Aos
45 anos, Fábio Kerche é um especialista num assunto que muitos debatem e poucos
estudaram no Brasil de 2016 -- o papel político do Ministério Público, criador
da Força-Tarefa que conduziu a Lava Jato ao lado de Sérgio Moro. Doutor em
Ciência Política pela USP e pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa, Kerche
acaba de mudar-se para Washington, onde irá fazer um pos-doutorado no Research
Fellow program no Centro para a América Latina da American University. Antes
disso, ele ocupou diferentes cargos na área de comunicação nos governos Lula e
Dilma, chegando a ser, por um curto período, secretário de imprensa da
Presidência da República. Em 2009, ele publicou, pela EDUSP, o livro
"Virtudes e Limites: autonomia e atribuições do Ministério Público no
Brasil". Aqui, a primeira parte de
sua entrevista:
BRASIL
247 -- No livro "Virtude e Limites" você faz um histórico da luta dos
procuradores, durante a Constituinte, para conquistar um grau de autonomia
desconhecido na maioria dos países democráticos. Qual era a motivação dos
procuradores para atuar dessa maneira?
KERCHE
- A experiência de todos os países mostra que todas as burocracias e agências
estatais desejem mais autonomia e mais poder. Isso é normal. O que não é comum
é elas conseguirem. O Ministério Público fez um lobby bastante organizado
durante a Assembleia Constituinte de 1987 e 1988, mas suas demandas foram
atendidas porque elas iam ao encontro do desejo dos parlamentares
constituintes. A Constituição foi generosa em direitos coletivos e parecia
fazer sentido ter uma instituição responsável por exigir que esses direitos
fossem observados. Poucos votaram contra o projeto. O problema é que os
constituintes não observaram a premissa básica da democracia em relação aos
promotores e procuradores: todos os atores políticos, eleitos e não eleitos,
precisam prestar contas de seus atos e serem passíveis de punição por eventuais
desvios.
BRASIL
247 -- No Brasil de hoje, a força-
tarefa da Lava Jato tem uma importância política muito superior àquilo que se
poderia imaginar em 1988. Como isso funciona?
KERCHE
-- Esse protagonismo é uma novidade em si. Como mostram estudos do professor Rogério
Arantes, até há pouco o combate à corrupção era realizado principalmente pelos
Ministérios Públicos estaduais por meio da ação civil pública. Era bastante
comum acompanhar ação de promotores de Justiça de alguns ministérios públicos
estaduais junto a prefeitos acusados de corrupção. Esse tipo de atuação do MPF,
hoje, lançando mão de uma ação penal, fazendo uma aliança com a Polícia Federal
e com parte do Judiciário, é uma novidade.
BRASIL
247 -- Como isso aconteceu?
KERCHE
-- Os procuradores da República estão mais poderosos por conta de instrumentos
que não foram previstos na Constituição, mas que foram introduzidos durante os
governos petistas. Uma delas é a nova forma de indicação do Procurador Geral da
República, com base no compromisso de que o primeiro colocado numa lista
tríplice irá assumir o cargo que tem a prerrogativa de apresentar denúncia
contra o presidente, ministros de Estado, parlamentares federais. Mais tarde,
tivemos a nova lei de delação premiada, que deu um poder tremendo ao trabalho
de investigação, cobrando um preço equivalente em matéria de direitos e
garantias individuais. Numa demonstração enorme de poder, a liberdade de cada cidadão, este valor que
gostamos de acreditar que não tem preço, é negociada em função de sua disposição
para delatar. Quem não perdeu a memória do regime militar sabe que isso não tem
preço.
BRASIL
247 -- Qual o traço principal dessa atuação?
KERCHE
-- Eu acho difícil de negar que assistimos hoje, na Lava Jato, a uma atuação
que favorece um dos campos de nosso sistema político. Não é uma queixa dos
petistas. É um fato.
BRASIL
247 -- Qual a origem disso?
KERCHE
-- Seguimos um modelo que dá grande
autonomia a agentes não eleitos do Estado. Na prática, rompemos com a divisão
de tarefas entre as instituições que compõem o sistema de Justiça, arranhando
um instrumento de pesos e contrapesos criados pelos constituintes em que a
polícia investigava, o MP apresentava o caso ao Judiciário, e o juiz julgava.
