Depois
de cumprir pena na Ação Penal 470, o ex-deputado João Paulo Cunha se prepara
para exercer a advocacia, deixando de lado a política; ex-presidente da Câmara,
ele condena a servidão dos deputados ao Judiciário; "O empoderamento do
Poder Judiciário em detrimento do Executivo e do Legislativo me preocupa.
Olhando de outra forma: o Legislativo, ao se submeter, é quase uma escravidão
voluntária, né? Ele próprio abre mão de algumas atribuições que
constitucionalmente lhe são delegadas. E o Judiciário, por várias razões, vive
uma crise muito grande. Portanto, como espectador, acho que é preciso
reequilibrar as forças dos Três Poderes"
Por
Pedro Canário, do Conjur
Passados
quatro anos desde que a Ação Penal 470, o processo do mensalão, foi julgado, o
ex-deputado federal pelo PT de São Paulo João Paulo Cunha olha para frente. Ele
está na expectativa de receber seu registro na Ordem dos Advogados do Brasil
para finalmente poder se dizer um advogado.
“Não
estou mais no mundo da política, nem quero mais. Quero poder exercer com
bastante seriedade e profundidade a advocacia”, diz, em entrevista à revista
Consultor Jurídico. Cunha trabalha há um ano e meio no escritório Luís
Alexandre Rassi & Romero Ferraz Advogados, uma banca de criminalistas que
atua nos principais processos penais em curso no país, como a operação “lava
jato”, que investiga corrupção em contratos da Petrobras, e a operação zelotes,
que apura denúncias de corrupção no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais
do Ministério da Fazenda (Carf).
Ex-presidente
da Câmara e um dos principais responsáveis pela aprovação da Emenda
Constitucional 45/2004, João Paulo Cunha conhece os poderes por dentro. Foi um
dos protagonistas do espetáculo que foi o julgamento da AP 470: condenado por
peculato no mensalão, cumpriu dois terços de sua pena e recebeu o perdão
judicial do Supremo Tribunal Federal. Já não tem mais pendências com a Justiça,
portanto.
Por
isso, pretende escrever um novo capítulo da vida por meio da advocacia — embora
enfrente um processo atipicamente longo para ver seu pedido de registro na
Ordem aprovado pela seccional do Distrito Federal da OAB. O ex-deputado já
caminha rumo ao segundo semestre da pós-graduação em Direito Constitucional,
que cursa no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).
Da
vida pregressa, pretende deixar só produtos editoriais. Já lançou Quatro, uma
coletânea de poemas escritos enquanto estava preso lançada pela editora Topbooks.
E em breve lançará um livro de memórias do tempo em que cumpriu pena por sua
condenação no mensalão.
Leia a
entrevista:
ConJur
— O senhor está agora na expectativa de receber a carteira da OAB. O próximo
passo é advogar?
João
Paulo Cunha — Terminei o curso de Direito cumprindo pena, a que foi imposta na
Ação Penal 470, prestei o exame de Ordem e passei na primeira tentativa. E fiz
o pedido de inscrição na OAB. Estou aguardando a liberação da minha carteira, o
meu número de inscrição da OAB do Distrito Federal. Só não sei ainda se vou
advogar. Posso advogar, estudar, fazer qualquer coisa, mas ter a inscrição e o
reconhecimento da Ordem é muito importante para mim.
ConJur
— Já decidiu em que área pretende trabalhar como advogado?
João
Paulo Cunha — Não, ainda não decidi nem se vou advogar, embora esteja me
preparando para isso, e nem a área do Direito que pretendo seguir. Tenho
interação com muitos advogados, com muitos colegas de muitas áreas, então tenho
avaliado muitas coisas. Estou pedindo minha inscrição na Ordem baseado
exatamente em dois princípios constitucionais: o artigo 1º e o artigo 5º. O
artigo 1º fala do direitos fundamentais, eu tenho o direito fundamental ao
trabalho; e o artigo 5º da Constituição trata do direito ao trabalho. Eu tenho
o direito de trabalhar e exatamente por isso estou pedindo a minha inscrição. O
ofício que eu tinha não era uma profissão, era um cargo, circunstancial, de
deputado. E eu não tenho mais.
