O
Massacre do Carandiru, quando 111 presos foram executados por forças policiais
que invadiram o Pavilhão 9 da então Casa de Detenção de São Paulo, completa, no
próximo dia 2 de outubro, 24 anos. Durante os julgamentos, eu havia escrito
aqui que a Justiça estava sendo – mesmo que parcialmente e temporariamente –
feita. Mas, nesta terça (27), a 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de
São Paulo anulou os julgamentos que condenaram 74 policiais militares pelo
massacre.
Ou
seja, voltamos à situação ''normal'' de impunidade policial. Ufa! Eu estava
estranhando. Afinal de contas, estamos no Brasil.
O
desembargador Ivan Sartori, relator do processo, votou não só pela anulação,
mas também pela absolvição dos réus – o que contraria, segundo juristas, o
Código de Processo Penal, por ir de encontro à decisão de um júri popular.
Segundo ele, ''não houve massacre'', mas ''legítima defesa''. E, de forma
intrigante, Sartori, um magistrado, que tem a função de resguardar a dignidade
conforme previsto na Constituição Federal, parece se colocar do outro lado:
''Nós julgadores não podemos nos influenciar por imprensa ou por quem se diz
dos direitos humanos''. Mas se ele não é dos ''direitos humanos'', resguardados
pelo artigo 5o de nossa Carta Magna, de que lado ele está?
Agora
uma nova sessão vai ser convocada com mais dois desembargadores, totalizando
cinco magistrados, que irão votar sobre a anulação e a absolvição. O Ministério
Público vai entrar com um recurso junto ao Superior Tribunal de Justiça para
manter as condenações.
Ironia
à parte, sinto um desalento. Pois, vou repetir o que já escrevi aqui, isso
mostra que carne de pobre continua sendo de segunda e soluções rasas e mágicas
para problemas complexos, como o da segurança pública, seguem sendo a
preferência do eleitorado e da classe política. Haja visto o nível baixo dos
debates e das propagandas eleitorais sobre o assunto.
Na
época de uma das etapas do julgamento que condenou dezenas de policiais, os
promotores Fernando da Silva e Márcio Friggi, responsáveis pela acusação,
afirmaram que o mais difícil não seria a questão de provas materiais, mas sim
desconstruir a ideia perversa de que “bandido bom é bandido morto”.
Eles
estavam certos. Ideia que corrói não apenas a sociedade, mas as instituições
criadas para evitar que nos matemos uns aos outros. O Estado deve nos proteger,
não nos ferir ou nos matar, independentemente de quem sejamos ou do que
tenhamos feito. A polícia não deve estar em guerra com seu próprio povo e o seu
primeiro objetivo é proteger vidas e não patrimônio.
Sei
que isso é difícil de entender no Brasil, onde pessoas são espancadas até a
morte por roubar coxinha no mercado (e isso não foi figura de linguagem).
Ou
onde o risco de ser alvejado em um ''confronto policial'' é inversamente
proporcional à sua renda. Pois se já é duro viver em um lugar tomado pela
violência relacionada ao tráfico, é pior ainda quando a polícia vê aquilo como
território a ser conquistado – e, portanto, como ação passível de ''baixas''
civis. Ou, pior: como espaço para a realização de ganhos pessoais.
Portanto,
de acordo com a lógica do desembargador Ivan Sartori, um grupos de policiais
que chega atirando em uma comunidade pobre da periferia, sob a justificativa de
combater traficantes, e mata crianças e adultos, está praticando ''legítima
defesa''?
E
mesmo que essas condenações sejam confirmadas pelo TJ ou pelo STJ, o que pode
levar anos em recursos, a Justiça nunca será completa. Porque um dos
responsáveis pelo massacre nunca poderá ser punido, uma vez que a alma do
coronel Ubiratan Guimarães foi para o brejo cedo demais. Foi assassinado em
2006 e, numa espécie de anedota da vida, ninguém foi condenado pelo crime até
hoje. Estava a caminho de ser facilmente reeleito como deputado estadual,
ironizando o país ao candidatar-se com o número 14.111.
Ele
chegou a ser sentenciado, em 2001, a 632 anos de prisão pela responsabilidade
direta em 102 mortes. Cinco anos depois, o Tribunal de Justiça de São Paulo
aceitou um recurso e o absolveu, gerando protestos dentro e fora do Brasil. A
defesa de Ubiratan afirmou que ele estaria agindo no ''estrito cumprimento do
dever'' quando ordenou a invasão do Pavilhão 9.
Cumprindo
ordens. A mesma justificativa dos nazistas no Tribunal de Nuremberg.
Seus
chefes, Pedro Franco de Campos e Luiz Antônio Fleury Filho, então secretário de
Segurança Pública e governador do Estado de São Paulo, não são réus no caso.
Mas
se fossem, poderiam alegar o mesmo: ''estrito cumprimento do dever''. Pois,
como já disse aqui, o que ocorreu naquele 2 de outubro de 1992 foi um
servicinho sujo que parte de nós, brasileiros, desejava (e ainda deseja) em
seus sonhos mais íntimos: que bandido esteja morto e não reintegrado à
sociedade. Tanto que, na época do julgamento, após a leitura da sentença, Ieda
Ribeiro de Souza, uma das advogadas de defesa, foi de uma sinceridade
contundente: ''Não é essa a vontade da sociedade brasileira”.
Para
muita gente, essas limpezas sumárias são lindas, sejam as feitas pelas mãos da
população, seja pelas do próprio Estado, ao caçar traficantes em morros
cariocas ou na periferia da capital paulista.