Essa divisão de tarefas era a melhor garantia contra um trabalho baseado numa
visão única sobre qualquer investigação. Favorecia o contraditório, o
necessário debate de opiniões. Impedia, enfim, um pensamento único no trabalho
da Justiça e da Polícia. Mas agora, legislando contra a vontade dos
constituintes, o STF decidiu que os promotores podem conduzir o inquérito
penal.
BRASIL
247 -- Qual o papel do PGR Rodrigo Janot nessa situação?
KERCHE
-- Um dos poucos instrumentos institucionais que protegem um cidadão contra o
poder de um membro do Ministério Público é o princípio do promotor natural. Por
este princípio, um promotor não pode ser indicado pelo Procurador Geral para
acusar alguém. Se uma pessoa atirou em alguém em Botucatu, para lembrar da
minha cidade, somente o promotor local pode levar o assassino a julgamento. A
ideia é que o acaso ajude a limitar eventuais perseguições contra um cidadão em
particular.
BRASIL
247 -- Isso também mudou?
KERCHE
-- É possível argumentar que a criação pelo Procurador Geral de forças tarefas,
como a da Lava Jato, seja uma forma de contornar esse princípio. Janot tem que
dar aval para que um grupo de procuradores, não necessariamente aqueles
designados previamente ao delito por meio do acaso, possa atuar em questões de
forte impacto político. Ministérios Públicos estaduais já faziam algo
semelhante na década passada por meio de grupos especiais, criados para
combater crimes de grande repercussão pública e de maior complexidade. A
diferença que aqueles eram grupos permanentes, enquanto as força tarefas são
provisórias. É importante lembrar que o Ministério Público é uma instituição
pouco hierarquizada. Seus membros tem ampla liberdade de atuação mesmo em
relação ao Procurador Geral. As força tarefas e os grupos especiais são
tentativas dos procuradores gerais de buscar construir uma certa uniformidade
na atuação e impor sua marca e prioridades. Esse tipo de iniciativa seria mais
razoável se houvesse instrumentos regulares e eficazes de prestação de contas
por parte do Ministério Público e do próprio Procurador Geral.
BRASIL
247 -- Qual o problema do modelo em vigor? O que está na origem deste modelo?
KERCHE
-- Como sempre, pode-se falar em vantagens e desvantagens. Procura-se garantir
autonomia e poder para se combater a corrupção sem a interferência de
ingerências políticas indevidas. A contrapartida é que, sem a necessária
prestação de contas a outras instituições, o risco de parcialidade é muito
grande.
BRASIL
247 -- A ideia de prestação de contas é novidade?
KERCHE
-- É uma das exigências mais conhecidas e mais antigas do mundo político. James
Madison, que foi quarto presidente dos Estados Unidos, governando o país entre
1809 e 1816, tornando-se um dos fundadores da democracia norte-americana, dizia
que se os homens fossem anjos, os governos não seriam necessários.
BRASIL
247 -- O ingresso no MP é feito por concurso público. Não é uma forma de
controle?
KERCHE
-- Os membros do Ministério Público não ganham asas angelicais quando são
aprovados em um concurso público. Sabemos que todo cidadão, seja o jornalista,
o médico, o procurador, tem valores e convicções, que alimentam a riqueza dos
regimes democráticos. O problema é que o modelo permite -- num grau excessivo,
vamos admitir -- que os procuradores,
tomem decisões motivadas, muitas vezes, por valores e crenças pessoais,
e não baseados em obrigações institucionais. Instituições deveriam moldar
comportamentos e não é isso que ocorre no modelo criado em 1988 e incrementado
nos governos petistas.
(Nesta
sexta-feira, na segunda parte da entrevista, Fábio Kerche avalia a lógica
política do MP, que agradou o Planalto sob FHC, cortejou os votos da corporação
sob Lula e pode procurar uma acomodação num eventual governo Temer)
http://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/250414/%E2%80%9CMinist%C3%A9rio-P%C3%BAbico-n%C3%A3o-%C3%A9-feito-de-anjos%E2%80%9D.htm
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