ConJur
— O senhor começou o curso de Direito já durante o cumprimento da pena?
João
Paulo Cunha — Não, terminei. Eu tinha estudado três anos de Direito e completei
o resto com um pedaço da minha pena agora.
ConJur
— Como foi fazer faculdade enquanto cumpre pena? Houve algum tipo de
constrangimento?
João
Paulo Cunha — Sempre há certo constrangimento, evidentemente. A pena, o
processo criminal é sempre complicado, porque só instaurá-lo, independentemente
de ser condenado ou não, já causa um trauma pessoal e perante a sociedade.
Quando ele é consumado com o cumprimento da pena, é mais constrangedor ainda.
Então não foi uma coisa fácil. Foi difícil, mas, graças a Deus, já é passado.
ConJur
— E agora o senhor cursa a pós-graduação?
João
Paulo Cunha — Isso, estou fazendo pós-graduação em Direito Constitucional no
IDP. Fiz o primeiro semestre e agora em agosto começo o segundo.
ConJur
— Não pretende voltar para a política?
João
Paulo Cunha — Eu não estou mais no mundo da política, e nem quero mais. Quero
poder exercer com bastante seriedade e profundidade a advocacia. Não tenho mais
interesse em ser candidato, disputar eleições etc. Essa minha fase já passou.
ConJur
— A advocacia, então, é um capítulo novo?
João
Paulo Cunha — É um capítulo novo que inauguro na minha vida. Estou estudando,
me empenhando, aprofundado. Da mesma forma que tive 30 anos de mandato — e
graças a Deus não tive um processo na minha vida, só a AP 470 — e exerci com
dedicação, com denodo, me empenhei muito no desenvolvimento dos meus mandatos,
quero fazer isso também na advocacia. Eu não sei direito as coisas, eu estou
começando a aprender e eu quero poder me dedicar a isso.
ConJur
— Talvez ninguém tenha o seu conhecimento do Poder Legislativo. Agora estudando
Direito Constitucional, mudou alguma coisa da sua percepção quanto ao
funcionamento dos Três Poderes?
João
Paulo Cunha — Olha, estamos vivendo um momento, na vida do país — e no mundo
todo — uma situação bastante complexa. Não só do ponto de vista político e
social, mas estão emergindo temas que achávamos que já tínhamos superado. E
esses temas emergem com tanta força que acabam tornando mais complexa a análise
do que acontece no mundo. No caso do Brasil, estamos vivendo também um momento
bastante importante na história do país.
ConJur
— Em que sentido?
João
Paulo Cunha — Evidentemente estou começando a perceber um descompasso no
equilíbrio dos poderes. Não sei se isso é intencional ou não, mas o
empoderamento do Poder Judiciário em detrimento do Executivo e do Legislativo
me preocupa. Olhando de outra forma: o Legislativo, ao se submeter, é quase uma
escravidão voluntária, né? Ele próprio abre mão de algumas atribuições que
constitucionalmente lhe são delegadas. E o Judiciário, por várias razões, vive
uma crise muito grande. Portanto, como espectador, acho que é preciso
reequilibrar as forças dos Três Poderes.
ConJur
— Qual é a crise do Judiciário?
João
Paulo Cunha — Não é exatamente uma crise, mas ele vai se assoberbando de
poderes e atribuições e vai aumentando a sua influência, nem sempre paramentado
pelas leis e pela Constituição. Algumas operações policiais têm dito isso,
porque, mesmo sendo redefinidos parâmetros de jurisprudência, juízes de
primeiro grau não corroboram com essa opinião redefinida. Ou seja, se há
questionamento nesta redefinição de jurisprudência por parte de cortes
superiores, os juízes da primeira instância, mesmo nessa redefinição, acabam
não cumprindo direito, então vira uma instabilidade muito grande no exercício
do Direito e na busca da justiça.