De
fato, nem precisa ser traficante. Jovem, negro e pobre é suspeito. E para que
correr o risco de manter suspeitos por aí, não é mesmo?
Lembrar
de casos como o do Carandiru é importante para que a sociedade consiga saldar
as contas com seu passado, revelando-o, discutindo-o, entendendo-o. Para evitar
que ele aconteça de novo. Mais do que um país sem memória e com pouca Justiça,
temos diante de nós um Brasil conivente com a violência como principal
instrumento de ação policial.
Pois,
ao contrário de outros países, o Brasil não conseguiu tratar suas feridas para
que cicatrizassem em nossa redemocratização. Apenas as tapou com a cordialidade
que nos é peculiar, o bom e velho, deixa-pra-lá, em nome de um suposto
equilíbrio e da governabilidade. Dessa forma, o Estado não deixou claro aos
seus quadros que usar da violência, torturar, matar e esfolar mulheres
arrastando-as por ruas, presas a uma viatura policial não são coisas
aceitáveis. Como eram durante a ditadura cívico-militar.
Não
é de estranhar que boa parte da sociedade que grita que “bandido bom é bandido
morto” também esteja entre os 9 em cada 10 que concordam com a redução da
maioridade penal para os 16 anos, mas pouco discute políticas para garantir
dignidade aos jovens. Quem sabe se a redução tivesse sido aprovada antes de
1992, não teríamos montanhas de corpos de adolescentes no Pavilhão 9, como
''ação preventiva'' para o futuro, não?
Ou
fique radiante com as ações truculentas da polícia militar na Cracolândia do Centro
de São Paulo e não queira debater a questão sob uma ótica de saúde pública.
''Mata esses craqueiros, mata!''
São
as mesmas pessoas que, no fundo, pensam “Bem feito!” ao lembrar dos 19
sem-terra mortos na Chacina de Eldorado dos Carajás, no Pará, em 1996, não se
importando com a grilagem de terras ou a fome no interior do país. ''Quem manda
invadir terra dos outros?''
Ou
escreve coisas como: ''Ah, se esses morreram na chacina em Osasco e Barueri é
porque alguma culpa tinham. Inocente certamente não eram'', como estava
circulando pelas redes sociais sobre o ocorrido, em agosto do no ano passado,
na região metropolitana de São Paulo. Não se incomodam com o fato de existirem
cidadãos de primeira e segunda classe, com um abismo de direitos entre eles. São
seguidores da doutrina: ''se você apanhou da polícia é porque alguma culpa
tem'' e sua variante ''se você passa fome é porque não trabalha''.
A
verdade é que a polícia não faz o que quer. Faz o que programamos ela para
fazer.
Boa
parte da população, apavorada pelo discurso do medo, mais do que pela violência
em si, tem adotado a triste opção de ver o Estado de direito com nojo. Chega de
julgamentos longos e com chances dos canalhas se safarem ou de ''alimentar
bandido'' em casas de detenção. Execute-os com um tiro, de preferência na nuca
para não gastar muita bala, e resolve-se tudo por ali mesmo.
O
que anos de políticos imbecis, apresentadores de TV safados e estruturas que
pregam a violência como nosso cimento social (como certas famílias, igrejas,
escolas e veículos de comunicação) têm pavimentado dificilmente será
desconstruído do dia para a noite.
Mas
devemos perseverar.
Ao
criticar execuções públicas de pessoas que estão sob a tutela do Estado, não
defendemos ''bandido'', mas sim o pacto que os membros da sociedade fizeram
entre si para poderem conviver (minimamente) em harmonia. Em suma, abrimos mão
de resolver as coisas de forma sumária para impedir que nos devoremos. Pois o
Estado não pode usar os mesmos métodos dos bandidos sob a pena de se tornar
pior do que ele.
Do
meu ponto de vista, Justiça divina não existe. O universo não conspira a favor
ou contra nada. Por isso, desejo tanto que nossa Justiça funcione aqui e agora.
O
nosso país é incrível. Quando um juiz resolve julgar processos relacionados à
escravização de trabalhadores em fazendas no interior do país e condenar com
base em provas, não apenas convicções, ele é considerado um ''ativista''.
Quando um magistrado dá declarações polêmicas em um claro ativismo
pró-absolvição contra o que decidiu o soberano júri popular, ele está apenas
agindo conforme sua consciência. Vai, Brasil!
Agora,
falta garantir Justiça aos executores do Massacre do Carandiru. Mas também
falta julgar as autoridades nele envolvidas, os mandantes do Massacre de
Eldorado dos Carajás, os envolvidos nos assassinatos de trabalhadores rurais,
indígenas, quilombolas e ribeirinhos em conflitos agrários, quem pagou
policiais para serem jagunços e pistoleiros nas horas de folga, os que
ordenaram massacres de sem-teto e de população em situação de rua, quem matou
homossexuais e transexuais por não conseguir conviver com eles (e os que se
negaram a investigar, arquivando muita coisa como ''suicídio'' ou ''morte em
briga'' a fim de que os ''homens de bem'' dormissem tranquilos), os que
mandaram executar jovens negros e pobres na periferia de grandes cidades, os
que aceitaram que tudo fosse registrado como ''autos de resistência'', as
milícias matadoras de policiais que, não raro, encontram respaldo institucional
e empresarial.
Falta,
na verdade, construir um povo. E um país.
http://altamiroborges.blogspot.com.br/2016/09/massacre-do-carandiru-e-legitima-defesa.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário