Considerando a
já baixa credibilidade de nossos parlamentares, pode-se lamentar a maratona
política realizada no Senado, que chegou as 2 e meia da madrugada desta
quarta-feira.Para quem pode seguir ao menos uma parte das discussões, como fez
este humilde blogueiro, foi uma noite didática, para se assistir a um
espetáculo de cartas marcadas, um teatro ensaido com antecedência para se
evitar debates reais e avançar o rolo compressor de uma maioria de momento,
ocupada em revogar direitos e conquistas da última década e meia -- operação
que passa pelo afastamento definitivo de Dilma Rousseff e pela cada vez mais
complicada tentativa de dar alguma estabilidade ao governo Michel Temer.
A longa jornada
madrugada adentro foi uma celebração macabra contra a soberania do voto
popular. Três dias depois das revelações contidas na delação premiada de
Marcelo Odebrecht, que apontaram para as tratativas do próprio Temer para
receber RS 10 milhões em dinheiro vivo e também de RS 23 milhões enviados para
José Serra em contas no exterior, os aliados do golpe de março-abril
conseguiram a proeza -- realmente espantosa -- de seguir a pauta dos trabalhos
como se nada demais tivesse acontecido.
Mesmo assim,
não foi possível impedir momentos de
indignação e denúncias que serviram para registrar até o aspecto ridículo de
acusações apresentadas para incriminar a presidente. O placar final, que
aprovou o parecer de Antonio Anastazia (PDSD-MB) por 59 votos a 21, mostra que
a estrada para Dilma retornar ao Planalto segue muito difícil, mas não está
resolvida. O Planalto atuou pesado para garantir uma votação favorável, numa
marcação individual para impedir manifestações dissidentes, que a imprensa
amiga fingiu não acompanhar. Foi neste ambiente que a presidente tornou-se ré.
Ainda assim, o
debate cumpriu a utilidade inegável de sublinhar incoerências que alimentam o
pedido de afastamento definitivo de Dilma. Para revelar o absurdo da
argumentação dos adversários da presidente eleita, o senador Randolfe Rodrigues ( Rede-AP) foi
atrás das despesas previstas por um decreto assinado para promover realocamento
de verbas no interior do Ministério da Justiça. A decisão envolveu recursos
destinados a assegurar compra de equipamentos e despesas de operações da
Polícia Federal, compensando cortes promovidos pelo contingenciamento de gastos
realizado depois que uma queda de
receitas passou a ameaçar a previsão final de contas. "Esse decreto foi
uma forma de garantir a continuidade da Lava Jato," explicou Randolfe,
sublinhando a ironia da situação. Os senadores alinhados com Temer, que enchem
a boca para fazer denúncias de corrupção,
pretendem punir Dilma por ter resolvido, mesmo em hora de extrema
dificuldade financeira, assinar um descreto que sustentava uma operação que tem
cortado sua própria carne. O problema é que o governo fez isso dentro da lei,
sem mexer no gasto total do governo, apenas com mudanças internas. Num debate
sério, seria o caso de aplaudir a mudança
-- e não de condenar, ainda mais num país onde a "falta de
verbas" sempre foi a desculpa favorita para autoridades que querem
esconder a má vontade contra gastos que não fazem parte de suas prioridades
políticas.
Em outra
intervenção instrutiva, Gleisi Hoffman (PT-PR), apontou outro decreto, que
contém uma única despesa polêmica, de R$ 360 000 reais, quantia modestíssima
num déficit reconhecido de R$ 116 bilhões. O questionamento, aqui, não resiste
no volume dos recursos, mas em sua origem dos recursos. O decreto tratava de um
excesso de arrecadação da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São
Francisco, destinando os recursos para a Centrais Elétricas de Minas Gerais, a
Cemig, disse Gleisi, encarando Antonio Anastasia, que até 2014 respondia pelo
governo de Minas Gerais, principal acionista da empresa. A maioria das pessoas
não sabe mas, sem dar um destino aos recursos que recebe a mais, a
administração pública não tem meios legais para gastá-los.
