Ao
chegar na escola em que trabalha, o professor de Biologia é chamado à sala da
diretoria. O diretor informa que ele está suspenso. Dois policiais o aguardam
para levá-lo a prestar esclarecimentos na delegacia. O motivo? A aula do dia
anterior, sobre a teoria da evolução, do inglês Charles Darwin, contrariou as
crenças de alguns alunos e seus pais. O enredo, fictício, pode se tornar uma
cena factível no futuro da educação brasileira, se o projeto denominado Escola
Sem Partido virar lei. A ideia inspira dois projetos em tramitação no
Congresso, em sete Assembleias Legislativas e 12 Câmaras Municipais.
O
Escola sem Partido contesta qualquer afronta a convicções religiosas ou morais
dos pais e dos alunos e a apresentação de conteúdo "ideológico" aos
estudantes, considerados "vulneráveis" ao professor – nesse caso há
uma evidente partidarização, pois somente conteúdos considerados de esquerda
são citados. O projeto foi idealizado em 2004, pelo procurador paulista Miguel
Nagib, depois de um professor de sua filha comparar Che Guevara a São Francisco
de Assis, em virtude de ambos abandonarem a riqueza pela causa em que
acreditavam.
A
proposta ficou adormecida até recentemente, quando foi encampada por
parlamentares de partidos conservadores. Em abril, uma lei (7.800) baseada na
proposta do Escola sem Partido foi aprovada em Alagoas. O governador Renan
Filho (PMDB) vetou o texto aprovado na Assembleia Legislativa, mas os deputados
estaduais derrubaram o veto. O advogado-geral da União, Fábio Medina Osório,
disse considerar inconstitucional a lei alagoana. Na Câmara e no Senado, o
projeto foi apresentado, respectivamente, pelo deputado Izalci Lucas (PSDB-DF)
e pelo senador Magno Malta (PR-RO).
Seus
defensores propõem medidas como afixar cartazes em salas de aula indicando o
que o professor pode ou não abordar. Quem desobedecer deve ser denunciado à
Secretaria da Educação e ao Ministério Público. Para o autor da proposta,
"é fato notório" que professores e autores de livros didáticos usam
aulas e obras como meio de "obter a adesão" dos estudantes a
determinadas correntes políticas e ideológicas. "E para fazer com que eles
adotem padrões de julgamento e de conduta moral – especialmente moral sexual –
incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais ou
responsáveis", justifica Nagib, em sua página na internet.
O
nome do movimento tem certa dose de esperteza. Nenhum especialista ou leigo
preocupado com educação quer uma escola "com" partido. Ninguém almeja
que seus filhos saiam da escola bradando palavras de ordem, desta ou daquela
ideia. Mas o que o projeto propõe já está contemplado na Constituição Federal e
na Lei de Diretrizes e Bases (LDB): liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e
divulgar o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de ideias e de concepções
pedagógicas. E o que ele cria, efetivamente, são proibições de abordar teorias
que contrariem crenças ou convicções de seus autores.
Para
professores, estudantes e especialistas, a proposta pretende calar professores
e esvaziar a educação brasileira de conteúdos críticos ao funcionamento da
sociedade. "Na prática, não se poderá debater assunto nenhum. Porque tudo
vai contrariar crenças. O projeto determina que você deve respeitar os valores
de cada aluno. Isso já é obrigação da escola. Esse vai ser um processo de
criminalização do professor. A Escola sem Partido é uma lei da mordaça",
avalia o professor João Cardoso Palma Filho, membro do Conselho Estadual da
Educação de São Paulo.
Adam Smith
x Marx
Como
trabalho de classe solicitado pela professora de Sociologia Gabriela Viola,
alunos do Colégio Estadual Professora Maria Gai Grendel, do bairro Caximba, em
Curitiba, fizeram uma paródia do funk Baile de Favela baseados nas aulas a respeito
das ideias do filósofo alemão Karl Marx – autor de O Capital e expoente teórico
do comunismo. Postado na internet, o vídeo repercutiu entre defensores do
Escola sem Partido, que cobraram o afastamento da professora. No entanto, ela
já havia passado conteúdos com as ideias de outros pensadores, sem ser
incomodada.
Ao
utilizar um funk para transmitir e consolidar a compreensão do tema, Gabriela
buscou se aproximar da realidade dos jovens, algo que vem se tornando cada dia
mais comum nas escolas, como observa o coordenador da Campanha Nacional pelo
Direito à Educação, Daniel Cara. "A didática ensinou que para aprender,
para querer aprender, o aluno precisa ter uma aula envolvente, precisa dialogar
com a realidade dele. O que nega também essa ideia de que eles são
completamente passivos diante do professor. Qualquer um que conheça a realidade
da sala de aula sabe que isso é falso."
