, cria insegurança
jurídica. Quando você estava dizendo “isso vai criar uma jurisprudência”, é
apenas uma insegurança jurídica que é produzida quando se solapa a soberania
popular.
Mas,
de certa forma, não haveria —apesar de vários efeitos negativos— um efeito
positivo de outros políticos do executivo se sentirem agora menos confortáveis
em mexer a bel-prazer no orçamento daquilo que eles gerem?
Aí
a gente está pegando a noção de orçamento como se fosse um orçamento familiar,
em que a conta não pode faltar. A gente não pode entrar nessa discussão, que é
superficial. Ela está toda voltada para que nunca toque no que é fundamental.
Como
se houvesse um livro contábil, como a dona de casa que diz “eu recebi aqui e só
posso gastar isso”. Depende! Se o filho dela estiver doente, ela tem que pegar
emprestado, mesmo. Salvar uma vida é muito mais importante do que a eventual
composição de saldo.
Se
você estiver pegando dinheiro, porque a arrecadação tem seus ciclos, e está
adiantando o dinheiro para deixar com as famílias que estão passando fome. Uma
lei orçamental, que é instrumental, é ridícula nesse caso.
É
uma questão que fica ridícula, porque ela é montada para nunca tocar na questão
principal, que é um assalto. O ponto não são livros contábeis. Você vê o que
está contado, a questão importante é o fato de como uma elite com dinheiro pode
se apropriar do orçamento estatal.
É
uma elite que está usando seus dois braços práticos. O braço esquerdo é o
Congresso comprado, não passa nenhuma lei que lhe taxa. E a imprensa do outro
lado. Uma imprensa aliada desde sempre, comprada via propaganda, negócios e
negociatas.
Não
se torna um pouco paradoxal criticar as elites e ter uma pessoa como a senadora
Katia Abreu —uma representante das elites do agronegócio— defendendo a
ex-presidente?
Veja
bem… Num país capitalista, você tem que ter alguma forma de compromisso com os
capitalistas. Porque você não consegue… Exatamente como aconteceu com a
presidenta Dilma, por exemplo.
Foi
uma crise econômica politicamente produzida. Houve retração de investimento,
evasão fiscal… No tipo de capitalismo financeiro que temos, a riqueza inteira
vai pra essa capa superior. E como você não pode taxá-la, o Estado passa a
pedir emprestado via dívida pública. Essa é a elite.
O
fato de que algumas pessoas ricas ligadas a esse negócio ficaram com ela, isso
é secundário. Isso é uma leitura que fica na superficialidade, uma fofoca.
O
que importa aí é o jogo de uma elite financeira que está criando mecanismos de
drenagem sistemática de recursos da população como um todo. Esta, por sua vez,
não percebe como a taxa de juros funciona, ou como ela vai estar acoplada a
todos os bens e serviços que todas as classes consomem, e que vão mandar esse
excedente todo para os rentistas.
Algumas
políticas e posições econômicas do próprio governo do PT acabaram ajudando essa
elite. Por exemplo, usar o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES) pra financiar grandes empresários…
Que
a esquerda fez mil erros, fez. Não só esse. Foi ingenuamente republicana.
Aparelhou os partidos corporativos. Não teve uma leitura sobre a sociedade e
suas lutas. Não conseguiu montar uma hegemonia simbólica.
Os
erros da esquerda foram inúmeros. Não que essa seja a questão principal. A
presidenta Dilma, em termos de política econômica, teve a classe de
proprietários completamente contra ela a partir de abril de 2013.
Quando,
em 2012, fez um ataque à taxa de juros, esse é o ponto principal. Todas as
classes proprietárias — o comércio, o agronegócio, a indústria — aplicam seus
ganhos no rentismo. Todos eles fecharam fileiras contra a presidente. E quando
os juros voltam a subir em abril de 2013 e as manifestações ocorrem em junho,
tem uma união. A elite já tinha se construído em uma frente contra a presidente
usando seus braços: o Congresso e a imprensa.
Qual
a ação da imprensa nisso?
A
imprensa manipula, o Jornal Nacional manipula rebeliões locais e municipais e
federaliza isso para atingir a presidenta. A partir daí, tem o esquema do
golpe. Tenta-se primeiro uma saída, a eleitoral, em 2014. Depois, existe a
decisão por qualquer saída, mesmo que seja extra eleitoral.