Apenas a
certeza de que se trata de um debate que é pura formalidade explica a natureza
-- no melhor estilo seria cômica se não fosse trágica -- das denúncias que
conseguiram sobreviver ao escrutínio dos últimos meses, realizado por quem
trabalha com dados reais e não construções ideológicas. A denúncia do Plano
Safra do Banco do Brasil, um dos quatro motivos atuais para o afastamento, que
chegou a ser inicialmente apontado como o caso mais grave, simplesmente não
fica em pé.
Para começar,
não é possivel apontar a responsabilidade da presidente pelo suporte a lavoura
brasileira, tarefa que cabe ao ministros da área economica e a dirigentes da
própria instituição, como foi reconhecido pelo Ministério Público Federal. Em
segundo lugar, não é possível confundir o suporte a agricultura com operações
de crédito aos agricultores. São ações diferentes, que envolvem quantias muito diferentes, como esclareceu
Katia Abreu (PMDB-MT), ontem. A senadora apresentou números que justificam o
uso do crédito agrícola ao país: aumento de 10% da área plantada e 17% na
produção; elevação para 60 000 no número de máquinas agrícolas, crescimento
várias vezes maior do que nos anos anteriores.
Um ponto
marcante das discussões coube a Cristovam Buarque (PPS-DF). Uma semana depois
de anunciar que não tinha medo de ser chamado de golpista, Cristovam marcou um clássico gol de mão,
particularmente revelador para o argumento real empregado pela bancada dos
aliados do golpe de abril-maio. O Brasil vive sob um regime político
"híbrido", disse Cristovam, numa tentativa de justificar o método empregado
para se afastar Dilma pela visão de que nosso sistema de governo não é o
presidencialismo, como acreditaram os 67 milhões de brasileiros que votaram no
plebiscito de 1993, mas uma variante do parlamentarismo, vencido por uma
maioria indiscutível, de 55% contra 24% dos votos. (Trinta anos antes, um
primeiro plebiscito já havia confirmado a opção presidencialista dos
brasileiros, por uma margem ainda maior).
Avançando no
raciocínio, Cristovam chegou a falar em "voto de desconfiança" contra
a presidente, recurso que seria inteiramente legítimo se o sistema assegurasse
aos parlamentares a palavra final na definição do chefe de governo. Neste caso,
são avaliações de natureza política e ideológica que podem justificar uma
mudança no comando do Estado. O "voto de desconfiança" não faz sentido num sistema onde o cidadão
escolhe o presidente em urna, pelo voto direto, sem a mediação de uma elite de
políticos. O gol de mão reside aí. O ludibriado está sendo o eleitor, chamado a
fazer o mesmo papel de bobo cumprido pelos torcedores de Argentina e Peru na
Copa de 1986, quando Diego Maradona fez um gol decisivo atribuído a "Mano
de Diós."
O que está em
curso, no Brasil de 2016, é a aplicação de um método socialmente elitista de
disputa política, muito bem demonstrado pelo historiador Luiz Felipe Alencastro
numa série de estudos sobre a ideia-fixa parlamentarista do conservadorismo
verde-amarelo. O impeachment, não contém um fato jurídico, como acontecia com
as denúncias de crime de responsabilidade contra Fernando Collor, em 1992. Mas
é uma decorrência oportunista da relação de forças estabelecida pelas eleições
de 2014, quando Dilma obteve maioria de votos e, paralelamente, a oposição a
seu governo fez maioria no Congresso de Eduardo Cunha. Não foram os erros -- inúmeros
e graves -- do governo Dilma que levaram ao impeachment, mas a oportunidade
política aberta a uma oposição sem escrúpulos democráticos, a ponto de acusar
primeiro e procurar uma denúncia depois. Essa realidade justifica a postura de
Jorge Vianna (PT-AC) ontem, ao encerrar um encaminhamento com um apelo: "preserve o voto do povo,"disse aos adversários.
http://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/248790/Contra-Dilma-valeu-at%C3%A9-gol-de-m%C3%A3o.htm
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