Pela
segunda vez, nas últimas horas, a política conduziu-me à infância.
Os
militares que tomaram o poder em 64, tal como o Michel Temer de hoje, ficavam
furiosos ao serem chamados pelo que eram: golpistas.
E,
como não tínhamos o chique anglicismo do “impeachment”, surgiram os nomes
populares, grandiosamente irônicos: Revolução, Redentora, Gloriosa e, quando
queriam ser formais, “Movimento Cívico-Militar”, que era o único lugar em que
os civis vinham antes dos militares.
As
coisas tinham outros nomes: os delatores premiados eram mesmo “dedo-duros” mas
não deixavade ser premiados: subiam nas carreiras denunciando os chefes por
simpatias esquerdistas. O “lulopetismo” era “a república sindicalista” e a
Venezuela, coitada, tomou o lugar da União Soviética…
Jânio
de Freitas, que o viu já sem as nuvens da infância como eu, conta melhor esta
história, que começou ontem, os seus primeiros arreganhos.
Nenhum
golpista já admitiu ser golpista
Janio
de Freitas, na Folha
Em
inúmeras vezes, nas sessões do impeachment que presidiu, o ministro Ricardo
Lewandowski disse ao plenário, com pequenas variações de forma: “Neste
julgamento, os senadores e senadoras são juízes, estão julgando”. Entre os 81
juízes, mais de 70 declaravam o seu voto há semanas, e o confirmaram na
prática. Um princípio clássico do direito, porém, dá como vicioso e sujeito à
invalidação o julgamento de juiz que assuma posição antecipada sobre a acusação
a ser julgada. O que houve no hospício –assim o Senado foi identificado por seu
presidente, Renan Calheiros– não foi um julgamento.
Os
que negam o golpe o fazem como todos os seus antecessores em todos os tempos:
nenhum golpista admitiu ser participante ou apoiador de um golpe. Desde o seu
primeiro momento e ainda pelos seus remanescentes, o golpe de 1964, por
exemplo, foi chamado por seus adeptos de “Revolução Democrática de 64”. Alguns,
com certo pudor, às vezes disseram ser uma revolução preventiva. É o que faz
agora, esquerdista extremado naquele tempo, o deputado José Aníbal, do PSDB,
sobre a derrubada de Dilma: “É a democracia se protegendo”. Dentre os possíveis
exemplos pessoais, talvez nenhum iguale Carlos Lacerda, que dedicou a maior
parte da vida ao golpismo, mas não deixou de reagir com fúria se chamado de
golpista.
As
perícias e as evidências negaram fundamento nas duas acusações utilizadas para
o processo do impeachment de Dilma. As negações foram ignoradas no Senado, em
escancarada distorção do processo. Para disfarçar essa violência, foi propagada
a ideia de que a maioria dos senadores apoiaria o impeachment levada pelo
“conjunto da obra” de Dilma: a crise econômica, as dificuldades da indústria, o
aumento do desemprego, o deficit fiscal, a suspensão de obras públicas, as
dificuldades financeiras dos Estados e outros itens citados no Congresso e na
imprensa.
Se
os deputados e senadores se preocupassem mesmo com esses temas do “conjunto da
obra”, teríamos o Congresso que desejamos. E os jornais, a TV e os seus
jornalistas estariam sempre mentindo com suas críticas, como normal geral e
diária, sobre a realidade da política e dos políticos.
Nem
as tais pedaladas e os créditos suplementares, desmoralizados por perícias e
evidências, nem o “conjunto da obra”, cujos temas não figuram nos interesses da
maioria absoluta dos parlamentares, deram base para acusações respeitáveis em
um processo e um julgamento. Se, no entanto, envoltos por sofismas e
manipulações, serviram para derrubar uma presidente, houve um processo, um
julgamento e uma acusação ilegítimos –um golpe parlamentar. Os que o efetivaram
ou apoiaram podem chamá-lo como quiserem, mas foi apenas isto e seu nome
verdadeiro é só este: golpe.
Esse
desastre institucional contém, apesar de tudo, um ponto positivo. A conduta dos
militares das três Forças, durante toda a crise até aqui, foi invejavelmente
perfeita. Do ponto de vista formal e como participação no esforço
democratizante que civis da política e do empresariado estão interrompendo.
O
pronunciamento de ex-presidente feito por Dilma corresponde à aspiração de
grande parte do país. Mas a tarefa implícita no seu “até daqui a pouco”
exigiria, em princípio, mais do que as condições atuais da nova oposição podem
oferecer-lhe, no seu esfacelamento. À vista do que são Michel Temer e os seus
principais coadjuvantes, não cabem dúvidas de que os oposicionistas podem
esperar muita contribuição do governo. Mas o dispositivo de apoio à situação
conquistada será, a partir da Lava Jato, de meios de comunicação e do capital
proveniente de empresários, uma barreira sem cuidado com limites.
Desde
ontem, o Brasil é outro.
http://www.tijolaco.com.br/blog/o-golpista-nao-tolera-e-ouvir-que-e-um-golpista/
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