ConJur
— O senhor presidia a Câmara quando a Emenda Constitucional 45 foi aprovada, em
2004, e, curiosamente, é que uma das ideias que a motivaram foi justamente
evitar essa insegurança.
João
Paulo Cunha — O Judiciário, no começo deste século, tinha uma reivindicação de
reforma em alguns aspectos. E não só por parte de membros do Judiciário, mas da
própria sociedade. Aí que vem a Emenda 45. Ela foi muito complicada para
costurar entre as três instâncias de poder, o Judiciário federal com as cortes
superiores, os estados e a magistratura de forma geral nos tribunais, o
Ministério Público, o próprio Legislativo, a academia, os doutrinadores e tal.
Havia um debate muito intenso. O Congresso, naquele período de 2003/2004,
acabou conformando uma proposta interessante que ajudou a dar um passo
significativo.
ConJur
— Falando especificamente do julgamento do mensalão, o senhor acha que, se
houvesse um grau recursal, a história teria sido diferente?
João
Paulo Cunha — Não quero falar muito do mensalão, já são águas passadas. Mas foi
um julgamento muito particular na história do país. Daqui, sei lá, 50, 100 anos
quando, forem rescrever a história deste século, o mensalão vai ter um capítulo
específico, e as pessoas vão contextualizar de que jeito foi feito esse
julgamento. Foi um julgamento fora da curva, vamos dizer assim. E pela
circunstância acabou dando esse resultado.
ConJur
— Muita gente séria analisa o julgamento do mensalão como sendo um ponto de
inflexão, e não fora da curva. O ponto acabou desviando a curva. Sente isso
também?
João
Paulo Cunha — Sinto, mas não é um negócio isolado. O Judiciário não é uma ilha.
Há um contexto no Brasil e no mundo de conservadorismo, potencializado por uma
visão muito individualista, muito particularista das pessoas, e mais ainda pela
globalização e pelas informações online. Todo mundo tem condições de ser mais
bem informado que antes, mas há muitas mentiras rodando pelas redes sociais.
Tudo isso acaba criando um momento contemporâneo muito complexo, e o Judiciário
está nesse meio. A gente imagina que os juízes não poderiam deixar se envolver,
mas eles acabam se envolvendo, têm as suas relações familiares, amigos, acabam
circulando pelas redes sociais e acabam também sendo envolvidos por isso.
ConJur
— Isso é inevitável?
João
Paulo Cunha — Não. É evitável. Temos juízes em determinados sistemas em outros
países que guardam aquilo que secularmente a gente fala que é o tal do recato.
Há juízes em outras partes do mundo que não dão entrevista, só falam nos autos.
Nós temos ainda sistemas em outros cantos do mundo que preservam um pouco, ou
que regulam com um pouco com mais de rigor, a atuação do juiz.
ConJur
— Esse momento complexo que o mundo vive tem se refletido num Judiciário mais
duro? O senhor trabalha num escritório de advocacia criminal. Tem percebido
isso?
João
Paulo Cunha — O que tenho percebido é que os casos têm uma repercussão maior
quando o julgador se posiciona na mão da maioria. Ou seja, quando um juiz se
posiciona contra uma opinião do Ministério Público ou contra uma opinião
publicada, há um julgamento por parte de um pedaço da sociedade e da própria
mídia de que ele está errado. Agora, quando é o contrário, não. Então fica uma
cobertura desbalanceada do Judiciário. O juiz só é bom quando está no sentido
da maioria, quando está de acordo com o MP e com a imprensa, com a opinião
publicada. Quando o juiz não está de acordo com o MP nem com a imprensa, não
mas está baseado na Constituição e na lei, ele não está certo por quê? Esse
desbalanceamento tem preocupado muita gente.
ConJur
— A pressão da imprensa e da sociedade aumentou? O próprio Congresso tem dado
muito mais valor a uma pauta moralista.
