"Atentar
para a forma adquirida pelo racismo e pelo sexismo no interior do capitalismo
permite ao marxismo não ser engolfado pelo idealismo ou por esquemas mecânicos
que inviabilizam uma concepção verdadeiramente científica da sociedade."
Acaba
de ser lançada pela editora Boitempo a seminal obra Mulheres, raça e classe, de
Angela Davis. Originalmente publicado em 1981, o livro é responsável pela
emergência de uma nova perspectiva da questão de gênero, relacionando-a ao
racismo e às relações de classe. É, portanto, obra fundamental para a
formulação teórica e para a organização política do feminismo negro, que vem
ganhando cada vez mais importância. Nesse sentido, é importante destacar que a
edição brasileira é prefaciada por Djamila Ribeiro e conta com apresentação de
Rosane Borges, duas das mais destacadas intelectuais negras da atualidade.
Entretanto,
a importância de Mulheres, raça e classe ultrapassa as especificidades do feminismo
negro. Angela Davis coloca-nos diante de uma questão teórica das mais
relevantes e que atualmente tem sido negligenciada até mesmo pela tradição
marxista: a relação entre a reprodução da sociedade capitalista e a
constituição das subjetividades. O capitalismo é uma forma de sociabilidade
baseada na troca mercantil. Todavia, a troca mercantil capitalista é
determinada pela produção em que predomina a exploração do trabalho
assalariado. Predomina, o que não significa dizer que o trabalho assalariado é
a única forma de trabalho no capitalismo; como demonstra Davis, a escravidão e
a servidão articularam-se de modo singular com o capitalismo nas mais distintas
formações sociais, adaptando-se a diferentes realidades e costumes ou
simplesmente dissolvendo e destruindo tradições não compatíveis com a lógica do
capital. Assim, a divisão social e o conflito são marcas estruturais da
sociedade capitalista, uma sociedade que só pode ser compreendida se dividida
em classes, as classes em grupos, e os grupos em indivíduos, num processo
permanente de classificação de indivíduos e de grupos sociais por critérios de
pertencimento nacional, racial, sexual e de gênero que têm o Estado como
principal artífice – como é muito bem demonstrado em Estado e forma política,
de Alysson Mascaro (Boitempo, 2015).
Ao
acentuar gênero e raça como componentes essenciais da categoria “classe”,
Angela Davis contribuiu não apenas para a compreensão material do racismo e do
sexismo, mas para o entendimento do capitalismo como sistema social em que a
produção e a reprodução dos sujeitos, seja por meio da violência, seja por meio
da formação de consensos ideológicos, é absolutamente imprescindível para a
continuidade de uma vida social desintegrada e conflituosa.
Assim,
a importância de Mulheres, raça e classe transcende as perspectivas teóricas ou
práticas de grupos específicos e se mostra relevante para o marxismo enquanto
“método” ou “ciência da história”. Davis nos lembra que o marxismo tem como
prioridade o movimento do real da materialidade histórica, e por isso o
conceito de classe deve ser “elevado” em direção ao concreto. Classes são
formadas por indivíduos, cujas relações são determinadas pela lógica
capitalista da produção e pelas formas históricas de classificação racial ou
sexual. Atentar para a forma adquirida pelo racismo e pelo sexismo no interior
do capitalismo permite ao marxismo não ser engolfado pelo idealismo ou por
esquemas mecânicos que inviabilizam uma concepção verdadeiramente científica da
sociedade. Trata-se, portanto, de ponto de partida para o desafio de responder
à questão se a relação entre capitalismo, racismo e sexismo se explica por
fatores históricos (nunca houve capitalismo sem racismo e sexismo) ou lógicos
(não há capitalismo sem racismo e sexismo).
Em
um momento de grande incerteza e fragmentação da luta política, Mulher, raça e
classe revela em nível teórico que as lutas políticas antirracistas e
feministas, ainda que guardem especificidades, estão irremediavelmente
conectadas entre si, e que nenhuma das duas pode ser efetiva sem a formulação
de estratégias anticapitalistas.
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Silvio Luiz de Almeida é
natural de São Paulo, capital. Jurista e filósofo, doutor em filosofia e teoria
geral do direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo
São Francisco), é autor, entre outros de Sartre: direito e política: ontologia,
liberdade, revolução. Recentemente, coordenou o dossiê especial sobre “Marxismo
e a questão racial” na edição #27 da revista semestral da Boitempo, a Margem
Esquerda. Atualmente Preside o Instituto Luiz Gama, entidade com atuação na
área direitos humanos e leciona nas Faculdades de Direito da Universidade
Presbiteriana Mackenzie e da Universidade São Judas Tadeu. Colabora com o Blog
da Boitempo mensalmente, às quartas.
https://blogdaboitempo.com.br/2016/09/26/o-marxismo-de-angela-davis/?utm_content=buffer46672&utm_medium=social&utm_source=twitter.com&utm_campaign=buffer
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