Daniel
questiona como um professor terá condições de dar uma aula sobre a Revolução
Industrial, ou sobre a luta das mulheres pelo direito ao voto, ou sobre os
movimentos de trabalhadores contra o trabalho infantil nos séculos 19 e 20, sem
apresentar características de um lado e de outro da história. "É
impossível, essa aula não consegue ser dada. O que se quer é ter somente uma
versão da história, uma única visão do mundo", afirma.
Para
o professor de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo (USP)
Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação, se o objetivo do projeto é
evitar a doutrinação, ele devia exigir maior pluralidade de conteúdo, teórico e
de ideias, no currículo escolar. Mas de maneira nenhuma vetar determinados
conceitos. Um curso de Sociologia ou Economia, explica Janine, deve mencionar
tanto a visão de Marx sobre o capitalismo como a de Adam Smith – liberal,
criador do conceito de "mão invisível do mercado". São autores que
representam posições diferentes, mas que não podem ser ignorados por sua
contribuição para o saber humano.
Para
Janine, o objetivo da escola é transmitir conhecimento científico, por isso não
se podem aplicar restrições a conteúdos por razões ideológicas ou religiosas.
"A escola não tem incumbência de doutrinar a pessoa nem de respeitar a
doutrinação religiosa da família. A escola educa. E para educar ela tem de
transmitir conhecimento que tem base científica. As pessoas podem acreditar no
criacionismo ou não, mas ele não pode ser ensinado na escola, porque trata-se
de fé, não de conhecimento científico."
O
professor avalia que não é possível considerar a escola como maior formador ou
deformador da moral de crianças e adolescentes, descartando o papel da própria
família, da igreja e a mídia. "A educação é, nesse conjunto, o
protagonista mais fraco. Não me parece justo que seja o único a ser
criminalizado", afirma.
Religiosidade
e autoritarismo
Apesar
de, como o ex-ministro, especialistas e educadores defenderem que a escola deve
ser laica – sem controle ou influência de nenhuma religião –, a inserção da fé
no espaço educacional vem ganhando terreno nos últimos anos. O Decreto federal
7.107, de 2010, determina que o ensino religioso "católico e de outras
confissões religiosas" deve ser constituído como "disciplina dos
horários normais das escolas públicas de ensino fundamental". O Projeto de
Lei 309, de 2011, do deputado Marco Feliciano (PSC-SP), impõe o ensino
religioso como "disciplina obrigatória nos currículos escolares do ensino
fundamental" e regulamenta o exercício da docência desse conteúdo.
A
Constituição contempla o ensino religioso desde 1988. O tema foi reafirmado na
LDB, de 1996. Atualmente, está sendo incluído como conteúdo dos nove anos do
ensino fundamental na proposta da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – em
discussão no Ministério da Educação. Filosofia e Sociologia ficarão relegadas
ao ensino médio. Esse processo pode estar relacionado aos objetivos do Escola
sem Partido, na avaliação do doutor em Educação Luiz Antônio Cunha, professor
emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
"Escola
sem Partido é uma perna de um projeto mais amplo. Não basta calar, é preciso
colocar algo no lugar. Quem mais está agindo para educar dentro da escola
pública, nessa perspectiva que se evite o pensamento crítico? São aqueles
grupos que pretendem desenvolver o ensino religioso", afirma Cunha. Para
ele, o maior objetivo dessa proposta é o esvaziamento de conteúdos ligados às
ciências naturais e sociais.
O
ato de fazer da educação um espaço vazio de crítica, carregado de exaltação
ufanista e de ideais de "moralização" da sociedade começou na
ditadura do Estado Novo e se aprofundou após o golpe de 1964. Para o professor
Alexandre Pianelli Godoy, doutor em História Social pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), é esse viés, mais autoritário do
que pedagógico, disfarçado de proposta de "educação neutra", o que
move os defensores do Escola sem Partido.
No
entanto, avalia Godoy, esse movimento contemporâneo tende a ser mais
autoritário. Durante a ditadura, embora houvesse cartilhas e vigilância, os
docentes não eram pressionados a ensinar desta ou daquela maneira. "Há um
retrocesso se voltando contra os conteúdos. Viver em uma democracia com
práticas autoritárias acaba com o debate de ideias e com a própria
democracia", afirma.
Fechada
para o debate, esvaziada de conteúdo crítico e sem conflitar com convicções
morais ou religiosas, a escola pode também se tornar incapaz de funcionar como
ferramenta civilizatória contra a discriminação. A professora Rosilene Corrêa
de Lima alerta que, com o educador proibido de afrontar as convicções
religiosas ou morais dos alunos ou de seus pais, conflitos entre estudantes
devem se agravar.
