Tramita
desde 2015 um projeto de lei na Câmara dos Deputados criminalizando o professor
que manifestar convicção política nas aulas (PL 1.411/2015), chamando isto de
"assédio ideológico". Em julho de 2016 a proposta recebeu parecer
favorável na Comissão de Educação da Câmara, embora com apresentação de um
substitutivo. E ainda tramita um outro (PL 867/2015) proibindo-o de abordar
conteúdos que possam estar em conflito com as convicções religiosas e morais
dos pais dos estudantes, nisto incluído, no limite, falar da teoria da evolução
das espécies e de sexualidade.
Este
último, que pretende incluir, entre as diretrizes e bases da educação nacional,
o "Programa Escola sem Partido", foi, entre os meses de maio e agosto
de 2016, apensado a dois outros projetos semelhantes, o 6.005/2016 e o
7.180/2014. Este tem o declarado objetivo de incluir “entre os princípios do
ensino o respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, dando
precedência aos valores de ordem familiar sobre a educação escolar nos aspectos
relacionados à educação moral, sexual e religiosa”. O programa “Escola sem
Partido” é também objeto do Projeto de Lei do Senado de número 193/2016, que
pretende alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Na
Assembléia Legislativa de S. Paulo a proposta recebeu parecer contrário na
Comissão de Educação.
A
pretensão de instituir o programa “Escola Sem Partido” já proporcionou
manifestações de repúdio de parte de praticamente todos os atores do processo
de ensino-aprendizagem. Protestando contra a idéia de uma higienização do
ensino, a presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas, Camila Lanes,
disse: “queremos uma escola voltada para a nossa realidade e sem mordaça”. De
seu lado, a professora e sindicalisa Marilene Betros, denuncia que o programa
“não tem fundamento pedagógico e visa apenas a doutrinação da juventude por
valores misóginos, machistas, homofóbicos e ultra-reacionários”. Para ela, que
foi ouvida pelo periódico Olho Crítico (2016, p. 8), “não existe educação sem
liberdade, sem diálogo”. De sua vez, Ísis Tavares, dirigente da Central dos
Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil, aponta a iniciativa como tentativa da
elite em “restringir o pensamento a uma única possibilidade” (ibidem).
Na
opinião do professor do Departamento de Educação da Universidade Federal de São
Carlos, João Virgílio Tagliavini, em depoimento ao autor, “todo ponto de vista
é a vista de um ponto; escola sem partido é escola a serviço do ponto de vista
dominante” (2016).
Ante
a hipotética aprovação de alguma dessas propostas, o professor terá que falar
de política fora da sala de aula: no pátio, nos corredores, na lanchonete, na
rua. É certo que, enquanto professor, estará obrigado a promover a educação dos
alunos, que é um direito fundamental consagrado na Convenção Americana de
Direitos Humanos. E a educação é necessariamente política, como dizia Paulo
Freire. Ela só será plena se o educador ensinar ao educando que é preciso ler o
mundo, ler a vida e finalmente ler o livro, nesta ordem cronológica. Ou o livro
não será compreendido.
Não
há mesmo como a educação não ser política, eis que, por definição, ela haverá
de ser emancipadora: e não é possível emancipar sem apontar ao educando as
relações de poder e a ação humana na polis, pois este é o mundo do qual ele faz
parte. A emancipação é o traço que marca a plenitude do indivíduo, assim
tornado pessoa. Portanto não é possível a um estado democrático proibir o trato
da política pelos educadores. Claro que, quanto a aspectos religiosos
específicos, deve ser respeitada a convicção do educando.
Mas
respeitar não significa suprimir a abordagem do assunto, sob risco de se
implantar uma cultura educacional capenga, em que alguns caminhos da ciência
estejam interditados. Se o professor não abordar poder, dominação, sexualidade,
evolução das espécies e outros assuntos tão políticos quanto estes, estará
descumprindo aquela convenção internacional, assinada pelo Brasil. Aí sim, será
um infrator.