Tem
uma narrativa do golpe que é montada a partir de interesses econômicos muito
claros e que não estão sendo percebidos nesta narrativa. Eles estão sendo
escondidos por conta de pessoas, personagens, uma novelização desse processo de
impeachment.
Recentemente,
a presidente Dilma admitiu uma certa inocência em ter escolhido Michel Temer
como se vice-presidente. Foi inocência ou falta de noção política, na época, em
não conhecer quem estava convidando para vice-presidente?
O
que aconteceu na esquerda em geral, chamo de economicismo. Montam um projeto
econômico, imaginam que a sociedade inteira vai mudar a partir disso, o que é
completamente ingênuo.
A
sociedade não muda e não consegue se ligar afetivamente. As classes que
ascenderam não saíram à rua para proteger esse projeto. Foram várias
ingenuidades nesse processo. Mas não podemos ficar nesse nível pessoal: “Ah, o
Temer, e tal”.
Sobre
programa econômico, existe uma diferença muito clara entre o de Dilma e o de
Lula. O atual ministro da fazenda, Henrique Meirelles, já foi presidente do
Banco Central no governo Lula, por exemplo. Era um dos principais nomes de seu
programa…
Isso
obviamente não foi uma escolha. Teve a ver com a opção do Lula: “Vou deixar o
rentismo intocado, porque não posso comprar essa briga com as classes
dominantes”. O rentismo, em todo lugar, mas especialmente aqui, é uma rapina,
são elites que não têm compromisso nacional.
Isso
é exploração de classe, que é tornada invisível pela imprensa, o real partido.
A imprensa conservadora, especialmente os grandes canais de televisão, cumprem
a função de partido. Nenhum partido conservador cumpre a função de arregimentar,
convencer. Quem cumpre é a imprensa, todos esses jornalistas econômicos são
pagos direta ou indiretamente pelo capital financeiro para dizer que isso é
controle da inflação. Para dizer que essa enorme extração de recursos serve
para um bem supostamente comum, e não para engordar o bolso de meia dúzia.
E
Lula percebeu isso, montou dentro do contexto de commodities: “eu deixo o
rentismo intocado para poder governar”. Claro, porque, se não, é golpe. Todas
as vezes que essa elite foi ameaçada, ela tirou o governo do poder. Nunca houve
governo minimamente de esquerda que não foi retirado antes. João Goulart sequer
chegou a tentar implementar, ele falou na reforma de base e já foi tirado.
Foi
ingenuidade do Lula, também, não entrar na briga contra o rentismo?
Não
acho que a ingenuidade do Lula tenha sido entrar num compromisso com o
rentismo. Como é que ele poderia fazer outra coisa?
O
Lula é como: “O dinheiro que sobrar desse boom de commodities, eu vou usar para
redistribuição aos pobres”. O que deveria ter feito: começa assim, porque, se
não, já sai do governo antes, mas encara algumas brigas. Ao menos ele montou
outros aspectos para poder, depois, se contrapor ao rentismo. Porque Dilma
tentou se contrapor ao rentismo, mas sem nenhuma base social.
Esse
foi o erro de Dilma?
Ela
não tinha a mediação da comunicação nas mãos. Estava fora dela, contra ela. E
ela não tinha o aparelho do Estado funcionando para a preservação do Estado
democrático. Era o aparelho do Estado funcionando através de partidos corporativos.
A imprensa ajudou nisso, é claro. A análise que faço do Jornal Nacional mostra
isso.
A
imprensa, então, é a chave para entender o impeachment?
A
briga principal é com a imprensa. Como ela está montada hoje, é o principal
entrave à democracia vigorosa. Não é uma imprensa, sequer tem a aparência de
tal. São programas com pessoas que pensam a mesma coisa, é uma distorção
sistemática da realidade. A nossa grande imprensa é uma imprensa de país
ditatorial.
Então
teria que ter intervindo para que o leitor pudesse ter ao menos opiniões de
alternativas distintas e pudesse se informar. Foi uma extraordinária
ingenuidade.
Não
soa perigoso falar sobre intervenção na imprensa?
Ninguém
é a favor do controle de imprensa. O fato é: tem países que, de alguma maneira,
conseguiram montar esse arranjo. O público tem que ter opiniões divergentes
sobre o mesmo assunto. E não tem isso aqui hoje. Ponto.
Os
canais de televisão são concessões públicas. Podem até ganhar dinheiro com
isso, mas eles têm que cumprir uma função pública, que é a multiplicidade de
opiniões. Isso é a base de qualquer democracia de massa. E a imprensa
brasileira não tem, a informação vem sempre de cima pra baixo.
A
democracia não é só voto, é o voto consciente. E o voto só pode ser consciente
se for contraposto a opiniões opostas. Qual é o grande órgão de comunicação
entre nós que mantém isso? Você conhece algum? Então…
Então
a questão seria criar incentivos para essas concessionárias abrirem espaços a
outras vozes?
Essa
é a única forma democrática de imprensa. Senão vira o que é no Brasil: uma
legitimação de interesses econômicos que não se confessa como tal. Você
distorce a realidade, simplesmente repete uma versão. E é isso que ditaduras
fazem.
A
minha principal crítica, a principal ingenuidade, tanto de Lula quanto de
Dilma, foi não ter percebido isso. Se você não percebe isso, é ingênuo
politicamente.
Dilma
pareceu mudar seu discurso nos últimos meses, inclusive admitindo erros, por
exemplo, de ter se fechado muito a diálogos, mesmo com quem a apoiava…
A
presidente Dilma é uma pessoa liberal sobre vários aspectos, mas tem uma
concepção economicista da sociedade. Ela acha que a única coisa importante é a
economia, que a economia iria produzir todos os outros efeitos de apoio.
Se
você vai comprar uma briga dessa com o rentismo, que é a principal força
econômica entre nós, é uma briga muito razoável. É incrível, uma sociedade tão
liberal como a nossa, sendo explorada de um modo pior do que os abutres fazem.
E agora é exatamente o que vai acontecer. O pré-sal, ao invés de ir para a
educação, vai para o bolso de meia dúzia. Esse é o grande exemplo do que está
acontecendo, já.
Vai
ser uma grande farra de meia dúzia. Vão botar no bolso o que foi construído ao
longo dos últimos 15 anos. Ao invés disso gerar emprego para milhões, gerar
chance de educação.
Mas
sua postura política parece ter sido repensada nos últimos meses. Foi tarde
demais?
Não
sei se isso agora vai servir para alguma coisa… Mas o fato dela estar vendo
pessoas, a situação mudou. É muito razoável que ela esteja agora contente com
esse apoio. Ela está se saindo como heroína injustiçada pela falta de
inteligência dos golpistas.
Não
sei se ela compreende efetivamente o que deveria ter efeito. Porque isso
implica numa leitura. A maior parte das pessoas imaginam que a economia é tudo,
o que é um negócio louco.
Por
exemplo, as pessoas falam que a crise econômica vai provocar algo. Crise
econômica em si não provoca coisa nenhuma em nenhum lugar. A interpretação da
crise, sim. As pessoas tendem a interpretar o mundo como se fosse esse jogo
apenas, tivesse a ver com dinheiro, coisas materiais.
Seria
porque a economia reflete diretamente no bolso do eleitor? E é uma coisa que
tem um impacto forte na hora das pessoas votarem, não?
Isso
é falso. Não existe impacto nenhum economicamente direto no bolso de ninguém.
Você tem sempre que interpretar. Suponhamos que a miséria em que a Alemanha
ficou após a Segunda Guerra Mundial foi interpretada: “Olha, a gente vai montar
aqui. Em 10 anos, vai ter frango na sua mesa. Em 15 anos, você vai ter carne de
boi”. Se você constrói um discurso que vai explicar o porquê da miséria ou por
que você está recebendo aquilo, essa interpretação é principal. Os seres
humanos são seres que se auto-interpretam, e a gente não percebe.
Mas
se entra um ciclo de inflação no qual o preço do feijão fica super alto, as
pessoas vão interpretar que isso é um momento e aceitar que daqui a cinco anos
vão poder comprar mais barato? As pessoas não são imediatistas?
E
por que são? Porque são abordados por uma imprensa que vai tender a perceber
isso do pior modo possível e que vai tentar transmitir isso do pior modo
possível. A situação econômica está sempre ligada à forma como ela vai ser
percebida, expressa, midializada. É a imprensa que vai tornar um assunto
escândalo ou não, ridículo ou não. Às vezes, ela cumpre uma função política
extremamente importante.
Nota:
[1]
Jessé de Souza é autor, entre outros, de A tolice da inteligência brasileira
(Casa da Palavra: 2015). (Nota da IHU On-Line).
Revista
ihu on-line
02
Setembro 2016
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/559668-o-pais-esta-entrando-no-pantano-diz-sociologo-jesse-de-souza
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