"Se
um aluno homossexual ou de uma religião não cristã for discriminado por outro,
de visão adversa, o professor não poderá intervir. Pois estaria questionando
valores religiosos. Na prática, o Escola sem Partido vai liquidar os avanços em
direitos humanos que tivemos nos últimos anos", afirma Rosilene, que é
diretora do Sindicato dos Professores do Distrito Federal (Sinpro-DF).
A
que interessa?
A
proposta Escola sem Partido, segundo os especialistas, serve também para
encobrir temas importantes da educação que estão em debate atualmente. Ao menos
dois projetos com impactos significativos à área estão em discussão. Um é a
Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241. O projeto busca limitar ao
reajuste inflacionário a evolução dos recursos públicos para gastos sociais.
"Isso significa que não vai ter dinheiro novo. Sem isso não vai dar para
fazer nada do que precisa ser feito na educação e não vai dar para cumprir o
Plano Nacional da Educação. A partir de 2017, nenhuma escola pública vai ser
construída, nenhum professor vai poder ter ganho real de salário", diz
Daniel Cara.
O
segundo tema, alerta ele, é a BNCC, em discussão no Ministério da Educação, com
pouco acompanhamento da sociedade, exceto por organizações e empresários da
área. "Em vez de debatermos essas questões estamos fazendo um debate sobre
algo que, honestamente, não tem nenhum sentido pedagógico."
Além
disso, o endosso ao projeto por parlamentares de partidos conservadores tem
sido visto, pelos estudantes, como uma resposta às recentes mobilizações, em
várias partes do país, contra projetos de concessão da educação à iniciativa
privada (como o de Marconi Perillo, em Goiás), de reorganização escolar (como o
de Geraldo Alckmin, em São Paulo) e mesmo contra as mobilizações por melhorias
estruturais e salariais.
"Querem
eliminar toda a organização social que hoje está fazendo com que professores
entrem em greve, que estudantes ocupem, fechem e paralisem escolas, que
protestem. O Escola sem Partido é só um ponto de partida, um AI-5 da educação
(referência ao Ato Institucional Nº 5, que iniciou o período mais violento da
ditadura)", diz a presidenta da União Brasileira dos Estudantes
Secundaristas (Ubes), Camila Lanes.
O
projeto conquistou a antipatia de empresários do setor. Um manifesto conjunto
de tradicionais colégios particulares de São Paulo, entre os quais Mackenzie,
Santa Cruz, Vera Cruz e Bandeirantes, defendeu que o Escola sem Partido pode
"cercear e até inviabilizar o trabalho pedagógico".
Em
14 de julho, foi lançada no Rio a Frente Nacional contra o projeto Escola sem
Partido, reunindo professores, estudantes, sindicatos, movimentos sociais,
associações de classe e partidos políticos. A ideia é pressionar parlamentares
e mobilizar a sociedade para garantir o livre exercício de um direito
universal: a educação.
*****
Padrões de
conduta
O
movimento Escola sem Partido divulga um "anteprojeto" de lei estadual
com suas diretrizes (abaixo). Genérico, o texto veda práticas que comprometam
"o natural desenvolvimento da personalidade" dos alunos, enfatizando
"postulados da ideologia de gênero". A proibição se amplia a
tentativas de"doutrinação política e ideológica" e atividades
"de cunho religioso ou moral" conflitantes com as convicções dos pais
ou responsáveis pelos estudantes.
Anteprojeto
de Lei Estadual e minuta de justificativa
Art.
1º...
VII
- direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de
acordo com suas próprias convicções.
Parágrafo
único. O Poder Público não se imiscuirá na orientação sexual dos alunos nem
permitirá qualquer prática capaz de comprometer ou direcionar o natural
desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia com a respectiva identidade
biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da
ideologia de gênero.
Art.
2º. São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e
ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades de
cunho religioso ou moral que possam estar em conflito com as convicções dos
pais ou responsáveis pelos estudantes.
Art.
6º. As reclamações relacionadas ao descumprimento desta Lei serão dirigidas,
sob garantia de anonimato, à Secretaria de Educação, e encaminhadas, sob pena
de responsabilidade, ao órgão do Ministério Público incumbido da defesa dos
interesses da criança e do adolescente.
Justificativa
É
fato notório que professores e autores de livros didáticos vêm-se utilizando de
suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos estudantes a
determinadas correntes políticas e ideológicas; e para fazer com que eles
adotem padrões de julgamento e de conduta moral – especialmente moral sexual –
incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais ou responsáveis.
http://altamiroborges.blogspot.com.br/2016/08/escola-sem-partido-pedagogia-da-mordaca.html
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