A
escola deve, ou deveria, ser um espaço para o desenvolvimento da ciência. Mas o
que vemos, no mais das vezes, é a sua utilização como reprodutora dos valores
dominantes no modelo vigente. Professores de escola pública queixam-se de que
muitos alunos replicam discursos excludentes, manifestando um ódio que vai dos
nordestinos ao bolsa família. Em suma, o educando é incentivado a prezar a
propriedade privada, a identificar sucesso com aquisição do supérfluo e a
considerar o mercado como a principal referência para as opções políticas a
serem adotadas. Isso é doutrinação pura, mas não consta registro de qualquer
projeto proibindo tal prática.
Vista
a questão num sobrevôo, o latifúndio foi a base da exploração do Brasil-colônia
e deixou marcas profundas na nossa cultura: o todo poderoso senhor do engenho,
o senhor de escravos, é hoje o dono do banco, da fazenda, da fábrica, tratado
de "doutor" e exaltado pelos que explora, com o amparo da mídia, das
novelas, da escola. O idioma português falado no Brasil consagra ao
interlocutor, se necessária alguma cerimônia, o tratamento de
"senhor" (ao invés do "vosmecê" português, do
"lei" italiano, do "usted" espanhol, do "you"
inglês etc.).
Ou
seja, equipara-se o interlocutor ao proprietário de escravos e se confunde
respeito com subserviência. Tudo isto o latifúndio, expressão máxima da
propriedade privada, nos legou e nos impõe até hoje.
Os
projetos “escola sem partido” constituem, isto sim, outra expressão de um
pensamento autoritário plasmado num cenário de respeito ao status quo, assim
entendido como o da dominação exercida pelo senhor da propriedade privada. Este
é tratado como principal referência para a aceitação de um tipo de educação
voltada a conservar as regras estabelecidas sem grandes questionamentos.
A
crítica ao modelo autoritário de sociedade é necessária e a escola é o locus
apropriado para essa crítica. A sociedade autoritária privilegia o mando, puro
e simples, legitimado quase somente pela propriedade privada, que entrona
coronéis e “doutores”. Ela também é excludente, na medida em que afasta do
centro decisório quaisquer forças que não se assentem na posse de recursos
econômicos de vulto.
Essa
crítica representa ação em favor da igualdade de direitos e da liberdade
individual, assim também do atendimento às necessidades coletivas básicas, como
proclamado em tratados e na Constituição brasileira. Situa-se, portanto, na
seara de uma educação voltada para os direitos humanos, cujos objetivos são a
capacitação de cada indivíduo para conhecer e cobrar seus direitos
fundamentais, assim também para fomentar uma cultura habituada a se mobilizar
pela plena efetivação desses direitos.
É
à escola e ao educador que compete o desvendamento da realidade de dependência
das massas vulneráveis, sujeitas, mais que outras, à violência da sociedade
comandada pelo senhor, com o beneplácito do Estado e seu aparato repressivo.
A
“escola sem partido”, na verdade uma escola sem política, amordaçada, significa
a proibição do debate próprio à polis. Este é o debate que demarca o espaço
público de participação do indivíduo, que somente aí encontra sua emancipação,
assinalada pelo discurso de quem atua nos destinos da sociedade. A mordaça
sobre a escola e sobre o educador interdita ao educando o caminho da sua plena
realização como pessoa.
Plínio
Gentil é procurador de Justiça no estado de São Paulo, doutor em Direito
(PUC-SP) e em Educação (UFSCar) e professor de Direitos Humanos (PUC-SP) e
Direito Penal (Unip). Integrante do Movimento do Ministério Público
Democrático, é coautor do livro "Crimes Contra a Dignidade Sexual".
Revista
Consultor Jurídico
http://www.conjur.com.br/2016-set-05/mp-debate-escola-partido-mordaca-realizacao-plena-educando
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