João
Paulo Cunha — O momento conservador que vivemos é propício para o aparecimento
de salvadores de pátria, de posições esdrúxulas. Lembro, por exemplo, que
cheguei na Câmara em 95 e algumas posições que são apresentadas hoje já
existiam em 95. Mas entre 95 e 2009, 2010, essas posições eram tratadas como
folclóricas, ninguém dava atenção. Hoje, não! Hoje elas têm repercussão social,
têm a cobertura da imprensa e são posições que não caberiam no nosso ordenamento,
porque o próprio artigo 17 diz que o partido político que atenta contra o
regime democrático não pode subsistir.
ConJur
— Esta é a maior crise que já presenciou?
João
Paulo Cunha — Já passei por muitas crises, não é nem o primeiro impeachment que
vejo. O que eu fico muito preocupado é que para situações complexas as saídas
são complexas, e eu vejo muita gente querendo, para temas complexos, arrumar
uma saída fácil, e não existe isso. Precisamos amadurecer bastante.
ConJur
— Está se referindo a algo especifico?
João
Paulo Cunha — Estamos vendo agora o movimento de querer mexer nas leis
trabalhistas. Há dois problemas congênitos nesse debate: primeiro, que o
governo do presidente Michel Temer não apresentou esse debate em disputa
eleitoral. Ele não debateu com a sociedade brasileira, portanto não pode mexer
nesse tema. O segundo problema é que em tempos de crise mexer em lei
trabalhista significa fazer a corda arrebentar do lado mais fraco. Então os
trabalhadores vão pagar a crise novamente? Essas duas razões são o que eu chamo
de "saídas fáceis" para problema complexo, a crise econômica que o
Brasil vive e, em decorrência dela, a crise social que chega até o emprego e a
situação de trabalho.
ConJur
— O que é necessário haver numa reforma eleitoral séria?
João
Paulo Cunha — Bom, temos um problema real que é o nosso sistema eleitoral. Como
é um sistema uninominal, ou seja você vota em um candidato, o que ocorre é que
a maioria dos votos são dados em candidatos que perdem a eleição. Em
decorrência disso, uma parte das pessoas não se compromete com aquilo que foi
eleito, porque fala que vai ter um candidato que perdeu. Então é um problema do
sistema eleitoral nosso, que é único no mundo. Então, caso o Brasil resolvesse
experimentar um outro sistema, nós poderíamos ter uma mudança substancial dessa
visão. Porque o cidadão poderia votar em lista, que significa ter partido com
30%, 40%, 10%. Isso dá uma unidade maior tanto a favor como contra no
julgamento posterior, porque agora o julgamento é pessoal.
ConJur
— E a cláusula de desempenho para partidos conseguirem representação no
Congresso? É uma boa ideia?
João
Paulo Cunha — O Brasil poderia experimentar uma reforma mais profunda que
envolvesse em especial a lista, mas se não fizer é importante colocar uma cláusula
de barreira. Não é razoável o Brasil hoje ter 35 partidos regularizados no
Tribunal Superior Eleitoral e ter mais 25 em processo de constituição. Então em
uma hipótese extremada, só para efeito de raciocínio, nós podemos ter em alguns
anos 60 partidos políticos funcionando no Brasil. Em 2014, nós elegemos
parlamentares representantes de 28 partidos. Como nós temos o sistema
presidencialista, nós precisamos ter maioria, e então, nesse caso, ao ganhar
eleição o partido do presidente geralmente é um partido pequeno em relação ao
conjunto, tem 10%, 14% de 513. E então ele sai à busca de formar uma maioria
que não fez parte da chapa vencedora e, portanto, não está comprometida com as
ideias que ganharam as eleições. E acontecem as coisas que estamos vendo.
ConJur
— Mas pela sua experiência, o senhor acha que isso passa pelo Congresso, que os
parlamentares conseguirão se entender para aprovar medidas dessa magnitude?
João
Paulo Cunha — Não sei, não. Eu sou muito cético.
Revista
Consultor Jurídico, 31 de julho de 2016, 8h48
http://www.brasil247.com/pt/247/brasil/246826/Jo%C3%A3o-Paulo-Cunha-Legislativo-se-submete-%C3%A0-escravid%C3%A3o-do-Judici%C3%A1rio.htm
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